Da noite para o dia, a cara atónita de uma criança de cinco anos passou a ser a cara de Aleppo, a cidade síria que há meia década está no meio de um conflito sem fim à vista. Cinco anos de vida, cinco anos de guerra. O menino ensanguentado e cheio de pó foi fotografado no interior de uma ambulância, depois de ter sido resgatado das ruínas de um edifício bombardeado. As imagens recolhidas por ativistas do Aleppo Media Centre correram o mundo e puseram Omran lado a lado com Ayaln Kurdi, a criança de três anos que foi encontrada já sem vida numa praia turca, em setembro de 2015.

O assunto dominou a agenda mediática durante as últimas semanas e ainda não esmoreceu. Prova disso é o artigo que a revista norte-americana Time divulgou a 26 de agosto — “A noite em que Omran foi salvo”. A publicação falou com um conjunto de testemunhas — incluindo um médico, um enfermeiro, um fotógrafo e um operador de câmara — que estiveram presentes na noite dos bombardeamentos em Aleppo, quando Omran foi fotografado visivelmente em estado de choque.

Dos relatos recolhidos pela Time é possível traçar um cenário de como tudo aconteceu. O impacto da bomba soou na noite de 17 de agosto e numa questão de minutos fotógrafos e ambulâncias chegaram ao local dos escombros, uns para salvar vidas, outros para registar os horrores da guerra. “Quando cheguei, ouvi as equipas de resgate a dizer nos telemóveis que tinham muitas emergências. Havia pessoas a apanhar corpos por entre os escombros”, relatou Mahmoud Rslan, o fotógrafo de 27 anos que tirou a (já icónica) foto de Omran.

“Ele estava com um olhar estranho”

O prédio onde estava a família do menino de cinco anos estava meio colapsado, pelo que as equipas de resgate tentaram aceder a ele através de um edifício adjacente. “Tivemos de saltar metro e meio para chegar à casa onde estava Omran”, contou o mesmo fotógrafo, recordando-se de que foi o pai da criança que a retirou dos estilhaços e a entregou ao fotógrafo e restante equipa. “Quando o puseram no veículo senti que ele estava traumatizado. Ele estava com um olhar estranho, como se estivesse a pensar no que teria acontecido à sua família”, relatou Mustafa al-Sarout, o operador de câmara de 23 anos.

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Rslan fotografou Omran em primeiro lugar, assim que ele entrou na ambulância nessa noite escura de agosto, apenas iluminada pela luz do luar. Rslan fê-lo com sentimentos mistos e lágrimas nos olhos; os soluços vieram depois, quando a irmã de Omran, de apenas oito anos, apareceu tão calma quanto o menino, com ferimentos na cara e no olho. “Ela fez-me chorar dez vezes mais. (…) Chorei pelas crianças e com receio de que a minha filha pudesse passar pela mesma experiência.”

Omran chegou ao hospital subterrâneo M10 com mais sete pessoas — era uma de cinco crianças. Diz o médico que falou com a Time que, então, o menino estava acordado mas sem falar. “Talvez ele estivesse com medo ou em choque. Ou em sofrimento pelos ferimentos. Apenas lhe perguntei o nome. Ele estava em choque”, contou o cirurgião que a Time cita como Dr. Mohammad por questões de segurança. Omran, que tinha sangue na cara e nas roupas, com muito pó a cobrir-lhe o cabelo, foi visto pelos médicos que lhe limparam as feridas e vestiram-no.

“Senti que tinha feito algo para esta revolução”

No dia seguinte, o operador de câmara acordou para ver que “todas as agências internacionais” queriam falar com ele. “Senti que tinha feito algo para esta revolução”, disse. Rslan, o fotógrafo, defendeu uma mesma veia patriótica, ao garantir à publicação norte-americana que quer continuar a “fazer face à injustiça” que se vive na Síria.

Apesar de a família de Omran ter sido salva no local, o irmão mais velho de dez anos acabaria por morrer — Ali Daqneesh não resistiu aos ferimentos que sofreu na sequência do ataque aéreo. “A família dele estava em condições terríveis depois da destruição da sua casa. Agora estão a viver numa casa pequena, muito humilde e apertada”, contou um enfermeiro que também quis proteger a sua identidade.

“Trouxe vários brinquedos [numa visita recente]. Um pequeno pónei que o Omran montou, um cão pequeno, um comboio e um carro, e outros brinquedos pequenos [para partilhar com o irmão e a irmã]. O sorriso estava na sua cara inocente”, concluiu.