A infanta Isabel Luísa Josefa, filha única do futuro D. Pedro II, morreu ainda criança, mas teve pelo menos 17 pretendentes, tendo mesmo chegado a ficar noiva do Duque de Saboia. Pretendentes também foi algo que não faltou a D. Beatriz, filha de D. Fernando I, tendo contraído matrimónio com apenas dez anos de idade com D. João I de Castela. Antes, chegou a participar num ritual com o conde de Cambridge, onde se simulava a consumação do casamento. Mais complicada foi a vida de D. Constança Manuel, que ficou mais de dois anos prisioneira depois de o marido, Afonso XI, a ter repudiado. Tinha sete anos.
Estes são apenas alguns dos casamentos estudados nos dois volumes da obra “Casamentos da Família Real Portuguesa: Diplomacia e Cerimonial”, coordenados por Ana Maria S. A. Rodrigues, Manuela Santos Silva, ambas especialistas em história medieval, e Ana Leal de Faria, especialista em história das relações externas portuguesas, brasileiras e europeias.
As professoras de História na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa analisam os vários matrimónios da monarquia portuguesa, tanto os negócios falhados como aqueles que se concretizaram, desde a cerimónia profana à religiosa. O objetivo era apenas um: a união entre dois reinos. Casamento por amor? Ainda hoje fica a dúvida.
Como surgiu a temática dos casamentos na Família Real Portuguesa?
Manuela Santos Silva (MSS): Tínhamos começado a estudar temáticas relativas à monarquia, nomeadamente às rainhas de Portugal [obra publicada pelo Círculo dos Leitores] – um projeto que eu e Ana Maria Rodrigues fizemos em colaboração com outras colegas. Uma das questões mais interessantes era como a monarquia utilizava o casamento, algo que hoje em dia pertence à esfera privada, como instrumento de política externa. Isso levou a que fosse criado um seminário de doutoramento sobre alianças dinásticas e redes de poder, que encontrou uma parceira muito interessada: a professora Ana Leal de Faria, que trabalhava sobre diplomacia.
Ana Leal de Faria (ALF): Houve um encontro de interesses. O centro [de História, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa] tem um protocolo com o Instituto Diplomático, do Ministério dos Negócios Estrangeiros, e de lá foi manifestado o interesse de se desenvolverem estudos sobre os casamentos inicialmente a propósito da Casa de Bragança. Em conjunto com as minhas colegas, que já tinham pegado nessas temáticas, resolvemos alargar o estudo a toda a monarquia portuguesa e envolver os nossos estudantes de pós-graduação, mestrado e doutoramento. Foram também realizados dois seminários abertos ao público. Entretanto as professoras Ana Maria Rodrigues e Manuela Santos Silva, que já tinham coordenado a série das rainhas [de Portugal], entraram em contacto com o Círculo de Leitores que manifestou interesse em publicar o conjunto dos trabalhos dos seminários e resultaram nestes dois volumes. Vamos lá ver se podemos fazer um terceiro seminário para um terceiro livro [risos].
Fazem ideia de quantos casamentos houve na monarquia portuguesa?
Ana Maria Rodrigues (AMR): Não, os casamentos são muito numerosos. Para além daqueles que efetivamente se realizaram, há depois todos os que falharam, porque houve imensas negociações e propostas.
ALF: Só tivemos dois reis que não casaram: o desejado, D. Sebastião, e o cardeal [D. Henrique I]. Os outros casaram — uns até mais do que uma vez —, além dos outros membros da família real (os infantes, as infantas, etc).
O conceito de casamento alterou-se ao longo dos anos?
AMR: Alterou-se bastante, sobretudo da época medieval para a moderna. No período medieval, o casamento era ainda muito plástico. A Igreja ainda não tinha investido com muita força, portanto, ainda não era considerado um sacramento. As pessoas podiam passar pela Igreja para serem benzidas ou o sacerdote podia ir a casa benzê-las, mas não era algo absolutamente indispensável. É por isso que, em relação aos nossos primeiros reis, existe uma conceção completamente diferente daquilo que é um casamento, legítimo ou ilegítimo, daquilo que é uma filha legítima ou ilegítima, porque ainda não há uma caução religiosa para o casamento. Essa caução vai sendo cada vez mais reforçada e, a partir do Concílio de Trento [século XVI], é absolutamente incontornável. Mas já desde a reforma gregoriana – desde praticamente o século XII – que a Igreja começa a impor o casamento religioso: começou primeiro pelas casas reais e foi progressivamente alcançando a aristocracia e o povo.
