O novo secretário de Estado da Juventude e do Desporto foi constituído arguido por suspeitas da prática dos crimes de corrupção, administração danosa, infidelidade e abuso de poder entre 2013 e 28 de agosto de 2015 — altura em que os autos onde João Paulo Rebelo estava a ser investigado enquanto presidente do organismo público Movijovem, juntamente com mais dois ex-administradores (Helena Alves e Alexandra Alvarez), foram arquivados pelo Departamento Investigação e Ação Penal de Évora.

Apesar de ilibar os arguidos e de constatar a prescrição do crime de abuso de poder, o Ministério Público (MP) censurou-os por “imprudência na gestão” e por decisões “arriscadas ou erradamente ponderadas”. Além disso, como se lê no despacho de arquivamento a que o Observador teve acesso, o MP critica uma “falta de cuidado em desagrado das melhores regras de gestão, o que, noutra perspetiva, poderia ser relevante em termos de apreciação do mérito do seu desempenho profissional nos cargos”.

João Paulo Rebelo, 41 anos, licenciado em Gestão, liderou a cooperativa pública Movijovem, que gere a rede nacional de pousadas da juventude, entre junho de 2007 a março de 2012. A sua direção foi alvo de uma queixa-crime em 2013 por parte dos seus sucessores depois de um inquérito interno ter detetado um conjunto de alegadas irregularidades na gestão da obra de requalificação da pousada de Évora, adjudicada por cerca de 1 milhão de euros.

Existiam suspeitas de favorecimento do empreiteiro que ganhou a obra (a Interobra) a troco de contrapartidas para os membros da Movijovem, assim como de ligações pessoais de uma administradora ao Grupo Lena — que, alegadamente, dominaria a Interobra. O DIAP de Évora acabou por arquivar os autos por entender que não existiam provas de que os arguidos tivessem cometido os crimes que lhe eram imputados, já que não houve intenção de prejudicar o Estado, nem ocorreu nenhum prejuízo financeiro para os cofres públicos. O MP foi particularmente enfático ao afastar qualquer indício de corrupção, por exemplo, não dando como provado quaisquer ligações entre uma administradora da Movijovem, a Interobra e o Grupo Lena.

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As suspeitas de favorecimento estavam relacionadas com um adiantamento de mais de 300 mil euros à Interobra para começar os trabalhos. Isto foi feito por falta de capacidade da empresa para o fazer sem esse adiantamento. A Interobra veio a ser declarada insolvente durante o processo de construção, deixando os trabalhos a meio.

Os adiantamentos ter-se-ão repetido em mais 12 concursos públicos relacionados com obras em igual número de pousadas da juventude. Um procedimento pouco ortodoxo, visto que os empreiteiros têm de ter capacidade financeira para iniciarem as obras, sendo remunerados com o andamento e verificação dos trabalhos dentro dos prazos de pagamentos acordados contratualmente.

A sociedade Monterg, que pertencia ao Grupo Lena, terá recebido cerca de 209 mil euros para iniciar os trabalhos de revestimento térmico nas 12 obras que tinha a seu cargo, segundo uma notícia do Correio da Manhã de 2011 onde um administrador do grupo de obras públicas envolvido na Operação Marquês confirma a situação. Outros construtores receberam idênticos adiantamentos, num total de 900 mil euros disponibilizados pela direção de João Rebelo.

O Grupo Lena reagiu nos últimos dias em comunicado depois de diversos órgãos de comunicação social terem citado essa notícia de 2011. “A Monterg, que saiu do universo de empresas Grupo Lena em Novembro de 2011, no âmbito da reestruturação do Grupo, viu a referida obra ser-lhe adjudicada num processo concursal absolutamente transparente, e recebeu, efetivamente, um adiantamento de apenas 20% do valor da obra a título de adjudicação, contra as garantias prestadas em Agosto 2010, estas no valor total da obra. A partir da data de alienação da empresa o processo deixa de ser da responsabilidade e conhecimento do Grupo Lena”, lê-se no texto enviado para o Observador.

O que se passou em Évora

O inquérito do DIAP de Évora, a cargo do procurador Nuno Rebocho, foi aberto a 26 de junho de 2013 depois de uma queixa-crime apresentada pela direção da Movijovem nomeada pelo governo de Pedro Passos Coelho contra a administração de João Paulo Rebelo.

A obra na pousada da juventude de Évora, que se encontrava desativada desde outubro de 2003 por “falta de condições” do edifício que albergava aquela infra-estrutura, inseria-se num investimento global de mais de 25 milhões de euros na construção de novas pousadas da juventude e na requalificação dos edifícios já existentes.

