1. A morte de Deus

Na longa lista de nomes que compõem o cânone filosófico ocidental encontram-se alguns filósofos que moldaram de tal forma o nosso modo de pensar que não é possível ignorar a sua influência. É o caso de Platão, Aristóteles, Kant, Hegel. Mas, a par destes nomes, encontramos os irregulares, aqueles com os quais lutamos para compreender as suas ideias, bem como o espaço que ocupam na nossa cultura. Dentro desse grupo, talvez o mais relevante seja Friedrich Nietzsche e a batalha pessoal que cada um de nós trava com as suas ideias, como se estas baralhassem a nossa consciência e nos deixassem na incómoda posição de incerteza. Haverá desconforto maior?

Pensemos na sua famosa observação, em A Gaia Ciência, de que Deus está morto, com as palavras do louco que gritava sem cessar:

“Procuro Deus! Procuro Deus! (…) Para onde foi Deus? É o que lhes vou dizer. Matámo-lo… vocês e eu! Somos nós, nós todos, que somos os seus assassinos!” (125)

Perante a incompreensão da assistência, o insensato continua:

“Esse acontecimento enorme está ainda a caminho, caminha e ainda não chegou ao ouvido dos homens. O relâmpago e o raio precisam de tempo, a luz dos astros precisa de tempo, as ações precisam de tempo, mesmo quando foram efetuadas, para ser vistas e entendidas. Esta ação ainda lhes está mais distante do que as mais distantes constelações; e foram eles contudo que a fizeram!”

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Estávamos no início da década de 1880 e Nietzsche previa já a transformação a que o espírito das luzes e a entronização da ciência conduziriam. E não se tratava de uma festa de libertação e alegria:

“Que fizemos quando desprendemos a corrente que ligava esta terra ao Sol? Para onde vai ela agora? Para onde vamos nós próprios? Longe de todos os sóis? Não estaremos incessantemente a cair? Para diante, para trás, para o lado, para todos os lados? Haverá ainda um acima, um abaixo? Não estaremos errando através de um vazio infinito? Não sentiremos na face o sopro do vazio? Não fará mais frio? Não aparecem sempre noites, cada vez mais noites? Não será preciso acender os candeeiros logo de manhã?”

A morte de Deus conduziria a um período de caos e sofrimento e as sociedades cairiam no niilismo. Só depois disso, diz-nos Nietzsche, se abriria a oportunidade para uma nova moralidade e um novo homem – no final, uma nova sociedade. Alguns nietzschianos ainda anseiam por esse novo mundo; os insensatos desconfiam.

2. A doutrina social da Igreja

Nietzsche viveu e escreveu num período de profundas mudanças sociais e onde já se adivinhavam os desafios que a Igreja teria de enfrentar, nomeadamente, o de fazer prova de que a sua longa experiência teórica e prática lhe permitiria ter algo a dizer sobre este mundo em mudança. Foi o que o Papa Leão XIII se propôs fazer quando lançou as bases para o pensamento social católico, em 1891, com a publicação da encíclica Rerum novarum.

Em bom rigor, a doutrina social da Igreja é devedora de uma tradição milenar e não começa com esta encíclica. Mas, como se afirma no Compêndio da Doutrina Social da Igreja, “a Encíclica Rerum Novarum dá início a um novo caminho: inserindo-se numa tradição plurissecular, ela assinala um novo início e um substancial desenvolvimento do ensinamento em campo social” (87). E é neste caminho, iniciado por Leão XIII e continuado pelos Papas seguintes, que encontramos um corpus filosófico que contribui para a compreensão do mundo e do homem.

Um dos princípios fundamentais desse corpus filosófico remete para um argumento antropológico: a doutrina social católica parte de um determinado entendimento sobre o homem e a natureza humana, e das implicações que daí decorrem, para pensar a organização social e política do mundo. Hoje muitos contestam a autoridade da Igreja sobre estas matérias, mas é difícil desmentir o valor de um pensamento que é resultado de uma longa reflexão sobre as intuições antigas e a experiência do tempo.

Ora, aceitando que uma instituição tão antiga tem algo a dizer sobre o homem, o que podemos retirar desse entendimento antropológico? Em primeiro lugar, a dimensão eminentemente social do ser humano. Para a Igreja, assim como para os filósofos da antiguidade, o homem é um ser social por natureza, o que significa que foi feito para viver em condições de sociabilidade e se realiza nessa vivência social, nomeadamente enquanto ser capaz de virtude. É também este o ensinamento aristotélico, o de que a polis é necessária para uma vida boa – não uma vida de conforto e riqueza, mas uma vida virtuosa.

