Deixei de sublinhar os livros há uns anos. Antes, sublinhava muito, acabando por destruí-los, a lápis ou esferográfica, sem qualquer respeito ou comedimento. Reencontro de vez em quando esses desenhos: riscos, grandes pontos de exclamação, setas, triângulos, sinais de alarme, sorrisos, corações. São como uma língua paralela, e como um livro paralelo, inscrito sobre aquele que li. Contam sobre a descoberta e a excitação, o reconhecimento, a frustração, a incompreensão, o deslumbramento.

Mas já não sublinho os livros. Anoto frases e palavras numa folha separada como quem rouba moedas — e depois perco essa folha.

Abrindo livros antigos, damos de caras com pessoas desconhecidas. Deixámos de conseguir perceber os nossos próprios sinais. Já não sabemos por que sublinhámos certos versos, que já não nos dizem nada. Não entendemos a ênfase, nem a paixão.

Não sei se os nossos sublinhados são auto-retratos necessariamente esquivos e deformados, mas muitas vezes são dos poucos vestígios ainda acessíveis da sensibilidade das pessoas que éramos.

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Abrindo um livro tirado da estante, revejo sublinhados antigos com desconforto. Comparados com as fotografias antigas, os sublinhados não são mudos, nem tão mentirosos. Revelam-nos na nossa ligação com as frases de outros. Testemunham não um monólogo mas uma conversa de surdos.

Mostram-nos vulneráveis na companhia das palavras de outra pessoa — espontâneos, mordidos, embalados, a salvo de juízos. São uma sismografia: um registo das vibrações da privacidade.

Apesar disso, é difícil reconhecermo-nos neles: talvez hoje sublinhássemos e anotássemos outras coisas e talvez fôssemos sugestionados por outras ainda. A frase hoje importante é a que está ao lado daquela que sublinhámos há vinte anos.

Não nos reconhecermos nos sublinhados antigos mostra que já não somos os mesmos, ainda que respondamos pelo mesmo nome e que os livros velhos ainda sejam nossos. Esses livros continuam guardados nas nossas estantes, mas os seus donos talvez se tenham mudado sem paradeiro. Os sublinhados antigos lembram a bagunça que um bando de ladrões deixa para trás, quando assalta uma casa. O rasto das nossas leituras parece-nos por vezes tão arbitrário e frustrante como uma casa virada do avesso.

Talvez os sublinhados antigos não sejam sequer auto-retratos, mas obras de autor desconhecido, como as nossas vidas. Então, paramos de sublinhar os livros para deixar tudo intocado, para fazer de conta que não é nada assim.

Djaimilia Pereira de Almeida é autora de Esse cabelo (Teorema, 2015) e Ajudar a cair (FFMS, 2017).