Foi um vê se te avias. Este não quer ir. O outro também não. Aquele até quer, mas o treinador não deixa. E quando não é o treinador que não deixa, é o clube que não permite que vá. Não vem o fulano, vem o beltrano. E se não é possível vir o beltrano, vem o sicrano. A convocatória de Rui Jorge para os Jogos Olímpicos foi “surreal” – palavras do próprio. Até chegar aos convocados que hoje estão no Brasil, contactou 57 (sim, leu bem: cinquenta-e-sete) jogadores, pedinchando-os aos clubes, ora com acenares de cabeça afirmativos, ora com negas e mais negas. Mas, convocatória feita, o selecionador avisou de pronto: “Este não é o grupo possível – como se tem escrito e dito; é o nosso grupo. ‘O’ grupo”.
Portugal: Bruno Varela; Fernando Fonseca, Edgar Ié, Tobias Figueiredo e Ricardo Esgaio; Tomás Podtawski, André Martins, Sérgio Oliveira e Bruno Fernandes; Salvador Agra e Gonçalo Paciência.
Argentina: Gerónimo Rulli; José Luis Goméz, Laurato Gianetti, Victor Cuesta e Lisandro Magallán; Alexis Soto, Santiago Ascacíbar e Mauri Martínez; Ángel Correa, Cristian Espinoza e Jonathan Calleri.
Ainda assim, ninguém dava um tostão furado pelo “grupo” de Rui.
– Contra a Argentina? A Argentina é favorita a vencer os Jogos Olímpicos, e tem o não-sei-quantos e o não-sei-que-mais. Estão feitos…
Não, não estão. Não só Portugal entrou melhor no encontro do estádio Engenhão, a pressionar alto, a circular veloz, a rematar e a não permitir que os argentinos rematassem, como até marcou cedo, logo aos três minutos. Bruno Fernandes, o dez que acabou de ser contratado pela Sampdoria, foi desmarcado nas costas dos centrais argentinos, estava de costas para baliza e, pressionado por eles, tocou a bola para trás de cabeça, para Gonçalo Paciência, que lha devolveu de pronto. Bruno recebeu-a e colocou o remate no ângulo superior direito da baliza de Rulli. E festejou. Paciência, que o assistiu, chegou-se a ele e festejaram os dois. Mas o jogo estava parado e o golo não contou para mudar o placard: fora-de-jogo, apitou o árbitro guatemalteco Walter López.
A toada manteve-se a mesma: mais Portugal, Argentina assim-assim. E, assim como assim, lá criaram perigo (10′) os argentinos. José Luis Goméz, que até é lateral, viu-se desmarcado por Ángel Correa (dez na camisola e nos terrenos que pisa, médio-ofensivo do Atlético de Madrid e o melhor entre os que vestem de azul-celeste) nas costas de Tobias Figueiredo, entrou na área e rematou, forte, à malha lateral da baliza hoje defendida por Bruno Varela. Calma: foi só pólvora seca e da Argentina pouco mais de viu na primeira parte.
Bruno Fernandes não é alto. Nem de porte atlético como outros são. Veloz? Nem por isso. Franzino, de drible curto e nada espalhafatoso, curvado no relvado, não assusta quem lhe faz a marcação – e esse era Alexis Soto. Mas quando a bola lhe chega ao pé direito, aí a conversa é outra e o rapaz “agiganta-se”, em técnica fina, em velocidade de pensamento e execução. E este pertíssimo de fazer o primeiro golo do jogo. Não uma, mas um par de vezes. Primeiro, foi aos 19′. Na jogada, tudo foi rápido, tudo ao primeiro toque, tudo nas costas da defesa a quatro (José Luis Goméz, Laurato Gianetti, Victor Cuesta e Lisandro Magallán) argentina. André Martins partiu do centro do meio-campo, a direção era a da área, desmarcou Salvador Agra na esquerda e este, de pronto, tocou a “menina” para Bruno Fernandes, à espera dela na área. Bruno não tentou driblar – isso não é para os da estirpe dele –, mas tentou “picar” a bola por cima de Rulli. Este, veloz a sair da baliza, fez a mancha (enorme!) e aninhou a bola nos braços. Foi por pouco.
