Quando li que o governo “recomendou”, ou vai “recomendar” a proibição dos telemóveis até ao 2.º ciclo, a minha reacção imediata foi averiguar o que é o 2.º ciclo. É o “preparatório” do meu tempo, informaram-me sem grande paciência. Depois perguntei a que propósito os cachopos andam com telemóveis na escola. Não me responderam. A medida deve ser das coisas mais bem intencionadas e mais inúteis que consigo imaginar.

Houve um período, para aí há uma dúzia, dúzia e meia de anos, em que me interessava por estes assuntos. Na época, escrevi na Sábado e no DN o que, à distância, me parecem ser demasiadas crónicas sobre criancinhas e o futuro que esperava as criancinhas após se desenvolverem (força de expressão) num ambiente excessivamente protegido e tecnologicamente anestesiado. Não eram crónicas optimistas. Se bem me lembro, e dado que o caso não exigia especiais dons de vidência, foram certeiras. E certeiras a ponto de, sem que eu o decidisse ou sequer me apercebesse, a partir de determinada altura ter abandonado o tema para sempre. Ou quase, se contar com o presente artigo. É possível que o meu inconsciente, a existir, soubesse com antecipação o que o meu consciente, de existência intermitente, teimava em ignorar: já não valia a pena.

Impedir em 2024 os meninos e as meninas de aceder ao telemóvel no expediente escolar é o mesmo que vedar a um apreciador de carne o bife ao almoço. Não é por isso que ele deixará de ser carnívoro – e de resto pode jantar posta de vitela e cear faisão. Agora é tarde, e Inês, se não é morta, é pelo menos tão dependente do iPhone ou do Samsung que, privada da engenhoca, dificilmente desatará a adquirir com toda a pressa as “competências sociais” e a autonomia que jamais possuiu e conheceu. O provável é que a pobre Inês passe o recreio a contemplar a parede como um zombie sem apetite por cérebros. Ou sem cérebros nas proximidades.

Não admira. E não falo de nada aparentado à “erudição”, a “erudição” ligeira que antigamente talvez incluísse alguma familiaridade com os “clássicos” russos e a relevância de Steinmetz. Sei de adolescentes a roçar a idade adulta, filhos e filhas de pais licenciados de classe média, que não conseguem acertar na capital de França, ou identificar Paul McCartney, ou – felizardos – nomear o presidente em funções (digamos) da República portuguesa. Em contrapartida, são altamente versados e versadas em “dancinhas” do TikTok e youtubers “engraçados”. E em joguinhos com bonecos e sanfona. Além disso, encontram-se actualizadíssimos em matéria de filtros fotográficos para o Instagram. Na oralidade, substituíram o anacrónico “sim” por “iá”, sessenta por cento das restantes palavras por “tipo”, e quarenta por cento por brasileirismos em voga ou anglicismos que decoraram. Embora não garanta que o QI das recentes gerações baixou, “facto” que uns estudos afirmam e outros negam, afirmo a pés juntos que, por isto e por aquilo, as recentes gerações assustam.

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Assustam, não surpreendem. Uma abundante literatura “reaccionária” previu o casamento entre a erosão da exigência educativa e o advento destas criaturinhas excessivamente mimadas, dependentes, vigiadas, susceptíveis e, admita-se, assaz ignorantes. Para citar exemplos, o Closing of the American Mind, de Allan Bloom, é de 1987. Em 1998, antes da democratização dos telemóveis e da alvorada da internet, Melanie Phillips publicou All Must Have Prizes. A Nation of Wimps, de Hara Marano, que aponta holofotes para a “parentalidade” sufocante, saiu em 2008 e ainda só descreve a influência dos telemóveis básicos, toscos porém suficientes para alimentar o controlo e a fragilidade dos petizes. E The Anxious Generation, de Jonathan Haidt, é de Março passado e não esgota as consequências nos meros problemas de aprendizagem e socialização: o autor atribui à veneração permanente dos telemóveis e da internet em geral a responsabilidade por abalos graves na saúde mental da criançada, que hoje abarca gente com 25 ou 30 anos.

A chatice é que semelhantes mudanças, e semelhantes mutantes, não caem do céu. Os telemóveis também não. Instada a comentar a “recomendação” do governo, a Confederação Nacional de Associações de Pais (CONFAP) acha que “o telemóvel é uma ferramenta de segurança e monitorização para os pais”. Pois é. E esse, quer a CONFAP perceba ou não, é que é o ponto. As crianças usam telemóvel na escola porque a vasta maioria dos pais deseja que o façam, de modo a manter o vínculo (“o umbilical eterno”, na expressão de uma psicóloga), “ficar descansados” e assegurar-se que os rebentos regressam inteiros a casa, onde continuam a fitar o ecrã que calhar pelo serão afora. Assim não incomodam os progenitores, igualmente colados às emoções do WhatsApp ou de uns retratos a que chamam “stories”. Tais pais, tais filhos: para todos a proficiência da miudagem na matemática ou no português nunca é a principal preocupação. E não será uma restrição facultativa e manca e limitada a uma fracção do percurso escolar a modificar o que se tornou uma espécie de vida, se um simulacro é viver.

Se quiserem forçar comparações e inventar um consolo, lembrem-se que Sócrates, o grego não o “engenheiro”, se afligia com o impacto da escrita na memória humana. E que os críticos de Gutenberg acusavam a imprensa de fomentar a preguiça. E que a escrita de Nietzsche se alterou no dia em que ele trocou a caneta pela máquina de escrever. Mas não há consolo nenhum, e as comparações não são razoáveis. O que está em curso é um curioso processo de regressão civilizacional, que a retirada dos telemóveis das escolas talvez atrase em cinco minutos. E eu nem sou dos que acham as maquinetas completamente desprovidas de utilidade, sobretudo se estiverem a ler esta crónica numa.