Fiquemos pelo eufemismo: já todos perdemos a conta aos momentos menos felizes de Marcelo Rebelo de Sousa. Dos abusos na Igreja que não lhe pareciam particularmente elevados, ao pedido ao Reino Unido para não fechar os voos para o Algarve, em tempo de Covid, em nome da nossa “velha aliança”. Mas, curiosamente, Marcelo, que puxa do argumento da História para responder a uma questão de saúde pública, não se lembra dele quando o tema é identidade nacional.

A semana que passou impressiona mesmo o mais imunizado em matéria de marcelices. Começou com uma análise futebolística não encomendada a gabar o facto de termos esmagado o poderoso Luxemburgo, seguiu desenfreada com os comentários ao decote de uma popular e acabou, estampada no fundo, com o épico discurso do “we are bacalhau”. Portugal não tem bem um Presidente; tem um tio extrovertido num casamento.

Em Toronto, perante uma plateia de imigrantes, foi isto que saiu a Marcelo: “Of course we are fado, We are bacalhau. We are caldo verde, we are cozido à portuguesa. We are the vira, and the corridinho, and the fandango. We are all of this. We have a soul. We are Cristiano Ronaldo. We are so many champions, in so many fields, but the best champions of Portugal are you, the Portuguese people. E agora, como prometido, vou abraçar e beijar todas e todos. E tirar uma selfie com cada qual.

Ignoremos o pormenor de o Presidente achar que a única coisa que requeria tradução neste discurso seriam as palavras “nós somos”. Ignoremos “a alma” ali caída do nada. Ignoremos os “tantos campeões, em tantas áreas”, mas só se lembrar do inevitável Ronaldo, há 20 anos agitado por toda a gente em todo o santo discurso do género bacoco orgulho pátrio. Ignoremos até a questão já levantada por muitos comentadores de o discurso ser completamente indiferente a toda e qualquer das dificuldades por que os portugueses passam no presente. Sem dinheiro para pagar a casa, sem dinheiro para o combustível, sem professores para os seus filhos, sem um médico que os atenda.

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Fiquemos pelo passado. Fiquemos pela ideia de identidade nacional. Fiquemos pela ideia de galvanizar a plateia, que seria, supostamente, o objectivo de Marcelo. Mesmo ficando apenas por isto, este discurso é uma só coisa: miserável.

Não lhe ocorreu o oceano nem o lugar no mapa. A língua nem a História. Não lhe ocorreu a saudade, a navegação, a religião, Viriato, a resistência à romanização e a romanização, a influência árabe e a reconquista, o fazermo-nos ao mar, porque nos bloqueavam a Europa. Não lhe ocorreu Dom Afonso Henriques, nem Dom Dinis, nem Santa Isabel, nem Nuno Álvares Pereira, nem o Infante, nem a Ínclita Geração, nem Dom João II, nem Dom Manuel I, nem Afonso de Albuquerque. Não lhe ocorreu Pêro Vaz de Caminha, nem Espinoza, nem Ribeiro Sanches, nem Egas Moniz. Não lhe ocorreu, ao menos, um pouco de literatura. Camões, Pessoa, Sophia, Eça, Camilo, Mendes Pinto, Saramago, qualquer coisa. Não lhe ocorreu nem Fernão de Magalhães, mesmo tendo acabado de vir de uma cerimónia numa fundação em seu nome. Não lhe ocorreu sequer o Sebastianismo. O V Império, Mafra, a Batalha, Alcobaça, os Jerónimos. Não lhe ocorreu Tordesilhas nem o Ultimato. Não lhe ocorreu o terramoto de 1755, nem o fatalismo, nem a melancolia, mas também o pragmatismo, a resistência, a capacidade de adaptação. Não lhe ocorreram os planos de voar, de Bartolomeu de Gusmão à travessia do Atlântico Sul. Não lhe ocorreram Nemésio nem Tolentino, Paula Rego, Almada, Amadeo, Vieira da Silva, Bocage, a Biblioteca Joanina, a vertigem da paisagem das ilhas nem a fúria vulcânica, nem as guerras peninsulares, nem a guerra civil, nem ao menos o 25 de Abril, que anda sempre na boca e na lapela dos que lhe querem bem e dos que apenas querem parecer bem.

Marcelo reduziu um dos mais antigos estados-nação do mundo a uma tasca onde se come, dança o vira e vê a bola. E é com isto que espera contribuir para um povo unido e confiante nas suas capacidades. Se não percebeu o que fez, é grave; se percebeu, mais grave ainda. Não lhe faltam o conhecimento histórico nem a cultura. Mas talvez ache que, para quem é, we are bacalhau basta. E que com isto entusiasma a plateia. Com um “vocês são os melhores”, com que nem o mais fabricado artista da canção ligeira consegue já convencer uma audiência.

A única coisa que este discurso teve a ver com imigração foi que deve ter dado vontade a mais uns quantos de emigrar.

Os símbolos da nação e os seus representantes servem para garantir a sua unidade. É difícil resistir à erosão do tempo, ao esquecimento, ao simplismo, ao relativismo, ao sincretismo, à lenta dissolução da identidade de um país perante o bombardeamento cultural contínuo das nações mais poderosas. Mas Marcelo aceita, alegremente, nem sequer tentar. Aceita, aliás, fazer exactamente o contrário: ser um dos principais agentes da nossa lenta redução a nada, à estupidificação massiva, ao baixar contínuo da fasquia até ao nível dos calcanhares.

Entretanto, temos um país de rastos na educação, na saúde, na habitação, na justiça, na defesa, na independência energética. Um país onde ninguém, nenhum líder, nos está a preparar para os desafios tremendos do futuro imediato, das alterações climáticas, da revolução tecnológica e do nascimento de uma nova ordem mundial. Já não sabíamos para onde íamos; aos poucos, vamos deixar de saber sequer de onde viemos. Leiam a vossa Agustina, o vosso Teixeira de Pascoaes, o vosso Agostinho da Silva. E preparem-se para a pancada.