Apesar do propalado “consenso” com que a sua aprovação foi celebrada, a história do Estatuto do Antigo Combatente é tudo menos linear e isenta de controvérsia. Pelo contrário, é um claro exemplo de como vicissitudes processuais muitas vezes influenciam a execução de certas políticas públicas. Se, numa metáfora corrente, a análise de políticas públicas é o exercício que nos permite abrir a “caixa negra” do Estado, a reconstituição desta medida em particular talvez seja profícua: como se explica que uma finalidade alegadamente tão unânime tenha sido alvo de tantos avanços e recuos?

Visto em retrospectiva, pode causar relativa surpresa o modo espontâneo como o assunto emerge na agenda política, não como resultado de uma súbita tomada de consciência, mas de uma série de conversas informais e não premeditadas. Em 1998, no município de Castelo de Paiva, surge a ideia de erigir um monumento que prestasse homenagem aos naturais da terra que haviam perecido na Guerra Colonial; palavra puxa palavra, menos de dois anos depois, durante as obras de construção, consolida-se progressivamente o objectivo de reivindicar também a defesa dos direitos dos sobreviventes, expresso numa petição de âmbito nacional que, em apenas oito meses, recolhe milhares de assinaturas. É curioso notar que os intuitos originários desta petição pouco se assemelhavam aos benefícios ora em vigor: primeiro, reclamava-se apoio aos ex-combatentes com deficiências ou vítimas de stress pós-traumático; segundo, pugnava-se pela contagem do tempo de serviço militar para efeitos de antecipação da reforma.

A 20 de Dezembro de 2001, é aprovada na Assembleia da República, por unanimidade, a Lei nº 9/2002, vulgarmente conhecida como a “Lei dos Antigos Combatentes”. Esta lei estipulava a atribuição de um complemento especial de pensão aos ex-combatentes beneficiários do sistema de Segurança Social, a que se juntava, paralelamente, um acréscimo vitalício de pensão para os ex-combatentes não abrangidos por este sistema. Porém, fruto da demissão do Primeiro-ministro e da subsequente queda do “Governo Guterres” (PS), não chega a ser regulamentada, ao mesmo tempo que se vislumbram as primeiras divergências entre as duas associações de antigos combatentes envolvidas no processo.

Independentemente disso, a questão já não sai da agenda política. Mantém-se presente na campanha eleitoral, no programa do sucedâneo “Governo Barroso” (coligação PSD/CDS-PP) e nas Grandes Opções do Plano para 2003. A boa notícia é que o Orçamento do Estado para 2004 cria o Fundo do Antigo Combatente; a má notícia é que, no fundo, o Fundo não dispõe de fundos, por falta de dotação orçamental adequada. Ainda assim, a posterior Lei nº 21/2004 alarga o universo potencial de beneficiários, que rondaria os 364 mil. A despeito de a “questão dos ex-combatentes” ser objecto de frequentes debates nas sessões plenárias do Parlamento, as sucessivas crises políticas e as constantes restrições orçamentais vão retardando a sua concretização plena. Em simultâneo, assiste-se à prenunciada cisão entre a Associação dos Combatentes do Ultramar Português e a Associação Portuguesa dos Veteranos de Guerra: enquanto a primeira continua a colaborar com o poder político, a segunda passa a mover-lhe uma oposição intransigente (numa declaração pública, o seu presidente chega a exortar os associados a renunciarem ao valor das pensões, por considerá-lo irrisório).

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Entretanto, toma posse o “Governo Santana” (coligação PSD/CDS-PP). E a turbulência política deste período volta a adiar a execução da medida: a 22 de Dezembro de 2004, o Presidente Sampaio dissolve a Assembleia da República, reduzindo a margem de manobra do Governo, agora circunscrito à prática de actos de gestão. Na campanha eleitoral que se segue, a questão é sobretudo salientada pelo líder do CDS-PP, mas as eleições “legislativas” de 2005 são vencidas pelo PS, que, embora com menor destaque, também não negligencia a “questão dos ex-combatentes” no seu programa eleitoral e no programa de governo. No entanto, o Fundo continua insolvente; e, dada a morosidade do processo, a contestação das associações de ex-combatentes recrudesce.

Só em Julho de 2008 o “Governo Sócrates” (PS) apresenta uma proposta de lei que introduz mudanças no regime de cálculo do complemento e – mais relevante – determina que os pagamentos passam a ser efectuados no quadro do Orçamento do Estado, e não pelo Ministério da Defesa. No meio da revoada de acusações que se gera, ficam ainda mais evidentes as dificuldades de tesouraria. Segundo cálculos da imprensa, no final de 2007, o Fundo já acumula uma dívida no valor de 57,4 milhões de euros; o ministro da Defesa (que já admitira, em finais de 2006, equacionar a revogação desta medida) afirma na AR, em 2008, que o Fundo “estava sem um cêntimo”; a venda de património (195 imóveis afectos à Defesa) é vista como solução para arrecadar algumas receitas, das quais parte reverteria, pretensamente, para o Fundo. Seja como for, exceptuando a introdução de um novo regime paralelo (o suplemento especial de pensão), destinado aos antigos combatentes ainda não abrangidos pelos outros regimes, durante cerca de uma década o assunto desaparece da agenda mediática.

Abreviando, saltinho proléptico até finais de 2019: a 5 de Dezembro, o atual Governo em funções (que já renomeara, sintomaticamente, a secretaria de Estado dos Recursos Humanos e dos Antigos Combatentes) apresenta a proposta de lei que define o Estatuto do Antigo Combatente, agregando num só documento o conjunto de direitos e benefícios legalmente consagrados, que são, além disso, reforçados. Por acordo entre os vários partidos, os projectos baixam, sem votação, à Comissão da especialidade, a fim de promover o consenso; a 23 de Julho do ano seguinte, o Parlamento aprova, em votação final global, o diploma; a 12 de Agosto do mesmo ano, o Presidente da República promulga a Lei nº 46/2020, que vigora a partir de Setembro. Contudo, como atestam notícias recentes, um ano volvido, alguns dos beneficiários ainda não usufruem plenamente de alguns direitos nela previstos.

Num sketch antigo dos Gato Fedorento, situado numa reunião de condóminos, veem-se os potenciais sucessores da administração incumbente a protelarem continuamente as tarefas a desempenhar, empurrando as pastas uns para os outros durante tanto tempo que, um a um, os corpos se tornam esqueletos. E um observador desprevenido talvez fique com a impressão, justa ou injustamente, de que a morosidade da burocracia se deve a uma inércia propositada. Na verdade, certo é que, seja por ziguezagues decisórios ou incidentes fortuitos, os procedimentos administrativos são, muitas vezes, labirínticos; a actuação executiva debate-se com imprevistos, resistências, limitações, fracassos, mudanças de prioridades; e a discussão sobre as políticas públicas é feita, frequentemente, mais de forma proclamatória do que substantiva. Moral da história? Na prática, a teoria é outra.