Há ciúmes na “gerigonça”, como provou este Orçamento. O PCP e o Bloco de Esquerda disputaram entre si a atenção do PS — para aprovarem propostas — para depois chamarem a si os louros da aprovação. Mas de sexta-feira para domingo, houve uma traição: o Bloco desconfia que o PS se deitou com as grandes empresas ao recuar na taxa das energias renováveis. Arrufos na geringonça sempre existiram nos últimos dois anos, mas uma zanga séria (e pública) como a que houve esta segunda-feira à tarde entre PS e Bloco é inédita. O PCP — na posição mais confortável no triângulo desde as autárquicas — assistiu de camarote. No fim, lá aprovaram todos o orçamento.

PS, PCP e Bloco (com PAN e PEV a ajudarem) votaram a favor do Orçamento para 2018: o terceiro de quatro orçamentos do Estado que Costa precisa para cumprir aquilo que muitos não acreditavam: quatro anos, uma legislatura.

Nas últimas votações de propostas, e no encerramento do debate, houve traições, houve quem furasse a disciplina de voto (e logo no partido do Governo) e houve acusações entre parceiros, mas o Orçamento foi, como se esperava, aprovado.

A primeira zanga séria e pública da “geringonça”

Os trabalhos do Orçamento na especialidade acabaram já perto das dez da noite de sexta-feira. Bloco e PS ainda foram de fim-de-semana meio enamorados, como o braço mais forte da geringonça. Mas, em dois dias, tudo mudou. O PS avocou uma das medidas — a criação de uma taxa para empresas de energias renováveis que tinha aprovado ao lado dos bloquistas — para voltar a ser discutida em plenário no dia da votação final. O Bloco de Esquerda sentiu-se traído e protestou com estrondo. Não foi só um arrufo — dos que vão sendo comuns nos últimos dois anos — foi mesmo uma zanga séria. Para já, não teve efeitos: o BE acabou a aprovar o Orçamento, mas fez saber que já não confia tanto no parceiro. Perdoou, mas não esqueceu.

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Ao início da tarde, o deputado bloquista Jorge Costa classificou a mudança como “o que de pior há na política”, e que “voltar atrás com a palavra dada é o pior que a política pode dar às pessoas”. E não deixou de encostar o PS à parede com o sentido de voto: “Quem vão representar hoje: os portugueses, que pagam a mais alta fatura da eletricidade da Europa, ou o lobby”?

O PS assobiava para o lado, desconfortável como quem sabe que se portou mal. O deputado Luís Testa falou nas mudanças que o Governo fez no setor, mas não respondia diretamente. Mudava ou não o voto? Jorge Costa não permitia que o socialista se fizesse despercebido e carregava: “Também faz parte do pior da política refugiarmo-nos em questões laterais quando somos questionados sobre algo concreto”. O PS esgotaria o tempo sem responder, mas o Bloco deu solução e ofereceu um minuto do seu tempo:

O PS votou a favor desta contribuição na sexta-feira. Quer alterar o seu sentido de voto? E se quer, porquê?”, insistia Jorge Costa, que dizia que “faltaram nervos de aço ao Governo para enfrentar o lobby da energia nestes dias.”

O socialista Luís Testa lá respondeu, a custo, dizendo que a atitude do Bloco também revelava o “pior da política”. Já o tempo se esgotava, quando chegou, finalmente, uma justificação: “É hora de insistir nas energias renováveis que nos vão libertar mais tarde ou mais cedo do défice tarifário [e], por isso, é necessário prosseguir o cenário de cooperação com estas empresas.” Jorge Costa ainda aproveitou os últimos segundos que tinha para atirar à bancada socialista chamando o ato de “cambalhota triste.”

O PS chumbou mesmo a proposta. O deputado Ascenso Simões invocou a ética para furar a disciplina de voto e votou a favor da proposta. Em declarações ao Observador, justificaria que “há um dever de lealdade entre partidos que apoiam a solução governativa”, da qual nem é “entusiasta” [da solução governativa]”.

Mas o assunto não ficaria encerrado. Metade da intervenção do Bloco de Esquerda no encerramento, a cargo da deputada Mariana Mortágua, foi dedicada a denunciar e a registar esta traição. Mariana Mortágua lembra que a grande diferença da maioria de esquerda para as anteriores é o “respeito pela palavra dada”. A bloquista destacou que esta é a maior malfeitoria feita ao Bloco pelo PS desde que o Governo de Costa tomou posse: “O erro de hoje [voltar atrás nas taxa sobre renováveis] é inédito nos dois anos deste acordo [e o Bloco] quer registá-lo porque este erro marca o fecho deste processo Orçamental”. Para o Bloco é claro: “O Governo não honrou a palavra dada.”

