Da imprensa espero informação, opinião, escrutínio. Porque é um dos braços da democracia ou não fora sempre a sua infiltração e controlo um dos objectivos iniciais dos regimes autocráticos – isto para não particularizar o caso dos media em Portugal e das suas instrumentalizações super-evidentes. Parece, portanto, saudável a tendência de efectiva redução no seu meio, de políticos no activo quer no comentário quer na opinião ou na análise. Na verdade, o que acontece, salvo raríssimas excepções, é pouco mais do que propaganda e trabalho de moços de recados alocados nas colunas ou nas cadeiras de comentário. E não serve ao pluralismo colocar dois afiliados de correntes opostas em debate quando este é meramente partidário. Não estão ao serviço da democracia, estão ao serviço do poder em causa própria. Sérgio Sousa Pinto, a despeito do muito que dele discordo em conteúdo tanto quanto no tom, tem sido uma das excepções e por isso tem prestado um serviço não apenas ao PS mas à democracia.

Esclarecidos os pontos prévios, ao assunto: a saber, a largura das costas de Mitterrand. Porque o Expresso saiu mais cedo, vi-o chegar ao ecrã onde estava a trabalhar. E li, como sempre leio a opinião primeiro e assim o texto de Sérgio Sousa Pinto, que decerto sabe tão bem quanto qualquer um de nós, não haver uma razão para o crescimento do nacionalismo em França, como na Europa ou nos Estados Unidos. Há uma constelação de razões a propiciá-lo. E negar o papel de Mitterrand nesse crescimento, em França, não faz dele um estadista maior, mas faz de nós piores democratas.

A França tem um forte sentimento nacionalista, ora mais aflorado ora mais subterrâneo, mas sempre presente, pelo menos desde a Terceira República (1875-1940), na segunda metade do século XIX. Desde 1875 até ao fim da Quarta República (1946-1958), as forças ditas conservadoras foram obliteradas pelos movimentos republicanos a pretexto tanto da verdade quanto da mentira subsistindo a ideia de que o conservadorismo apoiara tudo quanto a república combatera, desde a monarquia ao bonapartismo, à igreja católica e ao fascismo. Como se os conservadores fossem uma massa indistinta.

Não fora assim e De Gaulle não teria implantado um sistema eleitoral tendencialmente centrista, centro direita, centro esquerda, afastando do parlamento a extrema direita assegurando-se de que esta poucas ou nenhumas possibilidades teria de assento parlamentar. Sistema que Mitterrand alterou em 1986 ao introduzir a representatividade proporcional e por onde, inequivocamente, a extrema direita entrou na cena política e deu início à pretendida fragmentação do centro direito e direita da social democracia e enquanto favorecia a manutenção do poder do lado esquerdo da mesma social democracia. O clássico dividir para reinar. E não é relevante que o sistema eleitoral tenha voltado a ser reformulado depois. Basta o pé na porta para que ela não se feche e exista a possibilidade de a escancarar. Também foi Mitterrand, em 1982, então recentemente eleito presidente, e a pretexto do pluralismo, quem criou espaço para Jean-Marie Le Pen nos media de maior audiência. E fê-lo com o claro objectivo de conter Chirac e garantir, posteriormente, a sua reeleição – o papão da extrema-direita tinha de ser combatido pela esquerda, toda a esquerda, pas d´ennemis à gauche, slogan que por aqui já pagámos na anterior legislatura. E como se não fosse suficiente o pagamento, agora o agravamento com 12 deputados do Chega. Jean-Marie Le Pen foi o degrau para vinte anos de poder socialista em França. Veremos quantos anos o Chega consegue dar ao PS.

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Os custos da fragmentação da direita estão à vista. Não sem ironia, os do partido socialista francês também. A hegemonia socialista acabou há muito tempo e o golpe de misericórdia foi Macron quem o desferiu – Édipo tem destas coisas… Se calhar é por isso que António Costa tem vários filhos na calha.

A missão da esquerda, e vimo-lo com a nossa própria campanha eleitoral, é assustar o eleitorado com o perigo da direita, uma actualização da tal força conservadora sobre a qual recaem os pecados do mundo. A direita ficcional e totalizante que os socialistas portugueses usaram para se eleger atira para a tal massa indiferenciada o centro e centro direita da social democracia e a direita nacionalista e anti-democrática – tarefa facilitada pela desadequada «oposição» de Rui Rio por junto com o papel dos media e as empresas de inconcebíveis sondagens. Serviu a Mitterrand, serviu a António Costa. Com duas ressalvas. A primeira, Portugal, ao contrário de França, é um país pobre. A segunda, o PS de Costa está bem mais à esquerda do que Mitterrand e o PSD não é tão à direita quanto a direita de Chirac. Mas esse é o vício português. E a propósito de umas botas «despropositadamente compridas», Eça usa-o nos Maias para explicar todo o Portugal contemporâneo: «mas sem originalidade, sem força, sem carácter para criar um feitio seu, um feitio próprio, manda vir modelos do estrangeiro – modelos de ideias, de calças de costumes, de leis, de arte, de cozinha, (…) exagera o modelo, deforma-o, estraga-o até à caricatura.»

As razões sociais do crescimento da extrema direita estão enunciadas e sumarizadas um pouco por todo o lado, mas não é por isso, nem pela extraordinária competência política de Mitterrand, que se estende de Vichy à Quinta República, e apesar das costas largas que se anula a estreiteza das suas intenções de eficaz linha recta: conseguir o poder, manter o poder.

A autora escreve segundo a antiga ortografia