António Costa assumiu este domingo que houve uma “subestimação dos riscos de incêndio na primeira quinzena de outubro” e que hoje “é manifesto” que houve “carência de meios” na resposta aos fogos que atingiram as regiões norte e centro do país. Desafiado a responder se alguma vez ponderou a demissão, o primeiro-ministro foi claro: “Não“. E ainda deixou um aviso implícito a Marcelo Rebelo de Sousa.

Em entrevista à TVI, e mesmo reconhecendo as falhas na prevenção e resposta inicial ao incêndio, o primeiro-ministro voltou a lembrar “a excecionalidade do que aconteceu na noite de 15 e 16 de outubro”, nomeadamente os efeitos do furacão Ophelia no território português, com ventos muito fortes a atingirem o continente.

Sobre a resposta que o Governo socialista deu às pessoas que perderam tudo ou quase tudo nestes incêndios, António Costa reconheceu que a revolta é um sentimento natural e compreensível, mas colocou a tónica no que agora é preciso ser feito. “As pessoas exigem respostas concretas, mais do que palavras. Essas palavras estão ditas. É preciso fazer o que ficou por fazer”, respondeu o primeiro-ministro.

Eixo Belém-São Bento. “Seria uma enorme perda para o país que fosse prejudicada a boa relação”

A entrevista de António Costa acabaria por centrar-se na tensão latente entre Belém e São Bento. Aos microfones da TVI, o primeiro-ministro deixou uma resposta inconclusiva: “Da minha parte não há crispação nenhuma“. E da parte de Marcelo? Costa não foi tão longe.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Essa foi a formulação encontrada por António Costa para responder a praticamente todas perguntas colocadas sobre a suposta querela institucional. “Da nossa parte, estamos totalmente empenhados em manter uma relação de grande lealdade e cooperação com o Presidente da República”, insistia Costa, à medida em que se recusava a confirmar se sentira ou não traído por Marcelo Rebelo de Sousa.

O primeiro-ministro não faz análise política e as conversas são entre nós, não são para ser tornadas públicas. O que me cumpre fazer é fazer o que fiz até agora: uma relação de grande lealdade com o Presidente da República, que tem sido muito positivo. O país tem apreciado a excelente relação institucional entre Governo e Presidente da República”, sublinhou Costa.

Mais à frente, o líder do Executivo socialista diria mesmo que a relação com Marcelo Rebelo de Sousa — os dois conhecem-se há anos, quando Costa foi aluno do agora Presidente da República — “é hoje seguramente melhor“. Mas deixou um aviso cujo destinatário parece ser o Chefe de Estado: se as relações institucionais se alteraram, será uma “enorme perda para o país”.

“Um dos contributos que um primeiro-ministro deve dar é não comentar a atividade do Presidente. Seria uma enorme perda para o país que fosse prejudicada essa boa relação. O melhor contributo que tenho a dar é não entrar nesses comentários”, sugeriu António Costa.

Houve, no entanto, algo que António Costa não desmentiu: quando se dirigiu ao país, Marcelo Rebelo de Sousa sabia ou não que Constança Urbano de Sousa estaria a preparar a sua saída? Essa é, pelo menos a tese dos socialistas que manifestaram o descontentamento com o Presidente da República. Afinal, Marcelo terá exigido implicitamente uma demissão que estava praticamente consumada, aproveitando a fragilidade do Governo e passando uma “rasteira” a António Costa.

O líder socialista, ainda assim, recusou a confirmar se Constança Urbano de Sousa permaneceria no cargo se Marcelo não se tivesse dirigido ao país nos termos em que fez. “Não lhe vou responder a essa pergunta, porque pressupõe responder a outra pergunta”, rematou António Costa. Daí em diante, o socialista insistiria sempre que as conversas entre o primeiro-ministro e o Presidente da República serão sempre privadas e não reproduzíveis.

Esta foi a primeira entrevista de António Costa depois dos trágicos incêndios que se registaram nas zonas norte e centro do país. É também a primeira vez que o primeiro-ministro foi confrontado numa entrevista com o puxão de orelhas de Marcelo Rebelo de Sousa, depois de o Presidente da República ter feito um discurso absolutamente demolidor para o Governo socialista.

A gestão política que o Executivo de António Costa fez dos incêndios deste verão provocou uma viragem na relação institucional entre Belém e São Bento. Marcelo Rebelo de Sousa, que chegou a ser criticado à direita pelo apoio considerado excessivo que dava ao Governo socialista, perdeu a paciência e exigiu medidas práticas e concretas para impedir a repetição da tragédia. Mais: pediu desculpa ao país — algo que António Costa ainda não fizera — e humildade ao responsáveis políticos. Daí em diante, nada seria como dantes: depois da bonança, veio a tempestade — ou a trovoada, como explicava aqui o Observador.

Acabou o bom tempo. Começou a trovoada entre Belém e São Bento

António Costa deixaria cair a ministra da Administração Interna, Constança Urbano de Sousa. Mas os estragos já estavam feitos. Ao discurso destruidor de Marcelo Rebelo de Sousa, o Governo e outros socialistas responderam com “choque” e acusações de deslealdade à mistura — afinal, quando se dirigiu ao país, Marcelo já saberia da demissão e estaria a par das mudanças preparadas pelo Governo para a prevenção e combate aos incêndios. Às queixas do PS, o Presidente da República respondeu com um assertivo “chocado ficou o país”.

À firmeza de Marcelo Rebelo de Sousa, António Costa deu instruções aos socialistas para que moderassem as críticas ao Presidente e desistissem do choque frontal com Belém — o momento do Governo atravessa o momento mais frágil da atual legislatura e Marcelo está legitimado pela popularidade de que goza neste momento.

Mas nem com António Costa a encaixar com a graciosidade possível os golpes de Marcelo Rebelo de Sousa, o Presidente diminuiu a pressão. Ainda este sábado, no final da visita aos Açores, o Chefe de Estado foi claro: a exigência e o escrutínio ao Governo vão manter-se até ao fim da legislatura.

“Fui eleito diretamente pelo povo para exigir a mim mesmo e exigir aos outros que cheguemos lá. Não é uma teimosia. Não é uma questão pessoal ou conjuntural, é uma exigência nacional. O Presidente assumiu, e vai assumir até ao fim do seu mandato, com este governo tal como o futuro governo qualquer que ele seja, porque assume em relação a si próprio, um dever de exigência constante para que não ocorra novamente uma tragédia como essa”, garantiu Marcelo Rebelo de Sousa.

Um discurso brutal. O que disse Marcelo nas entrelinhas