Quando actualmente nos deparamos com a panóplia de frases e citações sobre o  chamado “inverno democrático“, essas mesmo sempre levantam mais questões do que  respostas. Particularmente, uma frase da autoria de Daniel Ziblatt despertou curiosa atenção:

As democracias hoje morrem nas urnas: os políticos são eleitos, chegam ao poder e, uma vez lá instalados, enfraquecem as instituições democráticas

Nesta citação, o mesmo, retomando as bases do seu argumento geral em How  democracies die, refere-se à táctica cínica de políticos antidemocráticos em conquistarem o poder político através dos métodos democráticos para posteriormente implodirem as instituições, alertando-nos para possíveis cavalos de Troia que assim surgem à boleia de narrativas populistas e demagogas.

Aquilo que a torna particularmente interessante é que cada vez mais esta constatação parece ter um tom evidente e claro, mas, ao mesmo tempo, também mais desesperado pelo facto de, apesar de observarmos e conhecermos o fenómeno, aparentemente não o conseguimos evitar. Creio também ser evidente que uma posição “à la Maquiavel” de observar a “cidade” e de compreender o seu real funcionamento não tem sido suficiente para o impedir, ousando ao mesmo tempo afirmar que também não é de todo suficiente para o explicar.

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Assim, é exactamente aqui que a ligação entre política e liberdade ganha especial  relevância, especialmente no célebre dilema entre a liberdade dos antigos e a liberdade dos modernos, de Benjamin Constant. Mais precisamente, a errónea interpretação deste mesmo  dilema levou ao triunfo absoluto da concepção moderna de liberdade, na qual é a própria  política que oferece aos indivíduos a doce oportunidade de se libertarem dela mesmo. De certa forma, esta concepção apoderando-se dos destinos evolutivos do liberalismo político, colocou a política e a liberdade em extremos opostos.

O que precedentemente era condição sine qua non, ou seja, em que a liberdade não era sequer imaginável sem a presença da esfera política, na visão das sociedades modernas a relação entre política e liberdade transformou-se numa relação mutuamente exclusiva.  Consequentemente, poderemos questionar qual o impacto que esta separação poderá ter  nas sociedades democráticas contemporâneas, nomeadamente no vínculo ambivalente entre  os cidadãos, actores políticos e as próprias instituições, mas também no próprio liberalismo  político.

Além disso, na lógica cínica da conquista e manutenção do poder político, inconscientemente ou não, a mobilização e envolvimento dos indivíduos na esfera política é muitas vezes feita na base dos interesses imediatos de vitórias eleitorais. Evidentemente, quando o indivíduo se encontra atomizado e desprotegido em relação ao poder político, o  mesmo é apenas um meio facilmente manipulável para atingir um determinado fim. Esta  premissa é tão válida para aqueles que detêm o poder, como para aqueles que o ambicionam, para os quais as instituições são apenas um meio instrumental de manutenção do poder.

Já Alexis Tocqueville, nas suas observações em Democracia na América, relatava a  importância fundamental da participação e envolvimento dos indivíduos em associações de  cidadãos para o bom funcionamento e próprio controlo das engrenagens democráticas. Ora se, voluntariamente ou não, enquanto desfrutam da sua liberdade e emancipação individual, os cidadãos estão e são alienados da esfera política a maior parte do tempo, como podemos  exigir que a cada momento eleitoral possam despertar de forma consciente e racional, sem apelo a emoções e fervores inquietantes à procura de respostas e soluções para as suas necessidades e inquietações prementes?

De forma irónica, na medida que cada vez mais a liberdade se afasta da política, e o próprio poder político de forma schumpeteriana incentiva este afastamento, mais nos aproximamos do argumento de Jean-Jacques Rousseau que só se é livre no dia em que se insere o voto na urna, algo que não poderia estar mais nos antípodas daquilo que se pretende alcançar.

Sendo assim, os desafios que as democracias liberais actuais enfrentam não são apenas cavalos de Troia conjunturais, mas derivam sobretudo de uma tensão filosófica  permanente, omnipresente e imanente no projecto político e societal do liberalismo político, no qual estão inseridas as democracias contemporâneas. Quiçá, ao reconciliar a liberdade com a política, poderemos encontrar uma solução para os desafios democráticos e talvez  mesmo para a tragédia do liberalismo.