Vivemos tempos em que a crise económica e social desafia milhões de pessoas a manterem um mínimo de dignidade. A inflação corrói o poder de compra, os preços dos alimentos sobem a níveis alarmantes e a insegurança alimentar espalha-se por diversas regiões, inclusive na própria Europa. É nesse cenário que nos deparamos com uma decisão estarrecedora: o uso de dinheiro público para destruir vinhas e outros alimentos.
Recentemente, a União Europeia aprovou medidas para financiar a destruição de vinhas em algumas regiões de França, numa tentativa de equilibrar a oferta e a procura de vinho. São 120 milhões de euros da União destinados a tal fim. A decisão de destruir vinhas com o dinheiro dos contribuintes revela um profundo descompasso entre as elites políticas e a realidade da população. Enquanto famílias lutam para colocar comida na mesa, vê-se um setor agrícola a ser pago para inutilizar alimentos. A inflação está a pesar fortemente no bolso dos cidadãos, que já sofrem com o aumento dos preços de itens básicos como frutas, verduras e cereais. A redução dos preços das uvas ou vinhos no mercado poderia, ao menos, aliviar parte desse fardo, tornando esses produtos acessíveis e, ao mesmo tempo, evitando desperdícios.
Em vez de procurar soluções criativas e socialmente responsáveis para o excedente de produção, como a redução dos preços no mercado ou a doação de produtos a regiões em crise, o caminho escolhido foi o da destruição pura e simples. Não se pode deixar de criticar duramente essa postura, que ignora a grave situação enfrentada por milhões de europeus e desperdiça recursos que poderiam ser destinados a necessidades muito mais urgentes.
A destruição de alimentos como medida para “corrigir o mercado” é moralmente indefensável. Há países em crise humanitária que poderiam beneficiar-se dessas uvas, regiões da Europa onde a fome e a pobreza são realidades diárias, e, ainda assim, recursos estão a ser mobilizados para eliminar alimentos em perfeito estado. Para além disso, o argumento económico de que destruir vinhas é necessário para ajustar a oferta de vinho é frágil. Existem alternativas para lidar com o excesso de produção sem recorrer à destruição. Por que não investir esses fundos na modernização das vinícolas, na diversificação da produção agrícola ou em políticas que incentivem o consumo local a preços mais acessíveis?
Além do impacto social, essa política coloca em risco a sustentabilidade do setor vitivinícola. A reputação dos vinhos europeus sempre esteve ligada à sua qualidade, mas a destruição massiva de vinhas poderia desvalorizar o produto e reduzir o prestígio dos vinicultores. Medidas de longo prazo, como o investimento em novas tecnologias e a adaptação a mercados emergentes, seriam soluções muito mais adequadas e éticas do que o pagamento para eliminar o fruto de tanto trabalho.
Enquanto o dinheiro público é canalizado para destruir alimentos, muitas áreas essenciais são negligenciadas. O sistema de saúde continua carente de recursos, estando à beira do colapso em muitos países incluindo Portugal, a educação sofre com cortes orçamentais em vários países e também por parte da própria União Europeia que recentemente anunciou um corte de € 295 milhões do programa Erasmus para o ano de 2025, e milhões de famílias lutam para sobreviver em meio ao aumento do custo de vida. É inconcebível que, diante de tantas necessidades urgentes, a prioridade seja destruir algo que, se bem administrado, poderia ser parte da solução para mitigar os efeitos da crise.
É hora de exigir mais responsabilidade dos nossos líderes e de cobrar políticas públicas que priorizem o bem-estar social e a sustentabilidade. Desperdiçar dinheiro público para destruir alimentos não é apenas um erro económico – é um erro moral. Os cidadãos europeus merecem que seus impostos sejam usados para enfrentar os desafios reais da atualidade, e não para alimentar um sistema que incentiva o desperdício em tempos de necessidade. Além disso, a França vem atentando constantemente contra os interesses da União, como por exemplo a oposição ao acordo UE-Mercosul, mas isso é um tema para outro texto.