Antes de seguirmos viagem, uma nota importante: como qualquer notívago que se preze deverá saber, a Pensão Amor não é um restaurante, nem mesmo agora, que há comida a ser servida dentro das suas quatro paredes. O projeto Alice no País dos Bordéis nasceu da cabeça do ex-jornalista Roger Mor, que no decorrer de uma investigação sobre a prostituição no Cais do Sodré, em Lisboa, encontrou uma enorme quantidade de histórias sobre as trabalhadoras do sexo dos anos 60. Foi desta pesquisa que surgiu a inspiração necessária para criar a peça de teatro que antecede a refeição no restaurante pop-up (de duração temporária, entenda-se) que complementa a experiência. Inicialmente, todo este projeto era para ter terminado a 10 de agosto, mas o crescente número de pré-reservas fez com que se estendesse até 28 de outubro. Feito o esclarecimento, sigamos então para 19 de setembro de 1962, data em que decorre esta história que se vê e que se prova.

(Nota: a linguagem que se segue poderá conter algumas palavras consideradas calão)

A noite acabara de começar quando uma sensação de urgência invadiu uma das salas da Pensão Amor, concorrido bar na zona do Cais do Sodré, em Lisboa. “Não deixem fugir essas putas”, ouve-se pela sala. O som de passos acelerados a calcar soalho tornava-se mais forte quando, de rompante, aparece a Alice, a nossa anfitriã, que descalça nos dá as boas vindas à sua casa de meninas: “Estes cabrões da PIDE acham que nos conseguem apanhar, coitados. Não se preocupem botõezinhos, eu não deixo que nada de mal vos aconteça! Venham comigo, rápido!” É com este discurso que o ator Francisco Beatriz (que noite sim, noite não, se vai revezando com Sofia de Portugal), em drag completo, nos leva ao piso intermédio da Pensão: entrávamos então no mundo da Alice no País dos Bordéis, performance dramática para maiores de 18 anos que culmina com uma experiência gastronómica, o menu de degustação “Abre a Boca e Fecha as Pernas” do chef Guilherme Spalk.

O chef Guilherme Spalk (à esquerda) é o responsável pela comida que se serve no “bordel” de Alice (à direita). © Fernando de Pina Mendes

“Aqui estamos seguros, botõezinhos” — diz-nos a nossa Madame com as costas coladas à porta de madeira que fechou com um estrondo. A sala onde estávamos reunidos parecia o interior do saco da Mary Poppins, se ela tivesse sido uma prostituta lisboeta nos anos 60. Bugigangas, trapos, fotos antigas, cadeiras, bancos e muito mais forravam o espaço pequeno (tem pouco mais de um metro e oitenta de pé direito) onde começámos a conhecer melhor a nossa cicerone. Segundo o que nos contava, António Oliveira Salazar tinha acabado de criminalizar a prostituição, ocupação que até à altura era perfeitamente legal, havendo até um boletim emitido pelo Governo Civil onde cada “botãozinho” guardava o historial médico das inspeções regulares obrigatórias, “que se faziam lá para o [antigo Hospital do] Desterro”.

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Durante 25 minutos foi-nos sendo contada a história do espaço onde estávamos e das pessoas que por ele tinham passado, como a Guadalupe, beata de aparência mas “pecadora” de espírito, que guardava num altar cheio de louça das Caldas (sim, essa mesmo) a esperança de poder deixar para trás a prostituição. Também conhecemos o Jerónimo, moço de recados da casa e eterno amor da nossa Madame Alice que tinha sido preso há quatro meses — “denunciado à PIDE por um inspetor ciumento, que o queria só para ele”. Mas chega de spoilers, a parte mais gira desta experiência é o efeito surpresa que nunca nos larga. Nem à mesa.

O sashimi de atum a ser finalizado. Todos os pratos do menu foram feitos de propósito para este projeto. © Fernando de Pina Mendes

Ao atravessar a porta onde nos despedimos de Alice — “agora quero que ponham essa boquinha a funcionar antes de se tornarem minhas meninas” –, fomos transportados para um cenário digno de Agatha Christie, onde só faltava ver um Hercule Poirot (famoso detetive criado pela autora) a dar-nos as boas vindas.

Atrás de um comprido balcão de mármore branco, que se destacava entre a penumbra e os muitos apontamentos decorativos em cobre, a equipa de cozinha cumprimentou-nos. Já sentados, apresentaram-nos o couvert — “um bom botãozinho tem de se saber maquilhar”, disse o chef Guilherme. Uma caixa de blush onde a esponja é uma rodela de pão e o “pó” é uma manteiga de pinhão e outra de açafrão é a primeira a desaparecer. A próxima é o tubo de batom com paté de mexilhões, antes de se dar sumiço ao boião de creme… que tem no seu lugar queijo de Azeitão. Só pela descrição desta primeira parte dá para perceber que este não é um jantar normal, longe disso. Ao longo de duas horas, mais coisa menos coisa, passaram pelas nossas mãos pratos tão curiosos como um saudoso faisão (porque é que se deixou de consumir esta carne?) com amêndoas, bolbo de aipo e milho doce ou até um delicioso sashimi de atum com ruibarbo e umeboshi (espécie de conserva feita com ume, um fruto japonês). As surpresas que se anunciaram mais acima, neste texto, vão permanecer por revelar, sob pena de estragar a experiência. Contudo, uma pista nunca fez mal a ninguém: um dos pratos deve ser comido com os olhos vendados. Essa curiosidade já está a salivar? Caso a resposta seja positiva, apresse-se: já não tem muito mais tempo para poder aventurar-se na “má vida” e divertir-se muito ao fazê-lo.

O quê? Alice no País dos Bordéis
Quando? De terça a sábado, às 20h (em inglês, mediante marcação prévia) e às 21h (em português). Também é possível assistir apenas ao teatro: há sessões às 19h, 19h30 e 21h30
Onde? Pensão Amor, Rua do Alecrim, 19, Lisboa
Quanto? 6€ (só o teatro); 69€ (teatro e refeição). Reservas aqui