Os sites dos jornais Sol e i publicaram na tarde de quarta-feira uma gravação áudio do plenário de trabalhadores do grupo Newshold, onde mais de 100 profissionais vão ser despedidos. As quase duas horas de gravação consistem, na sua maioria, numa interpelação do CEO da Newshold, Mário Ramires, que explica as condições do despedimento e a sua ideia para o projeto que pretende liderar depois desta fase.

A Newshold, do empresário angolano Álvaro Sobrinho, era detentora do Sol desde 2008 e do i desde 2014. Agora, vai sair destes dois projetos editoriais.

O Observador sabe que a gravação do plenário foi posta no site por ordem de Mário Ramires após representantes do Sindicato dos Jornalistas terem visitado as instalações da Newshold, em Linda-a-Pastora.

Mário Ramires, que deu ordem para que o seu discurso fosse gravado, explica que a empresa não tem dinheiro nem futuro. “As empresas morrem hoje, estão falidas há muito tempo. Ninguém tem direito a nada, porque as empresas não têm dinheiro”, diz. O discurso está repleto de metáforas náuticas. “Eu sou marinheiro e estive para vir hoje vestido à marinheiro”, começa por dizer.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

“Nós estamos num barco que está a meter água há muito tempo e que agora está mesmo, mesmo, mesmo, mesmo, mesmo a ir ao fundo. Não se salva. Nem o armador nos pode valer. Com toda a imodéstia e toda a presunção, eu digo, eu estou ao leme. E como estou ao leme é minha obrigação ser o último a abandonar o barco com todas as consequências que isso implica”, disse perante os trabalhadores dos dois jornais e também a sua família, ali representada pela sua mulher e pelos seus três filhos. “Eu não desisto, e mesmo que toda a gente abandone o barco, eu não vou desistir. E por isso eu trouxe os meus filhos.”

Ramires pediu aos trabalhadores para não serem “emotivos” e para agirem “de forma racional”. “Quem quiser ficar aqui a chorar, e que isto é muito duro, e que não sei quê, eh pá, esse não, esse vai já para casa. Recebe na mesma o seu salário, recebe na mesma a sua indemnização e sai já para casa.”

Durante a interpelação aos trabalhadores, Ramires deixa claro quais são as condições para levar avante um novo projeto jornalístico decorrente dos dois jornais até agora detidos pela Newshold. Primeiro, terá de haver despedimentos: “Para meter o barco à tona, para fazer o barco subir, alguns têm de saltar fora, e são muitos“. Depois, será preciso que aqueles que aceitem ficar abdiquem da sua antiguidade. Isto é, que abram mão dos anos de trabalho no caso de virem a ser, mais tarde, também despedidos. “Quem estiver disposto a sacrificar a sua indemnização, para que os outros que saem possam receber, são esses que têm de confiar em mim. Não é para receber daqui a 15 dias ou um mês. É para o resto da vida”, diz. “Se não formos solidários, isto vai tudo com o caroço.”

O administrador faz questão de dizer várias vezes que a condição da abdicação da antiguidade para aqueles que ficam é, mais do que necessária, obrigatória. Ramires chega a pedir aos trabalhadores que não querem prescindir da caução para levantarem o braço e pede aos outros que assinem os papéis onde declaram não querer a indemnização. “Confiam na minha palavra ou não?”.

“O i, de património, tem computadores, mesas e secretárias. Se vocês quiserem a caução, os computadores, as mesas, as secretárias, as televisões, vão embora. Eu não tenho dinheiro rigorosamente [nenhum] para ir comprar mais secretárias e computadores. Vou ter de as comprar a esta sociedade que por acaso até está disposta, se todos estivermos, a vender-me aquilo por um preço que eu possa pagar. E continuamos todos a trabalhar.”

