Quando o Generalíssimo Franco morreu, em Novembro de 1975, a Espanha já não tinha império nem colónias. Tivera o seu “ano negro” imperial em 1898, com os desastres de Cuba, de Porto Rico e das Filipinas; no século XX, tivera também desastres militares – em Marrocos – de que tirara a desforra numa guerra em que o futuro Caudilho se distinguiu. E mais tarde descolonizara Fernando Pó, Ano-Bom e o resto da Guiné Espanhola. E com a “Marcha Verde” dos marroquinos, na agonia de Franco, fechara-se definitivamente o ciclo imperial.

Por isso, em 1975, foi possível a solução que Franco deixara – restauração-instituição da Monarquia, com D. Juan Carlos de Borbón como Rei – no quadro de uma transição para a democracia parlamentar e liberal.

A transição democrática e os separatismos

A transição espanhola fez-se, assim, com algumas dificuldades e acidentes de percurso, mas rapidamente se consolidou. A maior dificuldade veio dos separatismos armados, sobretudo da campanha terrorista da ETA, no País Basco, que esteve a ponto de provocar uma intervenção militar. Mas o Rei e Adolfo Suárez conseguiram controlar a situação; também porque para a direita e para os militares, a Coroa era o legado de Franco; e para a esquerda e os revolucionários, era o salvo-conduto para a democracia.

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O problema estava nos separatismos ou nacionalitarismos, sobretudo basco e catalão. Os Bascos foram para estratégias paralelas, com uma linha ordeira – a do PNV, um partido centro direitista economicamente, mas nacionalista basco – e a ETA, uma organização armada radical separatista. Na Catalunha, os radicais armados foram sol de pouca dura, e Jordi Pujol e a sua Convergència Democràtica de Catalunya iniciaram uma longa marcha para o independentismo, uma marcha “gramsciana”, transformando o catalão na língua veicular dominante na região autónoma catalã e reforçando competências governativas.

A democracia espanhola funcionaria em bipolaridade com dois partidos em rotatividade – os socialistas, à esquerda, e os populares, à direita. Mas ambos os partidos, porque precisavam do apoio em Madrid dos Bascos e dos Catalães, e com os olhos já postos na Europa, foram concedendo autonomia a Bilbao e a Barcelona.

Esta progressiva concessão de poderes às comunidades autónomas, longe de aplacar os apetites secessionistas, acabou por acirrá-los, exacerbá-los e consolidá-los. A Espanha democrática ressuscitou um problema nacional pendente, que se agravou nos últimos anos, principalmente na Catalunha, onde o separatismo cresceu pelas brechas da política errática do PP de Mariano Rajoy.

À volta da radicalização da situação catalã, o Ciudadanos, um partido novo surgido na Catalunha em 2006 contra o separatismo e a corrupção, alcançou grandes vitórias em 2017 e 2018.

Perante algum titubear do Partido Popular, também o Vox, de Santiago Abascal, um antigo quadro do PP no País Basco, cresceu exponencialmente desde a sua fundação em 2014. Com uma equipa inteligente, coerente e combativa o Vox surgira a defender a unidade da Espanha e a obrigar o leque partidário a reequilibrar à direita.

Em Maio de 2016, também se criara à esquerda uma frente comum, o Unidas Podemos, liderado por Pablo Iglesias Turrión, resultante da coligação de vários partidos de esquerda radical, à volta de um projecto que visava suplantar o PSOE, que consideravam demasiadamente moderado. E assim, com mais três partidos, um à direita, outro à esquerda, e um outro, o Ciudadanos, ao centro, as tensões separatistas acabaram com o bipartidarismo em Espanha.