O que se altera nos casamentos com a entrada da Igreja na equação?
AMR: O tipo de uniões tinha interesses diferentes. Quando era um assunto completamente profano, eram os interesses das famílias que predominavam. Ninguém perguntava a opinião dos noivos. É claro que, depois, em muitos casos, continuava-se a não perguntar — quando se casavam crianças, por exemplo —, mas a Igreja exige a formulação da vontade. Aliás, um dos argumentos mais importantes do casamento como sacramento é o “sim” dito pelos noivos. Pode ser menos ou mais condicionado, mas ao menos perguntavam-lhes, coisa que na cerimónia profana nem sequer era feita.
Na Idade Média, quando o casamento ainda não era religioso, a noção daquilo que era o incesto — a noção do que era um casamento com um parente próximo — era diferente. Foi a Igreja que impôs regras de exclusão do casamento com parentes, inicialmente muito exageradas — não se podia casar com um parente de sétimo grau, depois baixou para terceiro grau. Era chocante, porque não se conseguia encontrar praticamente ninguém que não fosse parente até ao sétimo grau.
Havia muito esse hábito de casar com familiares?
AMR: Sim, e sobretudo havia também o hábito de se casar e “descasar”, algo que depois a Igreja também não permitiu. Ou seja, havia essa possibilidade de casar com um parente próximo, mas sobretudo havia a dissolubilidade do matrimónio. Por exemplo, quando uma mulher não lhes dava filhos, os reis e os aristocratas separavam-se e arranjavam outra mulher com tranquilidade absoluta, enquanto a Igreja depois vai impor a indissolubilidade do casamento.
ALF: De qualquer maneira, os interesses materiais continuaram presentes. Apesar de a Igreja disciplinar, as dispensas papais também eram dadas com alguma facilidade, quanto mais alta fosse a hierarquia social e a capacidade de argumentação. Por exemplo, D. Maria I casou com o tio [Pedro de Bragança], irmão do pai, e o seu filho mais velho [José, Príncipe do Brasil] casou com a tia [a infanta Maria Francisca Benedita], irmã da mãe e quinze anos mais velha. Isto eram assuntos que envolviam as famílias, era um negócio.
Como é que eram feitas estas negociações? Os noivos eram tidos em conta ou eram só os pais?
AMR: Dependia de quem fosse casar. Se quem fosse casar já era rei, obviamente tinha ele a iniciativa. Se fosse príncipe, em princípio, eram os pais que tratavam disso. O pai, essencialmente, embora tenhamos constatado que, na época medieval, as mães eram o primeiro contacto ainda informal. As mães indagavam se havia alguma princesa casadoira, se havia interesse da parte da outra corte na realização da união e, se houvesse um bom recebimento desse primeiro contacto, então entrariam em ação os monarcas — os responsáveis pelos noivos — e os seus emissários.
ALF: As coisas vão evoluindo, mas não eram muito diferentes na época moderna. No início, as coisas eram muito melindrosas — havia negociações secretas porque, se falhassem, não convinha que se soubesse. Não podemos esquecer que Portugal teve um período de uma dinastia estrangeira, os três Filipes, e os casamentos serviam muito de arma política: era importante cimentar com uma aliança matrimonial alianças políticas de inimigos com Espanha.
Podia ser feita mais do que uma negociação ao mesmo tempo?
ALF: Podia. Por exemplo, enquanto em França se desenvolviam as negociações para casar D. Afonso VI, D. Francisco Manuel de Melo foi a Itália para saber se era possível contrair matrimónio com uma das princesas da Casa de Parma. É muito engraçado, porque ele achou que o dote era pouco e uma era feia, outra era gorda portanto não valia a pena [risos].
MSS: D. Fernando também fez várias escolhas praticamente simultâneas e, em termos políticos, em sentido contrário. A filha [D. Beatriz], que acabou por casar com 10 anos de idade, desde os três anos que conheceu uma série de comprometimentos em seu nome com fins matrimoniais.
Foram negociações que não se chegaram a concretizar?
MSS: A não ser a última.