Mariana Mortágua defende que a avocação a plenário “na 25º hora, já expirado até o prazo formal para pedidos de avocação, é um episódio que fica na história deste orçamento e desta maioria política.” Nem António Costa escapou: o PS “preferiu amarrar-se aos mesmos setores que já protegeu nos seus governos anteriores”, num momento em que “era preciso um primeiro-ministro com nervos de aço”. Colocou até as bancadas da direita em êxtase quando atirou: “Para nós, palavra dada é mesmo palavra honrada”.

O BE acabou por votar a favor do Orçamento, mas registou que não vai esquecer a “deslealdade”. O que os une (ter a direita longe do poder), é ainda mais que os separa (diferenças ideológicas). No encerramento, o PS não voltou a tocar no assunto.

Passos invoca o “ridículo”, na hora da despedida

O último discurso orçamental de Passos. A geringonça abanou, mas passou mais uma etapa: foi aprovado o terceiro de quatro orçamentos. Foi também essa estabilidade a contribuir para a saída de Pedro Passos Coelho, que após as autárquicas entendeu já não ter condições para continuar à frente do PSD. Na tarde desta segunda-feira o líder cessante do PSD fez o que será um dos seus últimos discursos parlamentares.

Passos estava solto. Ao longo do discurso — 17 minutos, mais dois de tolerância, dados por Ferro Rodrigues — fez várias críticas ao Governo, algumas que podiam ser tiradas a papel químico das que a oposição fazia na altura ao Governo que liderou: “Nunca a economia esteve tão assente num modelo de baixos salários e precariedade.”

A negação da realidade. O líder do PSD denunciou ainda que o atual Governo prometia uma “melhoria mais rápida dos rendimentos” acompanhada da descida da dívida e do défice, mas “os factos mostraram uma realidade diferente”. Que, segundo o líder cessante do PSD, o Governo se recusa a aceitar: “Se a realidade se atravessa numa boa narrativa, mantém-se a narrativa e nega-se a realidade“.

Passos Coelho antecipa que, por este caminho, haverá “uma legislatura inteira perdida” e tudo para “garantir a satisfação da ambição política de um Governo que só quer sobreviver e reescrever a história do seu próprio passado irresponsável”. Além disso, Passos diz que “da reforma do Estado ficam, infelizmente e apenas, as mentirelas [sic] que se sujeitam a desmentidos constrangedores”. O último, lembra, chegou esta segunda-feira pela “boca do presidente do Infarmed”.

A comédia e o ridículo. Sobre o caso Infarmed, Passos foi claro: “Estamos na presença da pura comédia e do ridículo”. No domínio do ridículo, Passos colocou vários atos da geringonça: a forma como o Governo geriu o “descongelamento das carreiras”; o facto da líder do Bloco de Esquerda falar numa dotação “vergonhosamente baixa” na Cultura, por contraponto ao aumento dos gastos com as reposições; ou ainda o facto do PCP reivindicar “os resultados mais simpáticos das medidas de melhoria de rendimento, mas lava as mãos do que designa de política de direita”.

Passos excedeu o tempo em cerca de dois minutos. Ferro Rodrigues ainda foi benevolente, mas acabou por insistir para o deputado do PSD terminar a intervenção. Da bancada do Bloco vieram apartes mais rudes: “Senta-te pá”; “Vai-te embora”; “Não te devias já ter ido embora?” Na esquerda, Passos não deixa saudades.

O esquerdino Pedro Nuno a malhar na direita: Nem Rio e Santana escaparam

O secretário de Estado da ala esquerda. Em dia de arrufo na “geringonça”, o secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, Pedro Nuno Santos, foi o escolhido para fazer o encerramento do Orçamento do Estado e foi buscar o maior cimento da geringonça: atacar a direita. Não disse que queria ir às “fuças” à direita, como António Guterres disse uma vez, nem “malhar na direita”, como o seu “camarada” de Governo Augusto Santos Silva, mas não deu tréguas às bancadas da oposição.

Ao saber que ia passar o terceiro de quatro orçamentos da geringonça, Pedro Nuno Santos afirmou que “todas as previsões da oposição falharam” e que aos que “agitaram todos os fantasmas” — onde se incluía a “instabilidade política”, o “desvario orçamental”, a “estagnação económica” ou a ” fuga dos investidores” — a esquerda provou que “afinal havia alternativa”.

