Inspirada em factos verídicos, imaginei uma conversa completamente ficcionada entre dois indivíduos norte-americanos (convenientemente falam os dois português) O primeiro vive em 2024 e está muito entusiasmado com a disputa que se avizinha entre Kamala e Trump, o segundo indivíduo vive em 1964 e, por isso, o indivíduo de 2024 está muito entusiasmado por elucidar o seu amigo de 1964 sobre como vai o mundo.

2024: A Kamala já não fica atrás do Trump.

1964: Ai sim, tem-lhe corrido bem a campanha?

O amigo de 2024 desembolsa um telemóvel topo de gama com um fervor desmesurado.

2024: Qual campanha, criou o tik-tok! Está imbatível, 3.6 milhões de seguidores em menos de 1 semana!

1964: Criou o quê, o toque?

2024: Tik-tok, é uma rede social, quem não tem está morto, completamente out.

1964: Mas isso funciona como, distribui-se na rua? Ela escreve lá, difunde o seu programa?

2024: Não, achas, já ninguém lê, ela desfila!

1964: Desfila?

2024: Olha, os Obama ligaram-lhe, depois explico-te, foi o primeiro presidente negro, esteve super na moda, e a Kamala fez um vídeo no tik-tok a mostrar que os Obama lhe ligaram.

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1964: Mas como é que ela sabia que eles iam ligar-lhe naquele momento em que ela estava a filmar?

2024 (ri-se): Ah amigo, é essa a magia, é tudo encenado, ela parece uma modelo, desfila, sorri, são todos melhores amigos e o pessoal adora ver estas coisas.

O amigo de 1964 faz uma expressão céptica.

2024: Ela não pode ficar para trás, o Trump já tem tik-tok há séculos! É a melhor forma de chegar aos jovens, e a toda a gente no geral, olha se os Beatles ainda estivessem aí, eram a maior trend do tik-tok.

1964: Mas isso é um fingimento, não é? Que ficam as pessoas a saber sobre a Kamala ou sobre o Trump?

2024: Essa é a melhor parte: não ficam a saber nada. Imagina um ator de cinema, é isso que o Trump e a Kamala são neste momento. A maioria das pessoas olha para eles sem qualquer informação coerente nem consistente, olham para eles como heróis de um filme de cowboys, escolhem o que vestir o chapéu mais giro.

O amigo de 2024 ri-se à gargalhada.

1964: Isso não parece tão divertido como tu pensas.

2024: Então não é, é show, amigo, reality show 24 horas por dia, e o melhor, não pagas!

1964: Não sei se não pagarás… Então, e vais votar em quem afinal?

2024: Ah eu não sou um cata-vento que para aqui anda, ainda vão ter de me conquistar, amigo, até novembro ainda há muito a fazer, o que me divertir mais há de ter o meu voto.

O amigo de 2024 fica maluco e grita:

2024: A Kamala vai entrar em live!

O amigo de 1964 fica sozinho no escuro, apenas com a luz do telemóvel a iluminar as pupilas do amigo de 2024. Quando volta ao seu mundo real, o amigo de 1964 emite um comunicado para os seus conterrâneos:

“Caros cidadãos,

Tive o privilégio de fazer uma pequena incursão ao ano de 2024. Já agora, sabem que no ano de 2024 é visto com maus olhos escrever apenas cidadãos? Temos de escrever várias coisas, cidadãs, crianças, pessoas que menstruam, pessoas que sabem dançar o fandango…

As notícias que vos trago são calamitosas. Dentro de 60 anos, os seres humanos não serão iguais a nós. Gostam ainda mais de fingir e de mentir do que nós. Criaram um telefone portátil que ofusca o olhar e os ouvidos, parece cinema, mas de má qualidade. Saltaram todos para dentro desses telefones e gritam de lá de dentro. É um som ensurdecedor e é através desses telefones que se decidem eleições, imagine-se! Já praticamente não se lê e é através de vídeos acelerados a altos berros que se informam. Não sei como vos explicar a matéria-prima destas imagens, mas imaginem uma publicidade acelerada, curta e enganosa. A diferença é que estes nossos caros amigos de 2024 não sabem que estão a ser enganados ou, pior, sabem e permitem-no.”

Será que sabemos que estamos a ser enganados? Será que sabemos que o fingimento e o show business das redes sociais está a alastrar a todos os campos da nossa vida? Será que temos noção do ridículo que é os nossos jovens e não jovens acreditarem no que veem no tik-tok? Será possível que a única versão que conhecemos dos nossos líderes mundiais, nacionais, até dos nossos amigos… seja a versão tik-tok? Será possível que já não seja possível conhecer as pessoas em 3D, em directo, em velocidade “lenta”? Será que não esteve já mais longe o dia em que vamos sentir vontade de acelerar a conversa chata do nosso amigo? Parecendo que não, as conversas da vida real demoram mais do que vídeos animados de 60 segundos. “Vou votar no que me diverte mais”, diz o amigo de 2024. Alguém ainda duvida que seja assim?