Ou seja, era normal haver este tipo de promessas que depois não se concretizavam?
MSS: O processo do casamento era muito longo. Começava com as indagações sobre a possibilidade de uma negociação, depois trocavam-se embaixadores (enviados do rei). No final da Idade Média, começa a haver o hábito de a embaixada levar consigo um pintor, que fizesse o retrato da noiva, para dar conhecimento ao interessado sobre “as condições e a fama” da noiva. Depois, processavam-se várias negociações e trocas de interesses, porque envolviam sempre algumas doações de bens materiais de parte a parte.
Como por exemplo?
MSS: Quando eram negociações com Castela, havia sempre trocas de povoações que tinham sido tomadas a um reino e a outro durante a guerra, portanto eram novamente restituídas nestes pactos de amizade. Normalmente, estes casamentos eram sempre parte integrante de um tratado de aliança entre os dois reinos, ou seja, não era o casamento que vinha com o tratado, mas era o tratado que trazia uma aliança dinástica. Para cimentar o amor entre dois reinos, fazia-se precisamente a união entre duas casas monárquicas.
ALF: No século XVII, o processo foi muito semelhante para a princesa herdeira e filha única do futuro D. Pedro II: a infanta Isabel Luísa Josefa. Que se saiba, teve 17 pretendentes e chegou a ficar noiva [do duque de Saboia] — com troca de presentes e de retratos (com brilhantes à volta, como era de costume na época). O embaixador de Saboia veio a Lisboa, houve fogo-de-artifício, festas, esponsais, mas quando a embaixada portuguesa, liderada pelo Duque de Cadaval, foi a Turim buscar o noivo ele recusou-se a ir — o pretexto era que estava doente. Na época, ela tinha 11 anos e ele tinha 15. Este é um exemplo de um casamento que não se concretizou, mas envolveu negociações com as potências europeias.
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“Quando se tratou de procurar novo casamento para D. Pedro II e novo noivo para a infanta D. Isabel Luísa Josefa, então única herdeira do trono, o duque de Cadaval aconselhou o rei a «procurar […] dos seus Ministros que assistem nas Cortes de Europa as noticias que cada um tem dos Príncipes e Princesas dela e depois Vossa Majestade fazer eleição deve mandar examinar, pela pessoa que lhe parecer, alguns particulares mais domésticos, […]»”.
“Tu felix Austria nubes”, Ana Leal de Faria, “Casamentos da Família Real Portuguesa”, Vol. I
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MSS: O processo, que começava com as negociações, passava por várias etapas e nenhuma delas era definitiva.
Só se tornava definitivo quando se realizava o casamento?
AMR: Quando era consumado.
Havia idades mínimas para os casamentos serem consumados?
AMR: 12 anos para as raparigas e 14 para os rapazes.
MSS: E nem era bem os 12 anos, era o ano em que faziam 12 anos.
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“Ao chegarem aos 12 e 14 anos, respetivamente, raparigas e rapazes podiam receber a bênção nupcial na igreja, porque se considerava que já estavam dotados da capacidade de procriar, que constituía o fim último do casamento cristão. Contudo, nem sempre as bodas se realizavam nessa altura e há que procurar os motivos que podem explicar tal situação. Por exemplo, em caso de urgência, uma menina podia ser autorizada a consorciar-se antes dos 12 anos de idade se fosse garantido que tinha a maturidade física necessária para ser mãe.”
“Casamentos régios na Idade Média: um feixe de problemas”, Ana Maria S. A. Rodrigues, “Casamentos da Família Real Portuguesa”, Vol. I
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ALF: Pelo menos no século XVIII, o critério era ser possível a procriação. D. Carlota Joaquina, que casou com o rei D. João VI, só consumou o casamento aos 15 anos.
Estamos a falar de casamentos com crianças…
ALF: Ou adolescentes e pré-adolescentes.
No livro descrevem um ritual em que deitavam os noivos, ainda crianças, em cima de uma cama e os benziam. Era algo comum?
AMR: Os casamentos entre crianças sim, mas cerimónias destas não se conhecem muitas.
Em que consistia ao certo?
