Ainda não tinha completado dez anos e já sabia o que era viver aterrorizado. Mal saía de casa e confrontava-se com a dura realidade de uma guerra: cadáveres abandonados no chão. Mortos como as vítimas do semanário Charlie Hebdo ou do supermercado judaico na porta de Vincennes, em Paris. A sangue frio. Aghiles vivia na Argélia, de onde o pai tinha saído logo após a Guerra pela Independência. Só aos dez anos conseguiu juntar-se a ele, em França. O país onde, afirma, aprendeu que há quem faça distinções entre as pessoas e que a isso se chama “racismo”.
Aos 25 anos, Aghiles tem bem presente o que sentiu na infância. Um sentimento de sobressalto que agora assola também os franceses. E os próprios muçulmanos, com medo de represálias. De discurso determinado, lembra que em território francês há mais de cinco milhões de muçulmanos que praticam a religião diariamente. “E que não são todos fanáticos. Estamos a falar de três”.
Entrou no café junto à zona do Trocadero, em Paris, de passo acelerado. Deu a palavra de que falaria ao Observador e não queria, sequer, fazer alguém esperar. Apresentou-se como responsável por um restaurante parisiense onde trabalha um grande chef. Não disse o nome dele. “Podia ter estudado e ido mais longe. Tinha capacidade para isso. Mas preferi parar e entrar no mercado de trabalho mais rapidamente para ser independente”.
Vê-se que pensou no que queria dizer. Não queria deixar margem para dúvidas no seu discurso. “Cresci sempre com uma educação religiosa muito profunda. A meu ver isso é fundamental. Sem educação, acontece o que está a acontecer agora”, diz Aghiles, que aproveita para retirar do telemóvel a imagem de um Imã islamita e ditar a sua frase: “o pior inimigo do Islão, são os ignorantes…”.
O fanatismo. Para Aghiles há pessoas “sem formação e completamente perdidas” que estão a deixar-se “doutrinar por grupos fanáticos e extremistas, peritos em verdadeiras lavagens cerebrais”. E dá como exemplo os dois irmãos, Saïd Kouachi e Chérif Kouachi, que atacaram o Charlie Hebdo. Dois homens que nunca tiveram família, educação religiosa ou perspetivas de futuro. “São pessoas manipuláveis”.
Aghiles, que horas depois da entrevista acabaria por pedir para ser apenas tratado pelo primeiro nome, confessa que soube o que era racismo quando chegou a França. Na Argélia, diz, “os mais ricos tendem a esconder a riqueza dos mais pobres, para não os ferir”. E as religiões, garante, como o islamismo e o cristianismo, convivem lado a lado com respeito e sem interferências.
Em território francês, este argelino aprendeu “que havia quem dividisse a humanidade de acordo com a cultura ou com a nacionalidade”. “Não senti o racismo diretamente na pele, não. Mas assisti a amigos que foram vítimas. Eu, se for vítima de racismo, ignoro”.
Em 2011, quando o então presidente francês Sarkozy conseguiu a promulgação da lei que proibia o uso do véu islâmico em locais públicos, Aghiles sentiu, mais uma vez, essa diferença. “Para mim é uma forma de dizer que o Estado não é laico. Porque a partir do momento em que a laicidade é seletiva, quando dita o que podes ou não vestir, então ela não é universal. Eu não sou mulher, não posso dizer como me sinto, mas é descriminação. Pior, o Governo incita ao racismo com estas medidas”.
Também aqui, afirma, a lei atinge os mais fracos. “A polícia vai controlar o uso do véu em Nantes ou em Toulouse, mas não vai controlar o uso do véu por turistas sauditas, por exemplo, que se passeiam pelos Champs Elysées. São países ricos com quem a França tem interesse em manter boas relações”. Medidas que, para Aghiles, só potenciam o racismo e que podem ser uma explicação para que o islamismo seja “sistematicamente alvo de piada”.
Quando o semanário satírico Charlie Hebdo toma a religião muçulmana como “uma categoria” e caricatura “uma pessoa espiritualmente muito respeitada pela nossa religião como é o caso do profeta Maomé, isso fere-nos. Eles foram longe demais”, diz. Fere mais ainda quando pessoas “sem conhecimento sujam a religião, levando os outros a pensar que os muçulmanos são todos iguais e que são todos assassinos”.
“Não há uma única palavra no Corão que incite à violência, ao uso de armas e a matar. O único momento que encontramos referência às armas é quando a Nação estiver ameaçada por um inimigo exterior, como é o caso da França quando ela foi obrigada a resistir aos alemães”, diz. O problema é que, ao contrário da religião católica, “no islamismo não há líderes, como o Papa”. “Acredita-se que a religião é transcendente entre o ser e o criador. Mas depois qualquer um se pode autoproclamar Imã e doutrinar quem quiser da forma que quiser”.
Medo? “Não. Se atacarem mesquitas, agredirem muçulmanos, só estão a ser iguais aqueles que fizeram o atentado e cujos atos abominamos”.
