Desde a noite de terça-feira da semana passada, que a cidade de Barcelona tem sido o epicentro de uma onda de protestos, com milhares de pessoas nas ruas, principalmente concentradas durante a noite – gerando uma espiral de violência que não parece prestes a acalmar -, que dura há praticamente uma semana. Até hoje, já cerca de uma centena de pessoas foi detida na sequência de várias noites de confrontos entre manifestantes e polícia. Esta onda de violência foi-se propagando a outras grandes cidades espanholas com uma proliferação de actos de vandalismo, com elevados prejuízos e danos materiais muito significativos. Em Madrid, os distúrbios da zona da Puerta del Sol foram particularmente violentos. Também em Valência a se assistiu a graves distúrbios.

Quem, em Portugal, observar um noticiário nocturno espanhol logo pensará que a Espanha está a ferro e fogo.

Por isso importa perceber: o que é que está acontecer em Espanha? E mais importante: qual o papel da política e da tribalização do discurso das esquerdas espanholas neste quadro de violência?

A história tem um gatilho: o evento imediato que levou ao escalar da violência nas ruas espanholas foi a prisão do músico catalão Pablo Hasél.

Pablo Rivadulla Duro, mais conhecido pela personagem rapper Pablo Hasél, foi condenado em 2 de Março de 2018 a uma pena de dois anos e um dia de prisão, acrescida de uma multa de 24.300 euros, pelos crimes de glorificação do terrorismo e de insultos à Coroa e às instituições, agravados pela sua expressão e repercussão pública nas redes sociais. Após o recurso, que suspendeu a execução da pena, a sentença foi reduzida, já em 2020, para nove meses de prisão e multa pecuniária. Em 28 de Janeiro de 2021, as autoridades judiciais espanholas deram a Hasél dez dias para entrar voluntariamente na prisão. Após ter sido notificado, o rapper recusou a sua entrada voluntária na prisão de Ponent de Lleida e, para escapar à prisão, que classificou como uma “humilhação indigna”, barricou-se, em 15 de Fevereiro, com um grupo de apoiantes na Universidade de Lleida (na Catalunha). No dia seguinte, os Mossos d’Esquadra (a polícia autonómica catalã) fizeram cumprir o mandato judicial e a legalidade estatal espanhola, entraram nas instalações universitárias e prenderam o rapper recalcitrante.

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As manifestações pela liberdade de Hasél, e contra a Justiça espanhola, que até aí se tinham circunscrito a petições e manifestos, saltaram de imediato para as ruas numa explosão de violência.

Para uns, Pablo Hasél representa o herói, o artista esmagado por um Estado opressor, cujas canções são uma legítima arma de resistência. Pablo Hasél seria, assim, um campeão da liberdade que paga com a sua prisão a defesa da liberdade de expressão.

Para outros, não passa de um provocador, de um delinquente, de um apologista da violência.

As opiniões extremaram-se e radicalizaram-se. E, de certa forma, representam as duas Espanhas que se detestam e se enfrentam sem chão comum.

Convém, no entanto, não cair em falsas equivalências morais: o rapper em causa não é nenhum cidadão exemplar, nem é flor que se cheire. Tem um passado criminal crivado de condenações, que compõem um padrão evidente de discurso de ódio e de glorificação da violência. A lista de processos judiciais em que esteve envolvido é longa e inclui condenações por agressão, por ameaças e por desobediência e resistência às autoridades.

Em 2014, Pablo Hasél foi condenado a dois anos de prisão por glorificar o terrorismo pelo conteúdo das letras das suas canções  – principalmente uma delas: “Democracia Su Puta Madre” – nas quais não só elogiava as organizações terroristas dos GRAPO, da Fracção do Exército Vermelho, da ETA, e da Terra Lliure, como também apelava a que retomassem a sua acção terrorista.

Antes disso, em 2010, em “En una calle olvidada”, Hasél diz que se devia “matar José María Aznar”, o antigo presidente do Governo, e no tema “Menti-Ros” (2014) defendia que um antigo presidente da câmara de Lérida “merece levar um tiro”. Citações como “mereces uma bomba, televisão espanhola”, “pena de morte já para as infantas patéticas” (as infantas são duas meninas de 15 e 13 anos) e “oxalá voltem os GRAPO e te ponham de joelhos” são uma pequena amostra do nível do artista.

Em Maio de 2014, no Dia de Sant Jordi (o Dia de São Jorge, dia festivo tradicional da Catalunha), foi detido, desta vez conjuntamente com um grupo de 15 pessoas, por desacatos e por agressões a dirigentes de uma associação cultural espanholista, que provocaram ferimentos em quatro desses dirigentes que necessitaram de tratamento hospitalar. Em Junho de 2016, agrediu um jornalista da TV3 com um líquido tóxico. E ainda na semana passada (no passado dia 18 de Fevereiro), o tribunal de Lleida (Catalunha) voltou a condená-lo a outra pena, desta feita de dois anos e meio de prisão, por obstrução à Justiça e por ter ameaçado violentamente uma testemunha judicial – crimes esses cometidos em 2017.

