Ao longo destes últimos meses temos presenciado um vórtice que tem devastado a composição do atual governo. Assoberbado por situações no mínimo duvidosas, foi encontrada uma solução para resolver a tão afamada crise política: um questionário. Quem nunca perdeu uma tarde nos serviços públicos, esperando que um derradeiro formulário fosse a resolução de todos os seus problemas? Exatamente, devem estar a pensar o mesmo que eu!

Depois de uma primeira tentativa de incluir a Presidência da República e o Tribunal Constitucional na decisão sobre o recrutamento dos membros do executivo (prontamente recusada pelo Presidente Marcelo), o governo liderado por António Costa avançou com a tão esperada solução: uma lista de questões e um compromisso de honra, que atesta a capacidade e legitimidade dos governantes.

Ignorando o facto de infelizmente isto não ser um número de comédia política, poderemos analisar várias problemáticas de fundo, essas verdadeiramente preocupantes. Primeiro que tudo, coloca-se a dúvida: anteriormente a este questionário, os cidadãos convidados a assumirem funções governamentais não eram devidamente escrutinados sobre a sua idoneidade e o seu percurso? Só agora é que são analisadas possíveis incompatibilidades? É que o anúncio com pompa e circunstância desta “novidade” passa a ideia de uma anterior incauta escolha de governantes.

De seguida, a necessidade deste questionário não coloca em evidência a incapacidade do atual governo de escolher os seus próprios membros? Além do mais, a inicial peregrina ideia de envolver o Presidente da República e o Tribunal Constitucional no mecanismo de escrutínio, em algo que é exclusivamente da sua competência, coloca isto ainda mais a nu. Mas calma, ainda não fica por aqui.

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Se a suspeição existente sobre o ambiente político e o exercício de funções políticas não fosse suficiente, a existência do questionário coloca os candidatos a funções governamentais como suspeitos em princípio, assumindo que só após responderem ao questionário de forma satisfatória poderão ser considerados inocentes. Mas com que critérios? Quem é responsável pela avaliação do questionário?

Já agora, os atuais membros do governo também vão ser alvo do questionário? Se sim, e na eventualidade de resultado negativo, vão ser demitidos? Aplicando o princípio caro de Max Weber “viver para a política e não da política”, fica difícil a alguém com verdadeiro espírito de servidor público aceitar toda esta suspeição e desconfiança.

É claro e evidente, na análise do funcionamento das sociedades e particularmente na teoria das elites, a inevitável necessidade da existência de uma elite dirigente capaz de tomar as decisões e gerir politicamente uma comunidade. A existência dessa elite é tão fundamental como a existência de uma sociedade informada e crítica, capaz de escrutinar as decisões do poder político. Neste momento, estas duas simples condições parecem esvaziar-se à medida que o tempo passa.

Por um lado, é notória a sistémica dificuldade em recrutar para a vida política governantes de qualidade, com verdadeiro espírito de missão para a coisa pública. Atualmente, o percurso governamental aparentemente parece ser apenas um meio de obter vantagens/oportunidades para um futuro promissor e algumas manchetes jornalísticas. Obviamente não existe ideal, mas terá de haver um mínimo aceitável. Claramente o que tem ocorrido, não o é.

Por outro lado, o facto de estarmos, como sociedade, a considerar esta medida de controlo de governantes sem ter um ataque de riso, mostra bem ao ponto a que chegamos. Exatamente o de todo este descrédito que continua a erodir as fundações do nosso regime democrático, dado à sucessão de situações que mais parecem retiradas de uma rábula. Se ambicionamos preservar o regime, talvez devamos começar por aqui, abandonando a incapacidade e os jogos de aparência. Infelizmente esta cortina de fumo deliberadamente lançada como panaceia, além de colocar mais problemas do que soluções, não é retirada de uma comédia passada num qualquer país ficcional.