Um inquérito interno da Movijovem realizado em 2012 concluiu que se verificaram na obra de Évora várias irregularidades, tais como formalidades na validação das faturas, adiantamento de pagamentos à empresa adjudicada antes de aferição dos autos de medição, entre outras, concluindo-se pela falta de rigor na defesa dos interesses da Movijovem face à previsível não conclusão da obra ou à sua conclusão defeituosa”, lê-se no despacho de arquivamento.

O concurso da pousada de Évora foi lançado a 23 de junho de 2003, tendo sido escolhida a proposta da Interobra em 2004. Contudo, a obra só veio a ser adjudicada à empresa a 21 de março de 2007 por 1.093.423, 39 euros. O que aconteceu durante esses três anos? Verificaram-se atrasos na disponibilização do edifício para se iniciarem as obras e a degradação do mesmo fez com que fosse necessário calendarizar trabalhos a mais (que não estavam previstos no projeto vencedor de 2004) de mais 75 mil euros.

O problema é que em 2007 a Interobra, que já tinha feito outros trabalhos para a Movijovem, já apresentava dificuldades financeiras que a impediam de começar as obras e poderiam ter levado a cooperativa pública a repensar a adjudicação de 2004. Os próprios administradores da Interobra afirmaram no DIAP de Évora que tinham dado conhecimento à Movijovem das suas dificuldades financeiras que levavam a dívidas aos seus fornecedores e a salários em atraso aos seus funcionários, tendo concordado “que, em 2007, naqueles moldes, era uma obra de risco”.”Se por acaso tivessem sido questionados pela dona da obra sobre as suas capacidades financeiras para a execução, seguramente que teriam optado pela anulação do concurso e realização de um novo, dado que não possuíam os requisitos necessários”, concluíram.

Mesmo assim, a direção liderada por João Paulo Rebelo decidiu adiantar 389.365, 44 euros à Interobra. Os trabalhos iniciaram-se a 21 de maio de 2007 mas foram suspensos pouco tempo depois (a 27 de julho de 2007), tendo parado definitivamente a 5 de abril de 2011 com a insolvência da sociedade construtora.

O inquérito interno da Movijovem enfatizava que as obras feitas pela Interobra não tinham sido corretamente fiscalizadas, existindo dúvidas sobre se a construtora tinha, de facto, realizado os serviços faturados (300.129,49 euros) — e para os quais já tinha recebido o adiantamento (389.365, 44 euros). Esta discrepância não mereceu censura do MP, apesar de o procurador titular dos autos ter censurado “algum desnorte” com que a fiscalização tinha sido realizada. No entendimento do MP, as obras faturadas foram realizadas.

Após mais quatro anos com a obra parada, a Movijovem foi obrigada a contratar outra empresa (a CJG – Construções, Lda), que concluiu os trabalhos a troco de 647.357, 28 euros. No total, e se somarmos o valor dos trabalhos a mais, a Movijovem gastou um total de 1.112.009, 16 euros. O desvio de cerca de 18, 5 mil euros não foi considerado relevante pelo procurador Nuno Rebocho. Daí a conclusão do DIAP de Évora de que não existiu prejuízo para o Estado — uma questão essencial para o Ministério Público, pois só assim se poderia verificar o crime de administração danosa, por exemplo.

As explicações do secretário de Estado

Quando foram constituídos arguidos pelo DIAP de Évora, João Paulo Rebelo, Alexandra Alvarez e Helena Alves deram as mesmas explicações. Alves começou por explicar que se manteve o resultado do concurso de 2004 pelo “interesse em garantir a afetação de fundos comunitários, concretamente o III Quadro Comunitário de Apoio (vigente entre 2000 e 2007). Ou avançava-se ou parava-se tudo com obrigação de devolver 2 milhões de euros em termos de PIDDAC. Acresce que a Movijovem tinha dificuldades, estava em situação de pré-ruptura devido a uma dívida de 1 milhão de euros a fornecedores”.

João Paulo Rebelo confirmou e acrescentou: “Entendeu ser preferível celebrar contratos com a empresa vencedora, existindo indicações das entidades fiscalizadoras, designadamente a Segurança Social, no sentido de considerarem a empresa idónea e competente para realizar a obra. Este arguido refuta qualquer falta de cuidado na gestão desta situação, sendo que no termo daquele Quadro Comunitário a rede de Pousadas da Juventude estava com melhores condições de alojamento, gerando um resultado positivo de mais de 200 mil euros. Acresce que todo o processo de remodelação desta Pousada de Juventude foi gerido com a máxima transparência e do conhecimento dos cooperadores da Movijovem, bem como das entidades de tutela”, lê-se no despacho de arquivamento.

