As pessoas politicamente correctas que proliferam nas redacções de muitos jornais, na área de ciências sociais e humanas da academia, em muitas das cadeiras da ONU e na sociedade em geral, acreditam piamente que existe um privilégio branco, isto é, uma suposta posição de vantagem de que todas as pessoas brancas beneficiariam, face aos não-brancos, pelo simples facto de o serem. Um privilégio que, dizem-nos, e relativamente aos afro-descendentes, assentaria numa desigualdade histórica construída pela escravatura, pela colonização e pelo trabalho forçado, que teria inferiorizado os negros — todos os negros — pelo simples facto de o serem.
Ainda que isso não seja frontalmente assumido, essa teoria procura criar em todos os brancos um sentimento de dívida para com a humanidade não-branca. Daí decorre uma ideologia que é uma espécie de racismo invertido, isto é, que instila em muitos, sobretudo nos jovens universitários — e, eventualmente, em cada vez maior número —, um sentimento de culpa e uma certa timidez ou acanhamento, em certos contextos, em função da cor da pele. Ou seja, essa ideologia converte os brancos em agentes de todos os malefícios, de todas as crueldades, e tenta impor-lhes que vivam de olhos baixos e mãos no peito, em constantes actos de contrição e em declarações de arrependimento pelo seu suposto privilégio e pelas acções dos seus antepassados. Não é por acaso que na recente canção “White Privilege”, o jovem actor e cantor Sam Fender confessa que quer ser “anybody but me” e acrescenta: “I’m a white male, full of shame, my ancestry is evil, and their evil is still not gone”.
É claro que Sam Fender é inglês e que, em Inglaterra, o wokismo, a descolonização da História, o politicamento correcto e o correspondente cancelamento dos que são supostamente incorrectos foram levados e elevados aos píncaros do absurdo. Não se pense, porém, que este sentimento de responsabilidade histórica por se ser branco e descendente de gentes que dominaram o mundo e que o fizeram, muitas vezes, com grande brutalidade e métodos contestáveis ou sanguinários, não existe entre os jovens de outros países ocidentais. Há anos, quando eu ainda dava aulas, um aluno contou-me que ia a sair da Biblioteca Nacional para fumar um cigarro e, já no jardim do Campo Grande, foi abordado por um indivíduo negro que, de mão estendida e uma história mal contada lhe pediu dinheiro para poder regressar ao seu país. Apesar de perceber que aquilo era tudo uma grande treta, o meu aluno, não tendo suficiente dinheiro consigo, reentrou com o pedinte no edifício da biblioteca, deitou mão a uma esferográfica e passou-lhe um cheque — ainda se usavam cheques — de um valor relativamente grande. Percebeu depois, falando com várias pessoas, que o havia feito por um genérico sentimento de culpa relativamente ao mundo tropical e colonial.
Este episódio mostra que aquilo que Sam Fender canta — “I’m a white male, full of shame”, etc. — é um sentimento que não é de hoje e que se encontra difundido entre os jovens brancos com formação académica e excesso de escrúpulos. Ora, os radicais de esquerda são extraordinariamente bons a explorar ambas as coisas. Fazem-no apoiando-se na História e veiculando uma versão dos acontecimentos tão simplificada e unilateral que equivale a uma falsificação. Essa falsificação ou adulteração é flagrante no que se relaciona com a história da escravatura e dos impérios coloniais, mas outras vezes é mais subtil. É o caso, por exemplo, da ideia de que os brancos ocidentais seriam mais agressivos e destrutivos do que os outros povos. E, para supostamente o provar, falam-nos, de relance e em registo de conversa de café, das Cruzadas ou, num registo mais elaborado, de estudos supostamente científicos segundo os quais as nações europeias teriam estado mais tempo em guerras, e mais mortíferas, do que as de outros continentes. É falso que assim seja. A imagem da Europa como o mais agressivo e belicista dos mundos é um disparate que no que concerne às Cruzadas, não leva em consideração a história do mundo árabe como agressor e invasor, e que, no quadro geral da duração e letalidade das guerras, é fruto da ignorância e da idealização do que teria sido a vida noutras partes do planeta. O facto, porém, é que esta falsidade vai passando por verdade histórica ou científica e vai adubando a terra para nela se plantar o sentimento de culpa de que falei acima.
Ora, é preciso dizer e repetir à exaustão que não há razão para que os herdeiros, continuadores e supostos guardiões da cultura clássica e cristã se envergonhem da sua cultura e do seu passado. A par da violência e da barbaridade — inegáveis — que impregnaram parte da história do Ocidente, há acontecimentos, descobertas e figuras extraordinárias nessa história. E se hoje em dia o mundo ocidental está onde está isso deve-se não à cor da pele, nem a supostos privilégios daí decorrentes, mas ao esforço continuado de muitos dos que nele viveram. Era bom que não ficássemos encadeados, hipnotizados, pelos faróis dos horrores que se fizeram no Ocidente, nem pela interpretação marxista da História, a ponto de não vermos, também, o enorme bem que aqui se fez.
Os defensores da tese do privilégio e da culpa do homem branco dirão, contrapondo, que também se fez bem, e por vezes até melhor, noutras paragens e culturas. Admitamos que sim, ainda que em muitos casos isso não seja documentável. Mas o facto de o admitirmos, enquanto princípio teórico, não deve fazer-nos esquecer o bem que o mundo deve ao Ocidente. E se os mais empedernidos apontadores dos malefícios brancos continuarem a duvidar desse bem e a insistir na tecla das equivalências culturais proponham-lhes uma pequena experiência: se as culturas são todas equivalentes no dia em que tiverem uma pneumonia — coisa que obviamente não lhes desejo, é apenas um cenário de debate — deitem fora os últimos 150 anos de medicina ocidental, rejeitem a consulta do médico ensinado e treinado à maneira ocidental, e chamem, em sua substituição, um curandeiro índio para os curar com mezinhas e amuletos. Ah, e mais uma coisa: boa sorte!
As culturas serão todas equivalentes, mas essa máxima pode, na prática, ser mistificadora se nos impedir de ver que as culturas, sendo antropologicamente equivalentes, não são igualmente capazes de lidar de forma eficaz com a realidade. Certas culturas são ou foram mais férteis do que outras. E a cultura ocidental tem sido fértil e tem permitido que se faça muita coisa positiva, nomeadamente no campo da igualdade.
O Ocidente tem várias coroas de glória não apenas nas áreas da ciência, do humanitarismo, do progresso técnico e industrial. Tem-nas, também, nos planos político e social, nomeadamente a de acabar com as prerrogativas ligadas ao nascimento e à classe. Isso faz com que, num mundo como o nosso, tão aberto, mutável e concorrencial, os únicos privilégios que existem sejam momentâneos. De facto, neste mundo nada obsta a que uma pessoa não-branca, desde que tenha merecimento, possa singrar. Dito de outro modo, não há nenhum privilégio branco. O que há (ou houve) é uma posição de domínio dos ocidentais, posição que foi obtida com muito sangue, suor e lágrimas, muita artimanha e brutalidade, mas também com muito altruísmo, filantropia e bondade. Mas essa posição não exclui ninguém. Há centenas de exemplos em todas as esferas da actividade humana. Nas nossas sociedades modernas, abertas e democráticas, não existem a não ser pontual e transitoriamente situações de regalia. Elas regem-se não pela epiderme ou pelo nascimento, mas pelo mérito que, como se sabe, não tem cor. Felizmente.