Despedidos com indemnização, mas “não é hoje”

Quanto aos que saem — o último dia para muitos dos trabalhadores do Sol e do i será 15 de dezembro –, não é ainda certo quando vão receber as indemnizações. Tampouco as garantias de Ramires são concretas, como se pode ouvir na gravação:

Todos receberão, quem não quiser aceitar ou duvidar da minha palavra, eu garanto-lhes que receberão a sua indemnização. Não é hoje, mas têm de confiar na minha palavra, que está registada“, diz. E voltou ao tema noutra altura, insistindo na questão da confiança: “Se confiarem na minha palavra, receberão, quando e mal haja dinheiro, a respetiva indemnização a quem têm direito. Se não, ardeu“.

Ramires referiu ainda que tem planeada a criação de uma nova empresa que terá a cargo a publicação do Sol e do i. O ex-jornalista do Expresso garante que os atuais acionistas da Newshold estão dispostos a colocar dinheiro no novo projeto — isto é, na condição de serem despedidos os mais de cem trabalhadores e de os que ficarem prescindirem da sua antiguidadade. “[Os acionistas] estão dispostos a fazer um último investimento nestas pessoas todas e nestes projetos. Não serão acionistas. Serão meus amigos. Por isso é que eu tenho aqui mais uma vez os meus filhos. Porque eu saio daqui muito mais empenhado, muito mais empenhado, do que quando entrei.”

“O que se pede é que façam que o barco vá para a frente, numa só direção e com um único objetivo: termos um projeto jornalístico livre e não dependente de ninguém. De ninguém! Nem de investidores, nem de máfias, nem de lóbis, nem de nada. Apenas e só do nosso trabalho. E do nosso compromisso com quem? Com um investidor, um banco? Não, nada disso. Do leitor. Do leitor.”

O administrador refere que já pediu para lhe ser devolvida a sua carteira profissional de jornalista depois de ter ido para a administração da Newshold em 2011. O Observador sabe que Ramires se prepara para ser o diretor do novo projeto — se ele vier a existir.

“Negociar é ser mais mafioso do que os mafiosos”

Sobre os acionistas que agora abandonam os dois jornais, Ramires elenca o que aprendeu com alguns deles: “Com o doutor Álvaro Sobrinho aprendi a ser racional e implacável. Com o doutor Sílvio Madaleno aprendi a gerir uma empresa com mão de ferro e coração de ouro. Com o doutor Emanuel Madaleno, aprendi a negociar. E negociar é ser mais mafioso do que os mafiosos“.

O plenário termina com um aplauso, iniciada por Ramires e que teve a adesão de uma grande parte dos trabalhadores, aos acionistas que agora saem da Newshold. “Eu peço-vos a vocês, que neste momento, no meu último momento da empresa, batamos uma salva de palmas para os nossos acionistas”, pediu o admnistrador.

A seguir ao plenário, às 16h30, seguiram-se conversas privadas entre Ramires e cada um dos jornalistas, que duraram até às 3 da manhã do dia seguinte. Nestas, segundo fonte contactada pelo Observador, Ramires foi peremptório com os jornalistas a quem convidou para entrarem no seu novo projeto, deixando-lhes pouco tempo para decidir se queriam continuar (abdicando da sua antiguidade) ou sair de vez: “Não quero gente indecisa no meu novo jornal”.

O discurso de Ramires, repleto de metáfora náuticas, teve uma reação dentro do jornal i. Na edição de quarta-feira, o infográfico Carlos Monteiro assina uma crónica, ilustrada com uma fotografia sua em que foi feita uma montagem com um chapéu e uma pala de pirata. O texto divide-se entre a ironia e o tom de despedida do jornal fundado em 2009:

“Durante seis anos e meio fui editor de infografia do i. Aqui conheci os melhores tripulantes de sempre. Voltaria, incondicionalmente, a ir para o mar com eles. Até com um crocodilo a bordo (há sempre um, faz parte da viagem).”

Oiça aqui a gravação na íntegra:

https://soundcloud.com/jornalsol/plenario-da-newshold-30-de-novembro-de-2015