O caminho para chegar à liderança do PS estava a ser delineado há mais tempo do que aquele que o secretário geral do PS gosta de admitir. Um ano antes do desafio a António José Seguro, António Costa alinhou conversas, recrutou aliados e até pediu uma sondagem para saber o que aconteceria nas autárquicas se não fosse ele novamente o candidato a presidente da Câmara de Lisboa. Esta sondagem é uma das muitas revelações que constam no livro dos jornalistas do Expresso Bernardo Ferrão e Cristina Figueiredo, “Quem disse que era fácil?”.
A obra, que sai quarta-feira para as livrarias, tem depoimentos com revelações inéditas de ex-líderes do partido como António Guterres e Jorge Sampaio e de outros socialistas como António Vitorino e Francisco Assis ou de adversários políticos como Paulo Portas ou Miguel Relvas. O livro é uma “espécie” de biografia de António Costa, feita “contra a vontade do próprio” e envolta em algumas dificuldades – tentativas de bloqueios e desmarcações de conversas com entrevistados amigos de Costa depois de este os ter desaconselhado a colaborarem no livro, como contam os próprios autores.
“Quem disse que era fácil?” é a questão que dá corpo ao livro que revela conversas e mensagens escritas entre o secretário geral do PS e muitos intervenientes da vida política desde os tempos da vida académica até aos dias mais recentes. O livro documenta vários factos e tem revelações sobre a atitude de António Costa nos períodos mais quentes da história do PS. O mais recente tem a ver com revelações sobre a disputa pela liderança com António José Seguro, antes mesmo de esta se tornar efetiva com a declaração de candidatura feita por Costa depois das europeias de 2014.
Antes de tomar a decisão, Costa já tinha tido vários avanços e recuos. O mais emblemático é o da crise do início de 2013, quando tinha tudo preparado para avançar e só lhe faltava aquele meio segundo em que diz o sim. O avanço chegou a ser noticiado, mas não aconteceu. Contudo Costa não segurou todos os sinais até porque a opinião que tinha de Seguro vinha de trás. “‘É que ele forma sobre a pessoa uma opinião’ e daí não sai. ‘Foi o que aconteceu em relação a Seguro'”, conta um amigo de longa data de António Costa, Pedro Leite Alves.
Considerações à parte, os dois jornalistas lembram as movimentações que não pararam desde 2011 – desde o lançamento do livro de memórias “Caminho aberto” em 2012 a entrevistas que foi dando – e até a uma sondagem que mandou fazer (calcula-se pelo relato entre o fim de 2012 e o início de 2013) para saber o que aconteceria em Lisboa se não fosse ele o candidato a presidente da câmara. As movimentações não mais pararam e culminam na reunião da Comissão Política de janeiro de 2013, depois de Costa ter reunido com os vereadores e de a notícia que passou ter sido a de que mostrou vontade de se candidatar à liderança do PS. Não o fez. Mas também não mais parou na sombra até aos dias a seguir às europeias quando, depois de participar numa cerimónia onde também estava Paulo Portas, assumiu a vontade de ser secretário-geral do partido.
Uma das opiniões é a de António Vitorino, que conta aos autores que não viu com bons olhos nem o método nem a forma como Costa tirou Seguro do caminho logo a seguir às eleições europeias: “Não elogio o método, criou-se um precedente”, diz, referindo no entanto que Costa sabia, porque tinham feito “uma combinação desde a primeira hora” de que teria o seu apoio. Quem apoiou também de imediato Costa foram três históricos: Manuel Alegre, Vera Jardim e Jorge Sampaio, que revelam a dor do apoio, por terem também relações próximas com António José Seguro.
Jorge Sampaio chega mesmo a contar que sentiu pressões para não tornar público que dava a mão ao desafiador: “Não foi pacífico. Houve quem quisesse que eu ficasse em silêncio”. Não refere quem nem tão pouco de onde sentiu esse condicionamento. Manuel Alegre conta que foi ele o autor da carta que várias personalidades fizeram sair a público com o apoio expresso a Costa e que, acredita, lhe valeu uma chatice com Seguro. “[O] meu apoio sempre foi dizer o que penso. O Seguro é capaz de ter ficado chateado, mas não o tenho visto muito”. E Vera Jardim, que foi patrono de Costa no escritório de advogados depois deste ter concluído a licenciatura, conta a dor que teve na decisão: “Porventura, não se fez justiça a António José Seguro, mas a política não é o lugar para se fazer justiça às pessoas”.