O MP concordou que, do ponto de vista criminal, a “opção levada a efeito e sufragada pelos arguidos/responsáveis da Movijovem tem, desde logo, a virtualidade do enquadramento financeiro, de garantir o aproveitamento de fundos comunitários, jogando a seu favor, sendo motivada por uma decisão rápida e pragmática, afastando o entendimento ou a ideia de que teria sido um ato leviano ou disparatado, eventualmente apenas para favorecer a Interobra ou alguém a ela ligado”. Isto é, não existia dolo ou uma decisão contra o direito na análise criminal realizada pelo magistrado titular do inquérito.

O Observador tentou contactar João Paulo Rebelo por diversas ocasiões desde quarta-feira mas nunca obteve resposta da parte do novo secretário de Estado da Juventude e do Desporto.

A “imprudência” salva por “mera sorte” pelo tribunal e pela CCDR

Não ocorreu nenhum prejuízo para o Estado, mas poderia ter ocorrido — como também refere o magistrado titular do inquérito.

Antes de iniciar os trabalhos em maio de 2007, a Interobra tinha assinado um contrato de factoring com a Caixa Geral de Depósitos (CGD), ao abrigo do qual a construtora recebeu cerca de 400 mil euros. A CGD tentou recuperar esse valor, interpondo uma ação cível contra a Movijovem em que pedia uma indemnização de cerca de 900 mil euros por todos os prejuízos causados, pois tinha solicitado à cooperativa pública que, devido às dificuldades financeiras da Interobra, todos os pagamentos fossem feitos diretamente e por conta do mesmo contrato, situação que a Movijovem não aceitou. A 4.ª Vara Cível de Lisboa deu razão à cooperativa pública.

O que é o factoring?

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É um mecanismo financeiro que permite às empresas venderem a um banco, por exemplo, os seus créditos futuros mediante a apresentação de faturas, recebendo de imediato o dinheiro.

Além da ausência “da adequada prudência” por continuarem a acreditar nas capacidades financeiras da Interobra para realizar os trabalhos, o procurador Nuno Rebocho escreve no seu despacho que “só por mera sorte, dado o vencimento em tribunal da ação contra a Caixa Geral de Depósitos, é que não se tornou altamente onerosa para o Estado”.

Também a CCDR do Alentejo poderia ter ter provocado um avultado prejuízo à Movijovem — que em 2012 se encontrava em processo de liquidação que acabou por ser abandonado em 2014 –, já que a 10 de setembro de 2012 solicitou a devolução de cerca de 1,1 milhões de euros de fundos comunitários do FEDER que tinham sido atribuídos e transferidos para o financiamento da obra de Évora. Chamado aos autos, o responsável da CCDR Alentejo, Nelson Faustino, afirmou que não houve necessidade de repor a verba, tendo o projeto sido concluído com verbas nacionais.

Enfatizando o facto de não existirem quaisquer “indícios de benefícios ou favores indicativos de contrapartidas ilícitas entre os intervenientes no contrato”, o magistrado responsável pela investigação diz “que se tratou de uma atitude algo destemida, arriscada ou erradamente ponderada, mas materialmente sem que se possa concluir pela indiciação de facto criminalmente relevante, nomeadamente à luz dos indicados ilícitos. A situação pode ter mais correto e adequado enquadramento na avaliação do desempenho das pessoas em causa nas funções que então desenvolviam na Movijovem”.

“Por tudo o exposto, conclui-se com uma certeza relativa, que todo este processo, ao nível da execução dos trabalhos de recuperação da pousada, que não do concurso público, encerra suspeitas de alguma imprudência de gestão, seja ao nível de instâncias de controlo, seja de ponderação de riscos e de capacidade da adjudicada, e bem assim ao nível de delimitação dos reajustamentos da intervenção o que, em consequência, poderia ter acarretado avultados prejuízos financeiros para o Estado, mas que não veio a acontecer”, afirma o magistrado.

Apesar de não se ter verificado intenção de prejudicar o Estado ou os interesses que incumbia aos responsáveis da Movijovem tutelar, “a atuação apurada destes intervenientes é mais sustentadamente compatível com falta de cuidado ou até desajustada ponderação, em desagrado das melhores regras de gestão, o que, noutra perspectiva, poderia ser relevante em termos de apreciação do mérito do seu desempenho profissional nos cargos”, conclui o procurador Nuno Rebocho.