“Quando mostrei o passaporte pensei o que iriam pensar de mim”
Estava de férias na Tunísia quando soube dos atentados em Paris. Tahar, 29 anos, há nove em França, pensou: “outra vez os muçulmanos!”. No dia de regresso a Paris não conseguiu, sequer, despir-se do possível preconceito de que poderia ser alvo: será que quando olharem para o meu passaporte vão achar que sou terrorista?
Ainda não despiu o fato e a gravata do trabalho como gestor de projeto de uma empresa imobiliária. Teve tempo de preparar uma coca-cola com cereja e um prato de biscoitos e tâmaras que trouxe da terra natal, a Tunísia. “A nossa religião educa-nos a, sempre que recebemos alguém, darmos o que temos. Mesmo que nada reste para nós”.
Quando, há quase dez anos, decidiu fechar a porta de casa para emigrar e abraçar a independência não o fez por dificuldades económicas. Há muito que o pai tinha negócios em França e que, na Tunísia, nada lhe faltava. “Tinha os carros e as motas que queria. Uma casa grande ao pé da praia, um andar só para receber amigos”. Mas queria pôr-se à prova. Acabou os estudos e obteve dois vistos: um para o Canadá e outro para França. Escolheu o segundo, mais perto e com os valores que mais o orgulhavam: igualdade, liberdade, fraternidade. “Sempre adorei a cultura francesa”.
Ainda antes dos atentados, Tahar já se tinha sentido afetado na sua profissão pela religião. O patrão, de origem portuguesa, não lhe negou que trouxesse o tapete para o escritório para cumprir as suas cinco orações diárias. “Mas às vezes esqueço-me de guardar o tapete e sei que há clientes que não gostam. Chegam mesmo a recusar a minha proposta e a procurar os meus colegas. E aceitam a proposta deles, precisamente igual à minha”.
Tahar tenta não focar-se nisso. Mas depois dos atentados é difícil abstrair-se da ideia de que pode ser olhado com suspeição. “E hoje estava no trabalho e, pela primeira vez, senti-me mesmo mal disposto com isso”.
Está ao lado da estante onde exibe um troféu de campeão de bilhar e várias fotografias da família e da esposa. Há pouco mais de um ano foi de propósito à Tunísia para a festa de noivado com a rapariga lhe fora prometida. Há dias casaram pelo registo civil, mas só em agosto será a cerimónia oficial. Uma festa “a sério”. A partir daí a mulher juntar-se-á a ele em Paris. “Se tudo correr bem. Ela está com medo de vir. Mas há pouco disse-lhe: já imaginaste o que é viver num país livre, onde uma mulher branca pode casar com um homem negro? Onde todos são livres?”.
Por baixo das fotos de família, as páginas do Corão aberto. “Não há aqui uma única palavra que incite à violência, pelo contrário, o islamismo incita à fraternidade e à solidariedade. Os homens que fizeram os ataques em Paris são falsos muçulmanos, muitas vezes recrutados sob promessas de dinheiro, carros e mulheres”.
Franceses manifestaram-se para que ele não fosse expulso
Não tinha passado muito tempo dos atentados de 11 de setembro de 2001, em Nova Iorque, quando Ahmed, hoje com 49 anos, se deslocou à Prefeitura (uma espécie de Governo Civil) para renovar a autorização de residência em França. Vivia nos arredores de Paris há mais de dez anos mas, naquele dia, sem qualquer explicação, disseram-lhe que não renovariam mais o documento. E deram-lhe ordem de expulsão. Ahmed fez as malas, respeitou a decisão e regressou à sua cidade natal, em Agádir, Marrocos.
Mas, na vila de La Roche Guyon, a cerca de 70 quilómetros de Paris, a decisão não caiu bem na comunidade, maioritariamente francesa. “As pessoas da vila decidiram fazer uma manifestação e fazer pressão junto da Prefeitura para que eu voltasse”, recorda com gratidão.
A Prefeitura acabou por contactar o Consulado de Marrocos que localizou Ahmed. Ele podia voltar a França e com a autorização de residência igual à que tinha anteriormente.”A Roche não seria igual sem mim”, diz, sorridente. Ahmed acabou por comprar a mercearia onde trabalhava. Antes ainda foi a Marrocos casar. E teve uma filha. A família juntou-se a ele. “A minha mulher arranjou logo trabalho. A minha filha tem hoje sete anos”.
Ahmed garante jamais ter sido vítima de racismo. E que mesmo após os ataques ao Charlie Hebdo e a um supermercado judaico não teve medo de levar a filha à escola. “Esta é uma vila pequena, onde todos se conhecessem. Espero que o que aconteceu tenha sido um caso isolado”. A filha viu nas notícias o que aconteceu. Desconhece as diferenças religiosas, mas afirma, como todos os outros, que é “Charlie”. “Afinal todos somos Charlie”, diz Ahmed.
Ahmed, Tahar, Aghiles são apenas três dos 5, 5 milhões de muçulmanos praticantes que habitam em França e que ocupam os mais diversos lugares da sociedade francesa.