No âmbito da reforma do sistema português de controlo de fronteiras, estão em curso alterações ao regime das forças e serviços de segurança interna. Destaco em especial a Proposta de Lei n.º23/XVI/1.ª, de 27 de Setembro, que está a seguir o seu caminho na Assembleia da República. Não é claro onde e como se vai concluir o caminho. Mas é clara a intenção do Governo, com origem no Ministério da Administração Interna (MAI), de reformar a política pública de Autoridade Marítima – e no sentido correto, de acordo com a Constituição (CRP).

A maior alteração que pode iniciar a reforma da Autoridade Marítima expressa-se em poucas, mas poderosas, palavras: a GNR alarga as suas competências do mar territorial a todos os “espaços marítimos sob soberania ou jurisdição nacional” (novo n.º2 do art.3º e novo nº.4 do art.5º da lei 63/2007, lei orgânica da GNR).

Só outra força de segurança tem competências gerais de polícia administrativa em todos os espaços marítimos sob soberania ou jurisdição nacional: a Polícia Marítima (PM). Mas sem lei orgânica e com um estatuto do pessoal obsoleto (decreto-lei 248/95), com escassos recursos e sob o domínio dos dirigentes da Armada, é exígua a sua capacidade no mar. Apesar do nome, pomposo, com raras exceções, nunca passou de uma polícia dos portos e de (algumas) praias.

A Polícia Judiciária (PJ) tem competências reservadas, em terra e em todos os espaços marítimos sob soberania ou jurisdição nacional, mas não é uma força de segurança e ordem pública, é um serviço de investigação criminal.

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Com aquela alteração, ocorre uma sobreposição de competências da GNR e da PM nos espaços marítimos sob soberania ou jurisdição nacional, e um conflito positivo de competências, que é um problema, obviamente identificado pelo Governo. Resolver este problema é a melhor oportunidade para começar a reforma da PM e da Autoridade Marítima, pela fusão da Unidade de Controlo Costeiro e de Fronteiras (UCCF) da GNR e da PM na Guarda Marítima, que defendo, e acabar com o domínio da Armada sobre serviços e uma política que só a distraem daquilo que justifica a sua existência e em que é insubstituível para o país: fazer operações militares no mar. Tal reforma não impede a Armada de apoiar outros serviços públicos, em emergência ou onde tenha capacidades sobrantes.

A Armada não é explicitamente envolvida nesta reforma, nem afetada pelas alterações legislativas previstas na Proposta de Lei n.º23/XVI/1ª. Mas os seus dirigentes perdem poderes fácticos, também porque o Centro de Operações Marítimas (COMAR) da Armada deixa de ter primazia na coordenação de operações de segurança marítima (exceto quando se trate de busca e salvamento marítimo, SAR), coordenação que passa a competir à UCCF da GNR (novo nº1 do art.40.º da lei 63/2007), já equipada para o efeito e com as competências adequadas – ao contrário do COMAR.

De notar que o COMAR é referido na lei orgânica da Marinha (n.º3 do art.35.º do decreto-lei 185/2014, e já vinha de 2009), mas não foi regulamentado pelo Governo (nada consta no decreto-regulamentar 10/2015); assim, está no plano administrativo e fora do domínio – e do escrutínio – público. O vazio legislativo sobre as atribuições e competências do COMAR exige uma clarificação das alterações legislativas previstas neste âmbito: afinal, ninguém sabe ao certo que atribuições e competências tem o COMAR, nem qual a sua estrutura orgânica, nem como se deve concretizar a relação com outros serviços públicos, como a UCCF, nem com os cidadãos (por exemplo, nas missões de SAR).

A perda de poderes fácticos com o novo modelo ficou patente na reação da Armada, divulgada por um dos seus canais mais fiéis; destaco esta afirmação: “sabe o CM, é mal recebido pelas entidades na tutela do Ministério da Defesa que atuam no mar, nomeadamente a Marinha e a Autoridade Marítima (Polícia Marítima), que não aceitarão ter pessoal ou meios coordenados pela GNR nas suas funções […]”. Mas nenhuma delas emitiu posições formais neste âmbito.

