Este Governo comporta em si mesmo o seu oposto nos partidos de esquerda que o apoiam. Seria assim uma espécie de unidade de contrários, na teoria marxista. O PCP e o Bloco de Esquerda são contra todos os pressupostos da governação — critérios europeus, défice, dívida e moeda única — mas depois apoiam o PS com um pragmatismo notável e nunca visto. Viabilizam o Governo enquanto continuam a ser oposição ao Governo… viabilizando-o. Todos sabemos que é assim. Mas, e quando são os próprios a chamar a atenção para essa “dialética”? Neste debate quinzenal, Jerónimo de Sousa articulou uma daquelas frases que podiam passar despercebidas, mas que ditas daquela bancada têm um significado qualquer: uma pressão, uma ameaça? Uma constatação? Uma análise da “geringonça” à luz do materialismo dialético?

Jerónimo de Sousa não citou mais um provérbio popular para ser engraçado. Estava a falar dos transportes públicos, de uma matéria que afeta a vida de milhares de pessoas, quando tirou os olhos do papel (o resto da declaração tinha sido lida) para dizer assim:

A dialética tem este sentido. O que era verdade anteontem pode não ser verdade amanhã. E esse ambiente de esperança que se abriu o quadro da nova solução política, da nova fase da vida nacional, precisa de ser mantido para a que a dialética não se transforme num outro sentimento”.

Ora quer isto dizer que anteontem António Costa chegou a primeiro-ministro e está ali a falar na bancada do Governo porque o PCP o apoia, embora o próprio PCP se farte de dizer que não apoia, mas essa é outra questão (da dialética do discurso). A propósito de transportes, metro, barcos e afins, Jerónimo avisou Costa que isto pode não durar para sempre. Se o “ambiente de esperança” não for mantido, isto pode transformar-se “noutro sentimento”. Ou seja, podemos traduzir as palavras de Jerónimo assim: se isto não muda, senhor primeiro-ministro, olhe que isto pode mudar…

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Um dia a esquerda ia irritar mais Costa do que a direita. Hoje foi o dia

Em vésperas de negociações para o Orçamento do Estado e de eleições autárquicas, significa que os comunistas estão a dizer que a base material e económica da sociedade, a “infra-estrutura” — neste caso representada pelo PCP —, à força de não conseguir mudar a “superestrutura” pode criar aqui uma nova dialéctica? O fim deste Governo? Não sabemos bem o que Jerónimo quis dizer, mas o aviso ficou gravado nos diários da Assembleia da República para mais tarde recordarmos.

É bonito ver a “geringonça” com esta conversa cifrada para iniciados na teoria marxista. Mas António Costa respondeu com dados concretos sobre o metro de Lisboa, prometeu o início de obras, não falou nas contratações para as empresas reclamadas pelo PCP, e deixou uma mão cheia de perguntas por responder.

Dito assim, como a dialéctica pressupõe uma sucessão de contradições, o PCP sinaliza que começa a estar pressionado pela realidade para alterar a sua posição. Tudo bluff? Tudo encenação parlamentar? Tudo “verbo de encher”? Veremos, uma vez que, com um debate dominado pela questão das rendas excessivas da EDP e pela Educação, o Bloco e o PCP não carregaram nas reivindicações para o orçamento do Estado, como a alteração dos escalões do IRS ou as reformas antecipadas para os trabalhadores com muitos anos de descontos (apesar de o Bloco ter mencionado trabalhadores de pedreiras nessas condições que estavam nas galerias).

“Verbo de encher” foi a expressão de Catarina Martins para expressar a sua insatisfação com a precariedade dos professores e a dimensão das turmas nas escolas. E foi dura na questão das rendas excessivas, que classificou como uma pilhagem. Costa nunca disse que tinha margem para acabar com as rendas excessivas. E Catarina, apesar da violência da sua linguagem parecer mais radical do que o Partido Comunista, nunca ameaçou com a dialéctica marxista para sinalizar uma possível dissidência no apoio ao Governo. Temos aqui a outra velha dialética entre os comunistas e as extremas-esquerdas. Mas essa é uma história aqui secundária.

Se a “geringonça” é uma unidade de contrários, a relação do Governo com a direita voltou no debate a manifestar-se como uma espécie de desunião de semelhantes no desatualizado “arco da governação” (que por mais que se combatam continuam a ter mais em comum do que PS+PCP/BE). Por alguma razão a direita não fez qualquer pergunta sobre a rendas excessivas. Todos comprometidos?

O PSD foi consequente com o que anunciou nas jornadas parlamentares há uma semana. Ia falar menos de números e de economia, para dar mais atenção ao país real. Com Passos Coelho calado (mais uma vez), Luís Montenegro falou de Educação e de Saúde, e tentou encurralar António Costa em matéria de offshores e na contratação de médicos.

Costa não se compromete com fim das rendas energéticas e lembra “manhas” da EDP

Mas os sociais-democratas estão naquela péssima posição de preso-por-ter-cão-preso-por-não-ter. É uma dialética que se mantém, mesmo quando mudam os pressupostos. Se o PSD só fala de números e economia já não há pachorra e é porque Passos não muda nem adapta o discurso. Se não fala, lá vem Carlos César, líder parlamentar do PS, dizer que, como os resultados do Governo são tão bons em matéria económica, o PSD perdeu o discurso e nada mais tem a dizer sobre a economia. António Costa até disse que era capaz de arranjar perguntas mais difíceis para se entalar a si próprio. Não é fácil falar a partir daquela bancada.

Do lado do do CDS, Assunção Cristas manteve o registo e o estilo das perguntas de rajada que mal davam tempo a António Costa para responder. Por vezes tinha de empatar até lhe aparecer um papelinho com uma resposta nas mãos. A graça dialéctica do CDS é que não foi o PCP a falar da greve dos professores, mas sim Cristas. Que do ponto de vista do materialismo foi a única líder a fazer uma das perguntas que se impunha esta semana: a Santa Casa vai entrar no Montepio porque é um bom negócio ou porque o banco precisa de ajuda? António Costa não foi mais do que evasivo.

Passou mais ou menos despercebido, mas a líder do CDS marcou pontos quando perguntou a António Costa, a propósito da redução na contratação de médicos tarefeiros, se o primeiro-ministro sabia se ia haver demissões nos hospitais. Costa não respondeu. Ainda o debate não tinha acabado e já a Lusa noticiava demissões no Amadora-Sintra. A dialética é assim circular. O que era anteontem não será forçosamente igual amanhã. Sabemos que a vida é assim.