O cimento: obstáculo à direita ou melhoria de vida? Em elogios à geringonça, Pedro Nuno Santos considerou que “esta maioria mostrou ser de confiança e merecedora de credibilidade” e que o debate do OE “mostrou que o PSD e o CDS escolheram não serem levados a sério”. O secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares garante que o que “une a maioria, ao contrário do que os críticos costumam dizer, não é apenas impedir que a direita governe”, mas algo “muito mais forte e construtivo” que é “a certeza de que é mesmo possível viver melhor em Portugal”. E foi continuando a disparar o ataque à direita: “Hoje sabemos que era possível governar sem culpar os portugueses. Que era possível governar sem culpar os portugueses”.

A pateada em seara alheia. Pedro Nuno Santos nem teve problemas, para atacar a direita, de transgredir uma das regras partidárias não escritas: as de não comentar a vida interna dos restantes partidos. “Tenho estado atento ao debate interno do PSD e não consigo identificar as famigeradas reformas de que tanto falam”, atirou. Mereceu pateada: os deputados do PSD bateram com os pés e nas mesas do plenário a protestar.

Pedro Nuno Santos continuou, rematando a sua ideia: “O conceito de reforma para a direita é privatizar, liberalizar e desregular. Reforma que é reforma tem de doer”, disse entre os protestos. E ainda garantiu, antes de dizer que a direita tem “uma visão sacrificial do futuro”: “Nós não faremos as reformas que a direita gostaríamos que fizéssemos. Não porque esta solução de Governo não as permite, mas porque o PS, pura e simplesmente, não concorda com elas”.

Obrigado pelas críticas. Num discurso que podia ser feito em qualquer uma das bancadas à esquerda do PS, Pedro Nuno Santos fez questão de destacar que o Governo não está a distribuir benesses, mas sim a repor a legalidade. “Nós não estamos a dar nada a ninguém. Estamos apenas a respeitar quem trabalhou uma vida inteira e merece uma reforma com dignidade”, explicou. No fim, Pedro Nuno Santos ainda agradeceu as críticas da direita a este Orçamento, dizendo que “são fundamentais” porque “ajudam a clarificar o que separa esta maioria e este Governo desta direita na oposição”.

Bloco e PCP. Tão diferentes, tão iguais (nas reivindicações)

A competição à esquerda. O PCP acabou por fazer críticas mais diretas ao Orçamento em comparação com o Bloco de Esquerda, mas há várias das reivindicações que se sobrepõem: na dívida, nas pensões, no IRS, no descongelamento das carreiras. São áreas onde prometem pressionar o PS. O líder parlamentar do PCP, João Oliveira, começou por dizer que “podia e devia ter-se ido mais longe” no Orçamento e que “este não é um Orçamento do PCP, é o Orçamento do Estado do Governo PS”. Já o Bloco acabou por concentrar as críticas na “deslealdade” da bancada do PS.

Em matéria de descongelamento das carreiras e contagem de tempo de serviço para efeitos de progressão da carreira ambos prometem não desarmar:

  • O Bloco, através de Mariana Mortágua, prometeu: “Não faltaremos ao nosso compromisso com os funcionários públicos, que merecem que o seu tempo de serviço, o seu esforço e o seu empenho sejam reconhecidos“.
  • O PCP, através de João Oliveira, também: “Não ficou clarificado, como o PCP propunha, que todo o tempo de serviço deve ser contado para efeitos da valorização remuneratória que resulta da progressão na carreira, mas esse é o objetivo pelo qual é preciso continuar a lutar na aplicação das normas do Orçamento do Estado“.

O mesmo aconteceu quanto à problemática dos incêndios, que ambos consideram ser insuficiente

  • O Bloco prometeu: “Não faltaremos ao nosso compromisso com o país que ardeu, e que espera e precisa, que merece e exige medidas urgentes para apoiar quem tudo perdeu, para reconstruir o que foi destruído, e para prevenir que uma tragédia assim se possa repetir.”
  • O PCP atirou: “Em matéria de incêndios ficou-se aquém daquilo que o PCP propunha.”

Em matéria de dívida e de défice os dois estão, claro, em pontos diametralmente opostos do PS e ao Governo, que criticou por dar a mão a Bruxelas:

  • O Bloco lembrou as “divergências de fundo” com o PS, destacando que “as imposições europeias em matéria de défice e dívida, aceites e executadas por este Governo, agriolham a democracia, impedem o investimento em serviços públicos, e ameaçam a sustentabilidade da recuperação económica. Isso não mudou”
  • O PCP lembrou que “dívida, euro, regras e política da UE continuam a pesar de forma particularmente negativa, mesmo para lá das exigências externas” e que “as metas de redução do défice que o Governo impõe a si próprio continuam a limitar o ritmo e alcance da reposição de direitos e rendimentos e o investimento público necessário”.

Bloco e PCP foram também unânimes nas críticas à direita, que consideram muito pior que qualquer governação socialista. Ambos continuam a apontar como horizonte o fim da legislatura. Três orçamentos já passaram, dois anos também.