Os bastidores são-lhe terreno conhecido da história do PS
Dores à parte, quem não o apoiou foi o amigo de longa data, Francisco Assis, que faz outras revelações aos autores. Confessa ter “tido pena” por não ter estado ao lado de Costa, mas que “por uma questão de honra” – tinha sido o cabeça de lista às europeias cujo resultado levaram a que o então autarca pusesse em causa a liderança de Seguro – não o podia fazer. Mas conta pormenores mais antigos.
De volta a 2011, quando José Sócrates perdeu as eleições contra Passos Coelho, foi Assis o opositor de Seguro. E quem o incentivou? “António Costa incentivou-me a ser candidato logo na noite da derrota”, conta. E é este trabalho estratégico nos bastidores que vem de trás, de outros episódios da vida do PS, que são abordados no livro, com informações, centradas em António Costa, que não eram até agora do conhecimento geral. Por exemplo, foi Costa quem deu dois empurrões decisivos a Jorge Sampaio, com quem tinha uma relação antiga de estagiário/patrono no escritório que Sampaio partilhava com Vera Jardim: primeiro para a liderança em 1988 e um ano depois para as autárquicas de Lisboa. “Ele, rápido como sempre, tinha percebido que Guterres tinha intenções de avançar e diz-me: tens de avançar amanhã”. E assim aconteceu. Um ano depois, a história repetiu-se quando em causa estava a busca incessante por um candidato socialista à capital: “Deu-me a entender que eu tinha de avançar. E eu avancei”.
Os elogios dos pares e as dúvidas dos colegas de Quadratura
António Guterres é o mais expansivo nos elogios. “Considero António Costa o mais brilhante elemento da sua geração” é apenas um dos elogios do amigo que António Costa queria ver na Presidência da República. Vitorino preferiu destacar a atitude de “fazedor”: “Tinha essa característica em comum com Guterres: eram ambos orientados para os resultados. Em francês chamar-lhe-iam um tranchant, isto é, alguém que corta a direito”.
Cortar a direito no sentido de fazer, mas poderia ser também pela sua rapidez. Dos tempos da faculdade, ficou a Marcelo a ideia de “um aluno muito rápido, daqueles que toca de ouvido” e Sampaio elogia-lhe “a grande rapidez e inteligência nas questões de tática ou de estratégia política”.
Mas os elogios aparecem também à direita, de Marques Mendes ou de Miguel Relvas. De outros tempos, e por fontes terceiras, aparece um comentário de Sócrates sobre Costa, no início da candidatura a Lisboa: “É um bom político, muito inteligente, mas como estratega e detentor de uma visão para o país nunca passará de um presidente da Câmara”, terá dito.
Os elogios estendem-se aos “amigos” da Quadratura do Círculo, Lobo Xavier e Pacheco Pereira, que prefaciaram a obra. Se o primeiro é mais expansivo no elogios e admite mais a fundo as diferenças ideológicas, o segundo questiona mais a estratégia que tem seguido para vencer as autárquicas. Lobo Xavier diz que Costa “é indiscutivelmente um líder”, mas que lhe tem custado “o fim do estatuto tão precioso de ‘homem consensual'”. E Pacheco Pereira aponta o dedo ao facto de Costa ter baixado o tom: “Sabe, mas deixou-se enredar nos malditos hábitos pomposos e ‘responsáveis’ com que os costumes políticos portugueses continuam salazaristas”. E deixa o remédio: “Se ele perceber que só ‘virou’ as coisas com Seguro quando genuinamente se zangou com o que ele dizia e insinuava, talvez ainda vá a tempo de ‘virar’ a seu favor este muito desigual combate”.
As tropelias a Marcelo e a “canelada” a Portas
Não só de elogios vive o livro que conta, aliás, dois episódios que mostram a atitude de Costa. Marcelo Rebelo de Sousa ainda hoje atribui a Costa a autoria de várias tropelias que sofreu enquanto candidato autárquico em Lisboa e dá um exemplo: “Havia uma empresa de reparações que era a TV Marcelo. E a minha campanha tinha uns cartazes enormes com ‘Marcelo’ escrito a vermelho sobre um fundo branco. Um dia alguém escreveu por cima do meu nome ‘TV'”, parecendo assim um cartaz da empresa de reparações, conta o possível candidato a Presidente da República. “Ainda hoje acho que foi o Costa. Ele foi muito útil ao Sampaio, que era um bocado ingénuo”.
Se Marcelo apenas desconfia de uma mãozinha de Costa, no caso de Paulo Portas foi mesmo à frente de toda a gente: pouco tempo da tomada de posse do governo de coligação PSD/CDS de Portas e Durão Barroso, Costa levou para o púlpito na Assembleia da República um auto da PJ sobre o Caso Moderna. “Foi um canelada. E vinda de um ex-ministro da Justiça. Não devia ter acontecido”, recorda Portas aos autores do livro.