73 anos depois, “O Pátio das Cantigas” está de regresso aos cinemas portugueses. Mas quem, a partir desta quinta-feira, comprar bilhete e se sentar na sala escura, não vai encontrar o clássico português a preto e branco. Nos papéis de Narciso e Evaristo não vai ver Vasco Santana nem António Silva, mas sim o humorista César Mourão e o ator Miguel Guilherme, respetivamente. Rosa, por quem os dois protagonistas suspiram, também já não é uma respeitável viúva, mas sim uma jovem cujos vestidos revelam mais curvas do que seria permitido aos bons costumes do Estado Novo. “Vivemos tempos muito mais interessantes do que quando aquele foi feito”, diz ao Observador Pedro Varela, o criador do guião deste “O Pátio das Cantigas” versão século XXI.
O realizador Leonel Vieira e Pedro Varela podiam ter aproveitado a compra dos direitos da obra e reutilizado o argumento escrito por Vasco Santana e pelos irmãos Francisco Ribeiro e António Lopes Ribeiro. Em vez disso, quiseram criar um guião inspirado e fugiram da cópia. “O que temos aqui são pequenas inspirações. Há poucas cenas que podemos colar ao original”, explica o guionista em entrevista telefónica, a partir de Espanha.
Entremos então neste Pátio das Cantigas, versão 2015. Evaristo (Miguel Guilherme) tem uma mercearia gourmet. A viúva Rosa é agora uma jovem interpretada por Dânia Neto, que trabalha numa loja de um centro comercial e também num hostel. Duas coisas que nenhum português de 1942 iria perceber o que são. Narciso (César Mourão) é irmão gémeo de Rufino (Manuel Marques) e conduz os turistas numa tuk-tuk. Carlos Bonito (Rui Unas) é um ex-fuzileiro que agora é bombeiro com o sonho de ser ator. Celeste é a filha adolescente de Evaristo que não tira os olhos do telemóvel, a não ser para olhar para João Magrinho (Aldo Lima). O bairro inteiro acompanha fervorosamente o desejo de Amália (Sara Matos) de se tornar famosa num programa televisivo de talentos.
“Quando comecei a preparar o guião, fiz algumas visitas pelos bairros de Lisboa, de Alfama à Madragoa, de calção e maquina fotográfica como se fosse turista. Vi uma Lisboa que eu não conhecia”, conta o guionista de 41 anos, que em 2013 escreveu e realizou a série televisiva “Os Filhos do Rock”. A multiculturalidade é representada pela família indiana Shanta, que substitui o russo Boris Gunov da película original. O Engenhocas foi transformado em Joca (José Pedro Vasconcelos), em representação “do marialva de bairro que ainda existe nos bairros típicos”. Daqui a 73 anos, é este o retrato de Lisboa que vão ter aqueles que decidirem ver “O Pátio das Cantigas” de Leonel Vieira.
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A célebre frase “Ó Evaristo, tens cá disto?” não é dita uma única vez sem ser com alterações. “Ó Evaristo, não tens cá wifi?”, atira a certa altura Narciso. O icónico diálogo entre Vasco Santana e o candeeiro foi totalmente alterado, mas está lá presente. “Uma coisa é não repetir as cenas. Outra é abandonar de todo uma cena que toda a gente está à espera que aconteça. O ‘dessincronizado’, o ‘camelo’, as pessoas querem voltar a ouvir”, explica o guionista.
“É impossível ter a piada que aquilo tinha no contexto que era. Vivemos tempos muito mais interessantes do que quando aquilo foi feito, na minha opinião“. Para Pedro Varela, atravessa-se uma era de distrações, pouco compatível com os “filmes simples da época”. Mas houve um esforço de fazer algumas homenagens.
“‘O Pátio das Cantigas’ é muito feito em mosaico, com pequenas histórias, à teatro de revista. O que se fez aqui 73 anos depois é esse transporte. O César Mourão está a fazer cinema pela primeira vez. Há muita gente que se foi buscar à comédia. Esta opção é um remake, ir buscar gente de fora do cinema. Até porque em Portugal faz-se pouco cinema, há poucos atores só de cinema.”
Pedro Varela nasceu 32 anos depois da estreia de “O Pátio das Cantigas”, realizado por Francisco Ribeiro, mas lembra-se de ver o filme várias vezes nas tardes da RTP2, durante a adolescência. Voltou a revê-lo agora, por motivos profissionais. Atualmente, não acredita que as gerações mais novas alguma vez tenham visto os filmes da chamada “idade de ouro” do cinema português.
“Tenho um filho de 15 anos que, apesar de ser um miúdo muito atento, não conhece. Os filmes não têm repetido como repetiam antes na televisão, por isso acredito que haja uma fatia muito grande dos espectadores que não tem referências. Vai ser engraçado as pessoas perceberem o que é e depois irem ver o original”, diz.
O guionista não participou na construção da obra após o guião e ainda não viu a versão final do filme. “Fui vendo partes que o Leonel Vieira me ia mostrando, diverti-me muito, mas ainda não o vi inteiro”, confidencia. A última cena acaba com o elenco a protagonizar uma coreografia à Bollywood no casamento entre Joca e a filha de Shanta, mas não foi escrita para ser assim. “A cena final era a peça Romeu e Julieta no teatro e o casamento era para os créditos”, explica Pedro Varela.
“O Pátio das Cantigas” é a primeira versão renovada de uma série de três clássicos que vão ter nova roupagem. O segundo vai ser “O Leão da Estrela”, também com Miguel Guilherme e Dânia Neto no elenco e realização de Leonel Vieira, com estreia agendada para Natal. O terceiro será “A Canção de Lisboa”, com guião e realização de Pedro Varela e “um contexto político muito forte”, promete, aproveitando para justificar a ausência de um “contexto social” mais vincado nesta primeira obra agora estreada.
É que se “O Pátio das Cantigas” de 1942 tinha alguma crítica herdada do teatro de revista, assim como mensagens subliminares de propaganda ao Estado Novo, na nova versão as pistas não são políticas mas sim publicitárias, em forma de product placement. A única cerveja bebida em todo o bairro é da marca Sagres. A RTP, que coproduziu o projeto, é o único canal de televisão que se vê e os CTT são presença constante. “O carteiro nasceu primeiro que o patrocínio dos CTT, fui eu que o criei”, esclarece Pedro Varela, que destaca “a inteligência de Leonel Vieira, que viu ali uma oportunidade de rentabilizar o projeto”.
O guião para “O Pátio das Cantigas” tinha 120 páginas, mas nem todas chegaram ao grande ecrã para não alongar o filme. As cenas em falta vão passar na RTP no final do ano, em formato série de três episódios, com 45 minutos cada um.