MSS: São nitidamente uma conceção de casamento profano. Servem para dar uma maior segurança à negociação do casamento: simula-se precisamente a consumação do casamento. O deitar no leito e depois serem abençoados é uma introdução da questão religiosa, mas que serve um pouco para escamotear precisamente a crueza de deitar os dois cônjuges à vista de toda a gente no leito. Alguns relatos que temos são até um bocadinho anedóticos.
Como assim?
MSS: Datam do século XIV e percebe-se que os cronistas estão já pouco à vontade em relatar estas cerimónias. Dá a sensação que elas deveriam ser comuns em tempos anteriores e que, se calhar, estavam a começar a ser postas em causa. Fernão Lopes narra isso precisamente em relação à infanta D. Beatriz, filha de D. Fernando que tinha oito anos de idade, e o filho do conde de Cambridge, que tinha seis anos.
MSS: Já o cronista Froissart narra o mesmo tipo de cerimonial em relação à rainha Filipa de Lencastre e um emissário de procuração do rei D. João I [de Portugal], que se terá deitado no mesmo leito com a rainha e foram abençoados pelo arcebispo de Braga. Algo que Fernão Lopes cala completamente e acrescenta, ao cerimonial das crianças, que era um costume de Inglaterra, enquanto nas documentações inglesas diz-se que se trata de um costume português.
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“Embora as crianças, unidas por simples promessas para o futuro, fossem já consideradas casadas e tratadas como tal, enquanto não se desse a união perante a Igreja e a cópula carnal havia sempre a possibilidade de revogar o contrato e estabelecer outro considerado mais vantajoso. Daí que fossem usualmente tomadas medidas para o dificultar, que devem ser identificadas. Uma dessas medidas consistia na consumação simbólica do casamento, através de uma cerimónia que mimetizava o que se passa na noite de núpcias. É uma cerimónia deste tipo que Fernão Lopes nos descreve ao relatar o consórcio entre a infanta D. Beatriz e o filho do conde de Cambridge, «moços pequenos» à data da ocorrência: «e foram ambos lançados em huua grande cama e bem corregida, na câmara nova dos paaços d’el-rei; e o bispo d’Acres e o de Lisboa e outros prelados rrezarom sobre eles, segundo costume de Hingaterra, e os beenzerom». Apesar desta precaução, o casal não chegou a ser unido por sacramento do matrimónio na idade própria, tendo acabado ambos por casar com outras pessoas”
“Casamentos régios na Idade Média: um feixe de problemas”, Ana Maria S. A. Rodrigues, “Casamentos da Família Real Portuguesa”, Vol. I
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Quantos desses casamentos resultaram efetivamente em matrimónio?
AMR: Houve casamentos que não resultaram, mas que deram origem a guerras. Os tratados não eram uma coisa que se pudesse quebrar com esse à vontade. Temos vários casos de princesas que foram repudiadas pelos maridos, cujos pais quiseram recuperá-las e foram em guerra contra os maridos faltosos. A pobre da D. Constança Manuel, que ao que parece foi tão infeliz com o rei D. Pedro, já vinha de um casamento falhado com o rei de Castela, Afonso XI.
Isso ainda durante as negociações ou já depois do casamento?
AMR: Já tinham sido as negociações, já se tinha assinado um contrato, já tinham sido dados reféns, a noiva já tinha sido enviada para casa do noivo, mas ainda não tinha havido consumação porque ela ainda era muito nova. Afonso XI repudiou-a, mas o pai revoltou-se e levantou-se em armas contra ele.
O que aconteceu à princesa?
AMR: Ficou mais de dois anos prisioneira.
Que idade tinha Constança Manuel?
AMR: Tinha sete anos.
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“Também Branca de Castela, primeira noiva do futuro D. Pedro I de Portugal, repudiada por volta de 1334, quando o casamento deste foi combinado com a já referida D. Constança Manuel, só foi restituída à família em 1341”
“Casamentos régios na Idade Média: um feixe de problemas”, Ana Maria S. A. Rodrigues, “Casamentos da Família Real Portuguesa”, Vol. I
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ALF: As coisas repetem-se. D. Mariana Vitória [de Bourbon], mulher de D. José, casou aos três anos com Luís XV e foi para a corte de França. Quando tinha seis, e Luís XV já tinha 15 anos, a princesa espanhola não podia consumar o matrimónio e a política francesa mudou. Optaram por um casamento com uma princesa de 20 anos, filha do rei da Polónia, e D. Mariana Vitória foi devolvida a Madrid. Não houve uma guerra, mas foi muito complicado. Os embaixadores sugeriram-na depois ao rei D. João V [pai de D. José I] e pareceu ser um bom negócio para Portugal. Aos 11 anos, depois de prolongadas negociações, Mariana Vitória vem para Lisboa.