E por menos que pouco, por poucochinho, não fez Bruno o golo aos 31′. Talvez não se recorde, talvez nunca o tenha visto em Alcochete, na meninice, mas Ricardo Esgaio era extremo então, daqueles que driblam, que procuram o fundo do campo para cruzar, que atazanam laterais. Hoje defesa, encostado à esquerda por falta de opções melhores para Rui Jorge, foi daí que passou o pé direito por cima da bola, tocou-a em velocidade, deixou o marcador direto a vê-lo ir, entrou na área, levantou a cabeça e cruzou para trás. Bruno Fernandes aparecia lá, preparava-se para rematar de pé direito, o defesa Laurato Gianetti aproximou-se dele, atrapalhou-o, e Bruno chutou com o que tinha “mais à mão”, o esquerdo. O tal defesa ainda desviou a bola e esta saiu ao lado — dois palmos ao lado, ou nem tanto — da baliza de Rulli.
A primeira parte foi-se, veio a segunda e quase a Argentina marcou (48′) logo a abrir. E que golo seria o de Jonathan Calleri, o nove argentino, melhor marcador da Taça Libertadores (a Champions sul-americana) pelo São Paulo e reforço de verão do West Ham. Portugal atirou-se para a frente, em contra-ataque, mas José Luis Goméz cortou a bola com um chutão e quem contra-atacou foi a Argentina. Calleri apanhou a bola a meio-campo, voltado para a baliza, correu, correu que se fartou, Tobias não teve pernas para ele e, à saída de Varela, Calleri fez uma “chapelada”. Tão alta, que a bola acabaria por bater na barra e sair para lá dela.
Portugal não sentiu o toque. Voltou a ser o que era na primeira parte. E marcou, por Gonçalo Paciência. [Nota prévia: ele nem canhoto é.] Bruno Fernandes – sim, o tal, o melhor dos nossos — subiu pela esquerda, levantou a cabeça, olhou para a área, viu lá um magote de argentinos e só o baixinho “engolido” Agra entre eles, olhou depois para trás, viu Gonçalo Paciência só, passou-lhe a bola, Gonçalo parou-a (66′) na canhota, deu-lhe um cheirinho de pé direito – só para a bola ficar redonda na relva e sem ter como fugir-lhe –, chutando depois (novamente com a canhota, pois claro), um remate fortíssimo a que Rulli, mesmo todo esticado, todo no ar, não chegou.
1-0? Check. E o 2-0 só não chegou aos 69′ porque a sorte não quis nada com Bruno Fernandes, que à entrada da área rematou de primeira, estava de frente para Rulli, acertou no argentino, a bola escapar-lhe-ia, entre as luvas e as pernas, seguiu devagar, devagarinho – ou não estivéssemos no país de Martinho da Vila — na direção da baliza, mas Rulli, de tão devagar que ela seguia, ainda foi a tempo de a segurar e sossegar-se. Não houve frango. Ou melhor, houve: mais tarde, aos 83′. Foi Pité quem fez o segundo golo — ele que é um dos que não contava ir passar o mês agosto ao Brasil e só foi porque Nuno Santos, do Vitória de Setúbal, roeu a corta e “desconvocou-se” à última da hora. Mas falemos dos que estão e de Pité. Extremo, recebeu a bola na direita do ataque, tirou o lateral Lisandro Magallán da frente com um drible, encheu o pé (ainda muuuuuito longa da área) e: cá vai disto!, terá pensado. E pensou bem. A bola passou entre as pernas de Rulli.
Contas feitas, Portugal, o da convocatória “surreal”, venceu a Argentina, a tal da convocatória upa-upa. E com a vitória lidera o Grupo D do torneio de futebol olímpico, com os mesmo três pontos das Honduras, seleção que esta quinta-feira também derrotou (3-2) a Argélia. Não, não é a Argentina de Messi ou Agüero, Argentina que venceu os Jogos Olímpicos em Pequim. Mas é a Argentina de uma mão-cheia de talentos. E a Portugal ninguém reconhecia um que fosse. Pelo menos antes desta quinta-feira à noite.
– Contra a Argentina? Claro que íamos vencer. Então, nós temos o não-sei-quantos e o não-sei-que-mais…