Tem décadas a pressão (ou chantagem?) que os dirigentes da Armada faziam, e parece que continuam a fazer, sobre os órgãos de soberania políticos para continuarem a dominar a PM e as capitanias: ameaçavam deixar de atribuir recursos, incluindo meios navais, para apoiar a fiscalização no mar, se não fossem eles a mandar (por isso, foi criada a Autoridade Marítima Nacional, AMN, que é por inerência o comandante da Armada, CEMA) e perdendo benefícios particulares; acham inaceitável a alternativa de, na linguagem corrente dos oficiais da Armada, serem “taxistas” de polícias – embora o sejam da PJ e de polícias de outros países nas missões da Frontex. Esse tipo de pressão acaba, com a entrada em vigor das referidas alterações à lei orgânica da GNR. Não é difícil perceber o desagrado da Armada.

Mais discreta foi a reação do MDN, que disse: “Tenciono atualizar o estatuto e a lei orgânica da Polícia Marítima, garantindo uma adaptação aos nossos tempos”. Ao fim de seis meses ainda não sabe que não há lei orgânica da PM, logo não pode atualizar algo que não existe; e trata-se de uma lei, por isso não depende só dele. E proclama perceber de assuntos militares, porque fez a tropa e como jurista…

De resto, como tem sido usual no Ministério da Defesa Nacional (MDN) durante 40 anos, adivinha-se mais um processo de alterações legislativas no segredo de gabinetes, com uma negociação entre chefe (MDN) e subordinado (CEMA), como se fossem pares. E, mais uma vez, é o próprio ministro (MDN) que exibe o domínio da Armada sobre a PM: o ministro Nuno Melo nem tentou disfarçar dizendo, por exemplo, que ia tratar da matéria com o comandante-geral da PM (CG-PM); não: vai ser em “concertação e com a participação do CEMA” e “ouvida a Polícia Marítima”.

É de notar que o CG-PM é o órgão máximo da PM (art.5º do Estatuto em anexo ao decreto-lei 248/95); por isso, e de acordo com a CRP, depende do Governo através do MDN, e não do comandante da Armada. Mas, há dias na Grécia, o CG-PM não mereceu atenção mediática, e o ministro Nuno Melo deixou-o para trás – e, parecendo querer mostrar que é o seu primeiro apoiante, o ministro Nuno Melo voltou a colocar-se atrás do comandante da Armada, que nem tinha fundamento para ali estar.

Face ao domínio da Armada sobre a PM e as capitanias, em 40 anos, a máxima “melhoria” que os ministros conseguiram foi nada mudar; quando mudaram, acabaram sempre aumentando as inconsistências e a confusão, que a Armada sabe aproveitar a favor dos seus interesses particulares e do seu poder fáctico.

Acresce que o poder político do ministro Nuno Melo é exíguo, largamente por causa das suas gaffes públicas (só as mais mediáticas: NATO; presos para militares; Olivença). Está à vista que foi incapaz de travar ou contrariar a visão do MAI na Proposta de Lei n.º23/XVI/1.ª do Governo; cingiu-se a tentar passar, depois, uma ideia vaga de modernização da PM. Diz que “a Polícia Marítima é insubstituível”, enquanto o Governo de que é membro trata de a substituir; e ele próprio menospreza o CG-PM. E, exibindo a exiguidade do seu poder político, afirmou: “Já assinámos o despacho e foi remetido ao senhor ministro das Finanças” – já é “nós” e assenta no tradicional “lavar das mãos”, ainda por cima revelador de falta de solidariedade institucional. Num processo bem preparado, e para ter êxito, já saberia a posição do Ministério das Finanças.

É tempo de encerrar a fantasiosa “narrativa das poupanças”, que a Armada chama de “duplo uso”, e que é só um pretexto para a Armada dominar a PM e as capitanias, e extrair daí benefícios para os seus. (Provavelmente, seria mais difícil reter oficiais superiores sem tais benefícios, tornando muito improvável que o MDN ou a Armada iniciem qualquer reforma para cumprir a CRP.)

Poupanças de relevo já se podem obter com a fusão da UCCF da GNR com a PM, criando a Guarda Marítima, e com cada serviço público a dedicar-se àquilo que justifica a sua existência e o torna insubstituível, de acordo com a CRP.