Quantos tempo costumavam demorar estas negociações?
MSS: Depende muito. Às vezes demoravam anos.
Quem assinava os contratos e que termos constavam, por norma, desses documentos?
MSS: No século XIII, o contrato que veio de Aragão para o casamento de Isabel de Aragão — conhecida por Santa Isabel, na altura com 12 anos — com D. Dinis tinha as palavras que a espanhola tinha dito ao concordar com o casamento, dizendo que era de sua livre vontade que iria contratar aquele casamento. Além dos termos todos do contrato que vêm descritos, inclusivamente as trocas de bens económicos — o que ela iria ganhar com o casamento em termos de rendas, bens que lhe seriam dados e um dote que traria de Aragão.
E o contrato era assinado pelos noivos ou pelo rei?
AMR: Se o rei já fosse adulto, seria o próprio. Se não, eram normalmente os pais, os dois monarcas que assinam através dos embaixadores, portanto eles raramente se encontravam.
MSS: A primeira fase do casamento era sempre por procuração. Normalmente era feito antes de a noiva iniciar a sua viagem para o seu novo reino: um dos embaixadores faz o papel do noivo e dava-se um casamento por procuração. Simplesmente é um casamento chamado “de palavras”, o que significa que se pode voltar atrás, já que não é um casamento de consumação.
Esses contratos eram documentos fixos?
AMR: Não, os contratos de casamento mudaram ao longo dos tempos. Por exemplo, há uma cláusula no contrato de casamento de D. Constança Manuel [com D. Pedro I], exigida pelo pai dela e que parece muito bárbara, mas mostra um casamento que ainda está a evoluir do profano para o religioso. Está no contrato que o marido não “tomará mancebo” enquanto ela tiver capacidade de ter filhos. Ele está a prever que o rei não deveria arranjar outra mulher (ter uma amante) enquanto ela lhe desse filhos. Isto é a justificação do casamento através da procriação e, de certa maneira, uma forma de não desonrar a rainha enquanto ela cumprir a sua função procriadora. É evidente que uma cláusula destas, quando o casamento estiver completamente cristianizado, não tem razão de ser. Não pode ficar escrita [risos].
Quando as noivas chegam ao reino do futuro marido, há logo uma cerimónia de casamento?
AMR: Podia demorar algum tempo. Os festejos eram muito importantes, tinha de haver um conjunto de celebrações em torno do casamento. A cerimónia na Igreja nem sempre era a mais importante, ainda que necessária e só a partir daí podia haver a consumação.
ALF: Os festejos eram a maneira de fazer participar e publicitar o casamento. As luminárias, o fogo de artifício, os tiros de canhão, as touradas manifestavam esse regozijo.
Quanto tempo duravam esses festejos?
ALF: Podia durar três dias ou uma semana inteira, e depois propagava-se ao longo do reino. A notícia de um acontecimento muito importante em Lisboa podia chegar a Guimarães uma semana mais tarde e, nessa altura, havia festejos.
Havia banquetes?
MSS: Depende. No casamento de D. João I com D. Filipa de Lencastre, Fernão Lopes faz uma descrição dos festejos aristocráticos e do que era fazer a cidade toda participar — eles casaram no Porto. Diz que se espalharam flores de cheiro pelas ruas, que se abriram praças onde antes eram descampados, fizeram-se torneios, organizaram-se jogos em várias ruas e em vários largos. Depois houve a boda e depois de virem da Igreja houve um banquete cujo mestre de cerimónias foi o Condestável do reino, D. Nuno Álvares Pereira, e os grandes nobres do reino serviram às mesas.
Havia bebidas ou comidas típicas?
MSS: Penso que sim. Nesse propriamente não vem descrito, mas a propósito de outras festas diz-se que se mandavam vir açúcares de outros locais — que era uma coisa raríssima — para fazer manjares e falam de muitas carnes.
