As recentes revelações feitas pelo Papa Francisco, num livro de pendor autobiográfico sobre o conclave de 2005, têm causado estupefação. Nelas, Francisco revela que se sentiu “usado” em algo que poderíamos facilmente denominar de lobby ou conspiração, com intenções claras de influenciar a eleição do novo Papa. A ideia de suspeição, conluio e intriga, a perspetiva segundo a qual tudo na Igreja é um imenso manto de encobrimento e falsidade, os pedidos urgentes de regresso à pureza perdida não se fizeram esperar. “Afinal, não é o Espírito Santo que ‘preside’ à eleição do sucessor de Pedro ou tudo não passa de conversa fiada?”, leu-se em alguns lugares. Mas, sobre este assunto há duas considerações ou, talvez, até três, que não podem deixar de ser feitas.

A primeira prende-se com o seguinte: os crentes acreditam realmente que é o Espírito Santo que “preside” à eleição papal, mas não são parvos ao ponto de acharem que há um compartimento no teto da Capela Sistina, que abre para que uma pomba branca, dotada de uma anila celeste, desça, a fim de comunicar o nome do vencedor. Não sei se vou destruir a sensibilidade a alguém, mas o Espírito Santo não é para os cristãos uma espécie de fada madrinha, grilo falante ou paralelo dos efeitos especiais dos filmes de ficção científica. De facto, do mesmo modo que a Bíblia, para os crentes inspirada por Deus não nos chegou instantaneamente por via de um gasoduto divino, mas através de diferentes fontes, manuscritos e tradições também o conclave não está imune a qualquer uma destas circunstâncias. Aliás, a força da ideia da inspiração do Espírito Santo é a convicção de que, muito embora os possíveis grupos de interesses, o candidato certo é sempre escolhido. Isto não legitima, claro, um clima evidentemente pouco cristão, rodeado de cumplicidades menos transparentes, mas visa mostrar que os crentes acreditam que Deus será sempre capaz de furar por meio deste.

Mas esta questão leva-nos a outra mais abrangente. Até que ponto a nossa leitura da história não é demasiado mitológica? O espanto pelas afirmações do Papa acontece só por se tratar da Igreja – e daí se esperar “algo mais” – ou revelam uma visão extremamente romântica da realidade? Ninguém duvida, acredito eu, na incrível importância que constituiu a 13ª emenda à Constituição dos Estados Unidos da América através da qual se aboliu a escravatura. Mas, o que achariam se soubessem que Lincoln pediu aos seus colaboradores mais próximos para conseguirem votos no senado por qualquer meio, incluindo subornos diretos, através de fundos detidos por William H. Seward, então Secretário de Estado? Considerariam a abolição da escravatura um ato ilegítimo? Não creio.

O certo é que um não pouco significativo número de decisões históricas, que hoje balizamos como essenciais, foram conseguidas com métodos moralmente inversos à bondade que lhes atribuímos de olhos fechados. Tal como um não pequeno contingente dos nossos heróis coletivos, foi tão, e nalguns casos mais sanguinário, que os que consideramos inimigos da humanidade.

No meio de tudo isto há uma tendência que se confirma. Ser contra o Papa dá um certo prestígio intelectual. Há uns anos atrás, seria impensável que um padre ou um crente se pronunciasse levantando dúvidas sobre a atuação do Papa. Hoje em dia não só isso é possível, como parece que até é desejável para dar um ar de agudeza e sagacidade intelectual. Há uns anos atrás, quem defendia o Papa e seguia as suas propostas era conservador e fiel. Hoje, é leviano e relativista. São inversões curiosas. E para tal, não é preciso ser um paladino contrário a Francisco. Basta “deixar uma simples ressalva”, um insivo “mas”.

Todos os pontificados têm altos e baixos, pontos positivos e pontos negativos. Isso é claro. Muito embora haja a inclinação para se acreditar que se Bento XVI ou João Paulo II estivessem vivos, e respondessem a um questionário de verão, que lhes perguntava qual o seu maior defeito, apontariam o clássico, “confiar demasiado nas pessoas”, o que é o equivalente a responder “sou tão bonzinho que até a minha virtude se torna defeito”. Ora, tal não é verdade. E, se existe alguma possibilidade de escolher entre a descrita “impureza” do presente e a afamada “pureza” do passado, talvez, o mais certo seja duvidar a segunda e optar, urgentemente, pela primeira. Afinal, como em tudo, as mitologia são sempre sucessos de venda, mas raramente inocentes.

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