O Partido Socialista de Pedro Sanchez recorreu ao Podemos para formar governo. E um governo com uma maioria parlamentar reduzida – e refém dos partidos bascos e catalães – a gerir uma pandemia, só podia gerar tensões e descontentamento no quadro nacional. Daí, também, que Isabel Ayuso, a Presidente da Comunidade Autónoma de Madrid, temendo ser derrubada por um “golpe de Estado” do Partido Ciudadanos com o PSOE, tivesse provocado eleições antecipadas.

A batalha por Madrid

Eleições para a Comunidade de Madrid que foram ganhas pela Direita – pelo Partido Popular, um partido de centro-direita, de direita conservadora-liberal, mas liderado em Madrid por Isabel Ayuso, que sempre declarou não ter qualquer dificuldade em aliar-se com a Direita mais à direita, no caso, com a direita nacionalista do Vox.

E foi com esta direita normal, sem complexos de esquerda ou de centro, que Ayuso mais que duplicou o número de lugares na Assembleia de Madrid, “comendo” o centro-esquerda do Ciudadanos e ganhando em quase todos os municípios da comunidade de Madrid (mais precisamente em 176 dos 179 municípios). Incluindo os da “cintura vermelha”. Só duas povoações resistiram à vaga azul – El Atazar, com 112 habitantes, que votou no socialista Gabilondo; e Fuentidueña de Tajo, com 2.000 habitantes, que fez o mesmo. E houve um empate em San Mamés, na Sierra Norte.

Difícil imaginar maior vitória, com povoações como Leganés, Fuenlabrada, Parla, Getafe, Alcorcón e Móstoles, tradicionalmente “de esquerda”, a darem a maioria ao Partido Popular.

Em 2019, o PSOE ficara à frente na Comunidade de Madrid, com 27% dos votos e 37 lugares na Assembleia madrilena (num total de 132); em segundo ficara o PP, com 22% dos votos e 30 lugares; em terceiro, o Ciudadanos, com 19,5% e 26 lugares; a seguir, a coligação de extrema esquerda Más Madrid, com cerca de 15% do e 20 lugares; depois, o Vox, com 9% e 12 lugares; e no fim o Unidas Podemos, com 5,6% e 7 deputados.

Os Vencidos

A abstenção tinha sido, em 2019, de cerca de 36%. Foi, por isso, a primeira grande derrotada desta eleição de 4 de Maio que, apesar da pandemia e das restrições sanitárias, se ficou pelos 24% com a afluência a ultrapassar os 76%.

Outro grande derrotado foi o partido Ciudadanos. O Ciudadanos teve o seu grande sucesso quando, há uns 15 anos, apareceu corajosamente na Catalunha em nome da “maioria silenciosa” não-separatista. Também graças à graça da sua líder Inés Arrimadas, uma surpresa na política espanhola. Depois, com meneios aos socialistas e a obsessão do centrismo correcto, queimaram-se perante o povo da direita, farto do radicalismo comunista, encarnado pelo Unidas Podemos e, sobretudo, pelo seu líder, Pablo Iglésias, outro grande derrotado do 4 de Maio. Derrota merecida para um político exibicionista, arrogante, que lançou como dilema eleitoral aos madrilenos, “Democracia ou Fascismo”. Disse o amigo de Caracas em entrevista, no Domingo, 2 de Maio, ao El País:

“Existe uma ameaça fascista em Espanha e na Europa. Há quem circunscreva o fascismo às experiências históricas da Alemanha nazi e da Itália fascista na década de 1930. Mas o que vimos nos Estados Unidos nos últimos tempos com Trump, pode ser descrito como fascismo. Vimo-lo também no Brasil, com Bolsonaro.”

Mas o “rigor” do ex-professor doutorado em Ciência Política parece não ter cativado ou impressionado especialmente os madrilenos, que preferiram os “fascistas” do Vox aos “democratas” do Podemos. Com alguma razão, o antigo primeiro-ministro e ex-líder do PSOE, Felipe González, dizia que algumas pretensões do Vox o perturbavam menos que as tentações do Podemos e dos “leninistas puros” que o dirigiam; e que o governo de coligação de Sánchez lhe parecia “o camarote dos irmãos Marx”. E é este o “marxismo-leninismo” que hoje nos oferecem.