Em qualquer país democrático ocidental este rapper não seria considerado apenas como um artista, mas igualmente como um verdadeiro perigo social.

No entanto, há que fazer uma leitura mais abrangente da situação espanhola, pois estão em concurso duas Espanhas e estão também em disputa dois campos nacionalistas catalães.

Para o separatismo catalão a Espanha é um Estado opressor. Logo, a Espanha não é um Estado com legitimidade democrática, uma vez que é caracterizado como uma potência ocupante de um outro país (a Catalunha).

Sendo assim, para o separatismo republicano catalão, a prisão de Pablo Hasél é apenas mais uma peça de um longo processo de luta que só terminará com a eliminação na Catalunha de todos os vestígios do poder central espanhol e com a sonhada independência catalã.

Não é uma questão de defesa da liberdade de expressão: é a defesa de um dos seus através do confronto com um Estado que eles procuram deslegitimar como a expressão legal de um legado fascista que perdura na Justiça, na monarquia e, grosso modo, em todas as instituições estatais que representem a ordem constitucional espanhola.

Esta visão radical do separatismo catalão, expressa agora nas ruas, já está a complicar as negociações para a formação do próximo governo autonómico: os nacionalistas mais pragmáticos, que privilegiam uma abordagem negociada com o governo central madrileno e de lenta erosão do animus unitário espanholista através da desacreditação moral da monarquia que garante a unidade espanhola, dependem agora, no parlamento catalão, do apoio dos nove deputados separatistas da CUP (extrema-esquerda independentista de carácter basista).

A CUP aposta numa abordagem de enfrentamento popular e de resistência prisional, uma espécie de adaptação mais suave da estratégia republicana irlandesa dos Troubles na Irlanda do Norte, dos anos 70 (atrito e radicalização das ruas em Espanha, mas sem a componente do elemento terrorista do IRA, factor alheio à tradição separatista catalã). A CUP exige agora, para viabilizar um governo em Barcelona de feição nacionalista catalã, uma depuração nos Mossos d’Esquadra que acusa de ser um braço coercivo da legalidade espanhola. Ora, esta exigência é incomportável para as outras formações nacionalistas catalãs de governo (a ERC e o Junts per Catalunya), uma vez que o poder de auto-governo que querem manter é legalmente e escrupulosamente delimitado no âmbito geral constitucional do Estado espanhol.

Um bloqueio político na Catalunha.

Mas é também entre as esquerdas espanholistas (que governam em Madrid com o apoio tácito dos nacionalistas catalães e bascos) que esta situação é dilacerante.

Durante esta semana, as manifestações levaram a uma cisão ainda maior entre os dois partidos no poder, o PSOE e o Unidas Podemos, e antecipam uma nova crise política no país.

No início da semana, o Unidas Podemos colocou-se imediatamente do lado dos manifestantes, manifestando-se contra a condenação do rapper e contra a actuação da polícia, sem condenar a onda de violência que tem varrido várias cidades do país. O partido, através do seu porta-voz, Pablo Echenique, expressou “todo” o seu apoio “aos jovens antifascistas que estão a pedir justiça e liberdade de expressão nas ruas”. O Podemos anunciou igualmente que iria promover a concessão de um indulto a Hasél. E alguns dirigentes do Podemos deslegitimaram igualmente as forças policiais, chegando ao ponto de qualificar a sua intervenção em defesa da ordem pública e da propriedade e da integridade física das pessoas como meras “represálias” policiais.

É preciso perceber-se que a génese do Podemos é a da recusa pós-comunista do consenso político pactuado pela transição espanhola. O seu manifesto fundador tem como objectivo declarado “convertir la indignación en cambio político”. Para o Podemos (e para o que resta da Esquerda Unida que lhe é adjacente) a rua tem igual legitimidade política à das instituições democráticas representativas. Até tem uma legitimidade estética e moral superior. Os pressupostos de uma ambicionada democracia directa e de uma democracia de constantes avanços progressistas não encaixam facilmente nos pressupostos de uma democracia representativa, assente em instituições, e num quadro constitucional, cujo objectivo é precisamente o de conservar as instituições e a unidade política do país.

É o dilema do Podemos: é difícil querer governar pela rua e romper pelas instituições.

