Entro no autocarro às cinco da tarde, quando as empregadas cabo-verdianas levam os filhos dos habitantes da Lapa a casa, depois de os irem buscar à escola. Vão conversando com os meninos, que vêm cansados, suados e ensonados. Cabe-lhes dar-lhes banho, esperar pela chegada dos pais, e pôr-se a caminho do lugar onde vivem, atrás do sol posto, para enfim cuidarem dos seus filhos.
Para a menina aninhada ao colo da senhora negra que dela cuida, a senhora é também, pelo menos um pouco, sua mãe. A mulher fala com a menina com a ternura de quem fala com uma filha, pergunta-lhe pelo dia de escola, partilham segredinhos, bichanam ao ouvido uma da outra: a mãe da menina está à espera de bebé, e a ama vai respondendo aos ciúmes que a menina lhe confessa sobre o irmão que ainda não conhece.
Nos seus escritos sobre a hospitalidade, Jacques Derrida perguntou-se se “a questão do estrangeiro” não seria, de facto, “uma questão do estrangeiro”, quer dizer, uma questão “vinda do estrangeiro, de fora”. Esta sugestão convida-nos a confrontar o carácter recalcitrante da chegada do estrangeiro, do estranho, o modo como nos inquieta e aquilo que nos traz. A questão do estrangeiro é assim concebida como uma intimação colocada por aquele que chega, intimação que se inicia com as condições dessa chegada e se prolonga no modo como é acolhido, e lhe é permitido ou não participar plenamente na vida do lugar onde chegou.
Que lugar estará reservado nas vidas comuns para a intimação de que fala Derrida? Se a chegada do estrangeiro nos interpela, a hospitalidade, ou a sua ausência, é possivelmente uma projeção dos nossos medos. Mas será a hospitalidade apenas uma realidade política e económica? Qual a sua dimensão espiritual e individual?
Que pergunta traz o estrangeiro, a que se refere Derrida, que nos seus escritos relembra a natureza provocadora da figura do estrangeiro nos diálogos platónicos? Desde logo, a sua aparição questiona as condições que encontra, o seu corpo é uma interrogação para aqueles com quem se cruza. A chegada do estrangeiro lança sobre os outros, sob a forma de uma provocação muitas vezes confundida com ameaça, a questão de saber quem somos afinal, visto que quem somos se constitui através daquilo em que nos distinguimos uns dos outros. Mais do que as perguntas que traz na bagagem, o estrangeiro é, em si mesmo, uma pergunta: que chega e desassossega o mundo que encontra.
A menina e a senhora no autocarro estão juntas, num momento do dia, dentro de um quadro benévolo de hospitalidade, e depois as suas vidas divergem. A senhora negra volta para casa e, um dia, em definitivo, para a outra vida, que é a sua vida. A menina crescerá, sem que se saiba se recordará ou não para sempre a senhora cabo-verdiana que tomava conta dela. Enquanto não viram costas, importa como são um mesmo corpo — menina e mulher, mãe e filha postiças, no autocarro, a caminho de casa, o modo como não se estranham e se amam. A imagem é tão bela quanto precária e passageira. Mesmo quando abrimos a porta aos outros, os nossos encontros são constrangidos, muitas vezes, por uma duração que não depende de nós. Podemos abrir a porta, ou podem abri-la por nós, mas não sabemos por quanto tempo ela permanecerá aberta. Quando não mandamos nada, resta-nos a lista vã dos vislumbres de luz que vimos pelo caminho.

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