AMR: De bebidas, vinho e hidromel. Mas há todo um aparato cénico. São alimentos que vêm para as mesas decorados. Por exemplo, vinham bois inteiros com coisas douradas nos cornos, traziam aves com as penas ainda muito coloridas. Ou seja, tinham mais um aspeto de encenação do que de alimentos muito diferentes.
Isto na Idade Média. E depois na Idade Moderna, com a Igreja Católica?
ALF: Havia também as celebrações na rua.
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“Os casamentos dos príncipes herdeiros implicavam diversas manifestações públicas que tinham como objetivo atrair as multidões, fazendo-as partilhar da alegria da família real. Mas não bastava seduzir, era necessário comover, envolver cada um, como se da sua própria família se tratasse, em festas que tradicionalmente se prolongavam por três dias com luminárias, foguetes, repiques de sinos, missas solenes, Te Deum de ação de graças, procissões, touradas, desfiles de carros alegóricos, ópera, música, enfim, um sem-número de manifestações de júbilo que deveriam ficar gravadas na memória dos povos identificados com a monarquia, símbolo da nação”
“Pactos de família ou alianças políticas? Os casamentos da família real portuguesa na segunda metade do século XVIII”, Ana Leal de Faria, “Casamentos da Família Real Portuguesa”, Vol. II
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Como era a boda em si?
ALF: Era feita com mais ou menos sofisticação. Luís XIV e Maria Teresa, por exemplo, casaram numa vila piscatória, Saint-Jean-de-Luz. Os mercadores da cidade cederam as suas residências — ele foi para uma casa e ela para outra —, houve obras na igreja-matriz local. Foram pela rua fora, estava tudo engalanado com flores, e as pessoas vinham assistir. Como a corte estava ali, durante vários dias houve bailes, banquetes, festas.
E a indumentária?
AMR: Também era descrita, mas não havia vestido de noiva. Era uma roupa muito opulenta, mas absolutamente comum em relação às outras.
MSS: Não era um cerimonial com um peso excessivo. O considerar o ato do matrimónio uma cerimónia que deve ter alguma visibilidade só começou a ocorrer a partir do século XV. Na Idade Média, tirando já uma imagem do casamento de D. Filipa de Lencastre e D. João I, não existem nenhumas visualizações de casamentos. Dá a sensação que o cerimonial de casamento de facto não existia. O casamento é um ato, mas não tem propriamente uma cerimonialização e uma ostentação assim tão grande.
A noiva levava a corte com ela para o futuro reino?
AMR: Não, trazia algumas damas e alguns oficiais, mas grande parte das pessoas que vinham à entrega [da noiva] depois iam-se embora. Ficariam durante algum tempo por causa dos festejos, mas presumia-se que se retiravam.
Quando se tratava de casamentos que eram para estabelecer um acordo de paz entre os dois reinos, não havia depois alguns conflitos? Estamos a falar de pessoas que, num dia eram inimigas, e noutro já estavam a conviver.
AMR: No casamento de D. Leonor de Aragão com D. Duarte, ela veio acompanhada por um séquito castelhano e parece que logo que entrou em Portugal, os portugueses e os castelhanos desentenderam-se e a população portuguesa da raia ajudou os portugueses. Houve ali um conflito sério e D. João I ainda teve de castigar os prevaricadores.
O que podia ser considerado um bom casamento e um mau casamento?
AMR: Na época, um bom casamento era aquele que gera muitos filhos e afasta por completo o espectro do fim da dinastia.
E em termos políticos?
AMR: Um bom casamento era aquele que trazia paz, estabilidade, boas relações políticas e económicas, mas obviamente que um certo entendimento entre os cônjuges também ajudava. Permitia que houvesse estabilidade dentro do próprio reino.
A estabilidade doméstica, é isso?
ALF: A estabilidade doméstica também era importante. A escolha da segunda mulher de D. Pedro II [Maria Sofia Isabel de Neuburgo] teve critérios interessantes. Por um lado, foram escolher uma princesa da Baviera, que não hostilizava nem a Áustria nem Luís XIV — foi uma posição de equilíbrio político. Por outro lado, os pais dela tinham gerado 23 filhos, 17 dos quais tinham chegado à idade adulta. Ainda por cima, uma casou com Carlos II de Espanha, outra era mulher de Leopoldo da Áustria, portanto através de um casamento com uma princesa daquela casa, tornava-se cunhado do Imperador, cunhado do rei de Espanha. E ela prometia dar muitos filhos (e deu).