Repare-se: enquanto o coração das bases do Podemos está com os manifestantes das ruas, os seus dirigentes estão sentados no governo espanhol em Madrid: o Unidas Podemos controla cinco ministérios (o Ministério das Universidades, o Ministério do Trabalho e da Economia Social, o Ministério dos Assuntos dos Consumidores, o Ministério dos Assuntos Sociais e o Ministério da Igualdade – nestes últimos dois ministérios os respectivos ministros são marido e mulher, caso que, como sabemos, não sendo uma originalidade espanhola, não deixa de ser uma originalidade das esquerdas ibéricas) e o Unidas Podemos tem-lhe igualmente confiada uma das três vice-presidências do governo (Pablo Iglesias acumula a segunda vice-presidência do governo com os Assuntos Sociais e com a Agenda 2030 – uma parte do bolo da bazuca europeia que ele disputa com o PSOE).

O Unidas Podemos gere uma parte do orçamento espanhol, tem clientelas na administração do Estado e, por maioria de razão, é parte interessada na continuidade do mesmo Estado onde agora está instalado. Mas no entanto contribui abertamente para o deslegitimar contestando a sua própria ordem jurídica.

Naturalmente, que em qualquer país normal e funcional seria impossível conviver por muito tempo com uma realidade destas, em que o governo é co-formado por uma formação política que está com um pé dentro do Conselho de Ministros, e com outro pé nas manifestações de rua.

E assim, este arranjo frentista de esquerda que constitui o segundo governo de Pedro Sanchez começa a abrir frechas. Dentro do governo, a primeira vice-presidente do executivo, Carmen Calvo, e o ministro do Interior, tiveram de vir a terreiro condenar a violência, defender a ordem pública e constitucional e condenar as posições sublevacionistas dos seus sócios de governo. O ministro do Interior, Fernando Grande-Marlaska (um antigo juíz-presidente da Audiência Nacional de Madrid, que julgou na sua carreira vários casos de terrorismo, e que já enfrentou várias ameaças à sua vida, tanto por causa da sua acção como juiz, como por causa da sua orientação sexual), defendeu sem rodeios a actuação das forças policiais, que, de acordo com as suas palavras, garantem “os direitos e liberdades contra uma minoria que, com um conceito errado de direitos, faz uso da violência”.

Finalmente, Pedro Sánchez, apertado por todos os lados, com perturbação nas ruas, com os seus parceiros radicais a defender os corajosos anti-fascistas que destroem carros e partem montras, e com outra parte dos seus ministros a defenderem a lei e a ordem, quebrou o silêncio ao fim de três dias, para enfim condenar a violência e o vandalismo.

A verdade é que o governo espanhol é hoje puzzle precário, mantido sobretudo pelo oportunismo e pela falta de escrúpulos políticos de Pablo Sanchez, a que agora se costuma chamar de “habilidade”. A sua única obsessão é a da manutenção no poder, ainda que sem as condições de fazer as reformas de que o Estado espanhol precisa para se reerguer.

O objectivo: aguentar até chegar a bazuca europeia e aí comprar mais poder, e por mais tempo, com a injecção massiva de dinheiro em todos os grupos de interesse e em todas as estruturas políticas territoriais espanholas.

A Espanha é, assim, a vítima da confluência de três abordagens egoístas das suas três esquerdas: uma esquerda separatista que incita à violência, uma esquerda radical podemita que desculpabiliza a violência e uma esquerda socialista ambígua que faz jogos cínicos em cima da violência.

Esta é uma confluência de três egoísmos que bloqueia a Espanha, presa de um clima de radicalização política e de tribalização sectária, que ameaça seriamente o seu futuro.

Mas é igualmente uma confluência que à direita não encontra parceiro possível para desbloquear o nó político espanhol, uma vez que também a direita espanhola está impotente, bloqueada e dilacerada.

É certo que a situação política portuguesa não é comparável à complexidade da situação espanhola. Mas esta semana de violência espanhola, tão mal explicada e tão mal enquadrada pela nossa comunicação social, não deixa de ser um bom cautionary tale para cenários sombrios de futuros governos progressistas de coligação entre a ala pedronunista do PS e a esquerda bloquista.

Por fim, não deixa igualmente de ser extraordinário que a mesma esquerda cultural portuguesa, que tanto se tem batido em Portugal contra o discurso de ódio e contra a sua expressão nas redes sociais, se levante agora em defesa da liberdade do rapper catalão Pablo Hasél em manifestos e petições de apelo à sua libertação e a exigirem que o governo português “se distancie da condenação do artista”.

Artista espanhol que, convém recordar, defende publicamente a morte de pessoas, inclusive a tiro, que faz a apologia de ataques à bomba, que pede o regresso da ETA e dos GRAPO e que até propõe a pena de morte para meninas de 15 e de 13 anos.

Estas palavras serão certamente contextualizadas como sendo “apenas metáforas”. Isto porque, como todos sabemos, as palavras só poderão ser odiosas e só poderão magoar se forem proferidas pela direita.

Porque, como todos sabemos, a esquerda é incapaz de odiar. Só cria metáforas.