Os outros vencidos foram os socialistas do PSOE, que passaram de 37 lugares para 24 e, no voto popular, de 27% para 16,85%, e que foram superados em votos, ainda que por pouco mais de 4.000, pelos esquerdistas do Más Madrid.

Em resumo, a Esquerda – a moderada do PSOE e a radical do Podemos – perdeu. Más Madrid, uma dissidência do Podemos, liderada por Mónica Garcia, salvou a honra do convento esquerdista. Mas, no seu conjunto, a soma das três esquerdas – PSOE, Más Madrid, e Podemos – teve menos votos que o PP de Ayuso.

As vencedoras

Ayuso foi a grande vencedora: passou de 720 mil votos para 1 620.000, mais que duplicando o número de sufrágios em dois anos. E fê-lo proclamando uma direita claramente anti-esquerda e sem “cercas sanitárias” (em flagrante contraste com o líder Pablo Casado, aparentemente mais preocupado em demarcar-se do Vox do que em combater o inimigo principal).

E na medida em que aguentou a pressão do voto útil em Ayuso, que poderia tê-lo prejudicado muito, o Vox também foi um dos vencedores. Passou de 12 para 13 lugares e teve mais 43.000 votos populares, aguentando-se bem na rua contra o acosso, o discurso do ódio, as violências extremistas e a censura, as provocações e a discriminação dos media. E, mais importante, segurou a necessidade da sua colaboração por acção e abstenção para governar a Comunidade. Colaboração que a candidata, Rocio Monasterio, já disse que não regateava.

Também vencedores saem os extremos – que não se tocam: além do Vox, que fixou um eleitorado sob a tentação da direita popular “musculada” de Ayuso, e que aguentou a sua fidelidade ao partido do nacionalismo espanhol, criado para defender a unidade de Espanha, à esquerda, o Más Madrid, ao superar em votos populares o PSOE, aguentou uma imagem de marca de esquerda radical, aparentemente menos arrogante que o Podemos de Iglesias, mas com as mesmas origens ideológicas e centrada nos mesmos valores.

Vencedoras ainda, as mulheres políticas: o trio Isabel Ayuso, PP, Rocio Monasterio, Vox, e Mónica Garcia, Más Madrid, que entre as três ganharam 102 lugares em 136, enquanto os três homens, Angel Gabilondo, PSOE, Pablo Iglesias, Podemos, e Edmundo Val, Ciudadanos, com 34, perderam em toda a linha.

Ventos de Madrid

O que é que se aprende, à direita, com as eleições da Comunidade de Madrid?

Isabel Ayuso não teve medo, nem de arriscar o lugar, antecipando-se à “traição” do Ciudadanos e convocando eleições, nem de mostrar as suas convicções, nem de marcar as suas alianças. Não teve medo nem complexos de centro, e muito menos de esquerda. Fez campanha em toda a Comunidade, inclusive na cintura vermelha. E ganhou.

Seguindo o princípio maurrasiano “pas d’ennemi à droite”, Ayuso fez uma frente nacional e popular contra a “esquerda unida”, uma autêntica Frente Popular moderna; não desprezando e antes contando com o Vox, que com quadros bem preparados e articulados, pensa estrategicamente e aguenta o confronto de rua.

E ao contrário do que acontece em Portugal, em que a comunicação social portuguesa é muito uniformizada e partidarizada à esquerda, em Espanha, a par de uma maioria alinhada, existem importantes meios de comunicação mais independentes, numa linha nacional, liberal ou conservadora, com diários como o ABC, o El Mundo e o La Razón.

De qualquer forma, a direita, ou a não-esquerda portuguesa, terá muito a aprender com os bons ventos que, por uma vez, nos vêm de Espanha.