Este entendimento antropológico coloca muitas vezes a Igreja em colisão com o pensamento moderno que resulta de um liberalismo exacerbado que entende o indivíduo, isolado e anterior à sociedade, como o paradigma de reflexão. Mas não a aproxima das conceções coletivistas. Recordemos João Paulo II, que, na encíclica que celebra os cem anos da Rerum Novarum, intitulada Centesimus annus, afirma:

“O erro fundamental do socialismo é de carácter antropológico. De facto, ele considera cada homem simplesmente como um elemento e uma molécula do organismo social, de tal modo que o bem do indivíduo aparece totalmente subordinado ao funcionamento do mecanismo económico-social, enquanto, por outro lado, defende que esse mesmo bem se pode realizar prescindindo da livre opção, da sua única e exclusiva decisão responsável em face do bem ou do mal. O homem é reduzido a uma série de relações sociais, e desaparece o conceito de pessoa como sujeito autónomo de decisão moral, que constrói, através dessa decisão, o ordenamento social.” (13)

A autonomia individual revela-se, assim, fundamental pois é no exercício dessa autonomia que a virtude pode ser praticada, o mesmo é dizer, que nos podemos tornar virtuosos. Novamente Aristóteles: é pela prática da virtude que nos tomamos virtuosos; é adquirindo o hábito da virtude que nos tornamos virtuosos. Uma sociedade que não garanta esse espaço de autonomia não permite uma vida boa.

E esta reflexão ética permite-nos identificar mais um elemento da compreensão antropológica da Igreja. Ao contrário do que algumas teorias modernas apregoam, desde Jean-Jacques Rousseau a Paulo Freire, o homem não nasce bom sendo corrompido pela sociedade. O ser humano é capaz do bem e do mal e é essa natureza pecadora que a Igreja retrata com o conceito de “pecado original” – e que G.K. Chesterton comenta espirituosamente:

“Certos novos teólogos contestam o pecado original, que é a única parte da teologia cristã que pode realmente ser provada.”

Mas como vivemos em sociedades abertas temos a oportunidade de exercitar todos os dias a nossa bondade.

3. Regressar à sabedoria antiga

Mais de cem anos depois do aviso de Nietzsche, talvez seja hoje mais fácil compreender o impacto das Luzes e das revoluções científicas e tecnológicas nas sociedades ocidentais. O cientista cognitivo John Vervaeke fala, a esse propósito, de uma “meaning crisis”, que justificaria o niilismo que nos rodeia. Curiosamente, é a própria ciência que nos faz regressar ao passado e Vervaeke faz convergir os desenvolvimentos mais recentes das ciências cognitivas com a sabedoria dos antigos para responder a esta “crise de sentido”.

Afinal, como disse recentemente a rabino Delphine Horvilleur em entrevista ao Expresso:

“Como rabino, tento ensinar histórias da minha tradição. É frequente considerarmos as histórias religiosas como antigas ou ligadas aos nossos antepassados, mas isso é errado: as histórias são sagradas não porque aconteceram mas porque acontecem. Elas podem ser significativas para uma nova geração que as interpretará à luz do seu próprio contexto.”

A minha preferência continua, contudo, a recair no psicólogo social Jonathan Haidt, que, antes de se dedicar à “geração ansiosa”, já tinha demonstrado como as ferramentas das antigas filosofias e religiões se revelam as mais adequadas para lidar com o modo como o nosso cérebro funciona. A metáfora usada por Haidt para representar a nossa mente é particularmente incisiva. Ela seria como um enorme elefante controlado por um pequeno cornaca: o elefante representa as nossas emoções, os nossos instintos, os nossos impulsos – é o mecanismo de resposta mais imediato e foi fundamental para a nossa sobrevivência evolutiva; já o cornaca representa o lado racional, ponderado, sensato: ele não tem força para controlar o elefante, mas pode treiná-lo por forma a não estarmos meramente sujeitos aos seus ímpetos. E as tradições antigas, que resistiram ao teste do tempo, ensinaram sempre a treinar o elefante: meditar, orar, refletir; e praticar a bondade, a caridade e a gratidão.

Nietzsche parece, assim, ter intuído algo de fundamental: quando matamos Deus, destruímos o nosso compasso moral, adquirido ao longo de sucessivas gerações, e, sem ele, resta-nos o niilismo e o caos social. Mas se alguns permanecem nietzschianos, vendo na ciência um caminho para o transumanismo e o super-homem, parece mais sensato compreender como a ciência nos faz regressar às sabedorias antigas para termos um correto entendimento da natureza humana.