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“Mas, primeiro, D. Pedro II enviou o desembargador António de Freitas Branco a ver e trazer retratos da princesa. Era loira, de corpo alto e delgado, pele branca e olhos verdes. O casamento por procuração realizou-se em Heidelberg, em 2 de julho de 1687”
“Tu felix Austria nubes”, Ana Leal de Faria, “Casamentos da Família Real Portuguesa”, Vol. I
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ALF: A vizinhança também era importante nestas ligações.
Como assim?
ALF: Convinha estar em paz com os vizinhos. Mas há outra coisa de que não falámos: com a reforma, as princesas católicas viam as suas opções matrimoniais muito diminuídas, porque só podiam casar com católicos. O caso da D. Catarina de Bragança é uma exceção — casou com um protestante —, o que também mostra que sempre que a razão de Estado os impõe, os critérios religiosos são mais plásticos. De qualquer forma, Francisco Manuel de Melo foi numa missão secreta a Roma falar com o papa Alexandre VII para justificar o casamento com um herege como um sacrifício da princesa em defesa dos católicos oprimidos em Inglaterra.
Houve casamentos por amor?
AMR: Não fazemos a mais pequena ideia. Podemos chegar à conclusão, à posteriori, que até parece que eles se davam bem. Acho que na Idade Média, o amor nem sequer era propriamente um critério. Eles estavam disciplinados para que houvesse um determinado relacionamento.
MSS: E não eram só os reis, era toda a sociedade. De facto, nós passamos a ideia de que o casamento era uma coisa institucionalizada, mas o casamento enquanto instituição foi criado para as classes possidentes, que tinham interesses a defender com uma aliança entre duas famílias. Quem não tinha nada a perder, quem não tinha bens, podia juntar-se e separar-se à sua maneira. Eu estou convencida de que todos aqueles que utilizavam o casamento como uma forma de unir famílias, ou de aumentar o poder, estavam sujeitos às mesmas regras, não eram apenas os casamentos reais.
O Papa interferiu em alguns casamentos?
ALF: Há que pensar uma coisa: o Papa é também um chefe político. Ele é chefe dos Estados da Santa Sé, não é só o supremo chefe religioso da cristandade. Depois, a partir da reforma, o Papa perdeu algum poder, mas continuava a interferir.
MSS: Nos séculos XII e XIII interferiu em muitos casamentos já em curso. Houve vários casamentos de princesas portuguesas com reis castelhanos que foram desfeitos quando eles já tinham descendentes. Os casamentos foram anulados, porque o Papa não dispensou e elas foram obrigadas a voltar a Portugal. O que significa que muitos casamentos eram feitos antes da dispensa do Papa ter sido aprovada.
Como por exemplo?
MSS: O casamento de D. João I e D. Filipa de Lencastre. Estavam os embaixadores em Roma — estamos na altura do Grande Cisma, em que havia um Papa em Roma e um Papa em Avignon — e por alguma razão, que ainda não se entendeu completamente, não conseguiam provar que estavam a favor de um casamento de Inglaterra, que deveria agradar ao Papa de Roma. Estiveram lá quatro anos, sem conseguir que fosse passada uma bula, dispensando D. João I dos seus votos de castidade e de celibato por ele ter sido antes Mestre da Ordem Militar de Avis. Desde 1385, quando ele tomou posse nas cortes, até 1391, quando chegou a primeira bula, nem podia estar casado oficialmente, embora se tenha casado em 1387. Além do mais, os embaixadores de 1391 obrigaram o Papa da altura a escrever uma segunda bula, dizendo que apesar de só ter passado a bula naquela altura, o Papa que estava em vigência em 1387 tinha anuído oralmente, e portanto tanto o casamento como a posição do rei eram válidos.
Como olham para os romances históricos? Acham que as pessoas podem ficar com ideias erradas da história?
MSS: Acho que não é mau as pessoas interessarem-se pelo passado, agora a lógica dos romances históricos é muito diferente da feitura da história. A história é feita com os dados, com os vestígios do passado e esses vestígios não cobrem todo o passado. Há muitas lacunas, há muitas coisas que ficam por saber e as pessoas, hoje em dia, lidam pouco com o desconhecido, não estão habituadas a não saber. As pessoas precisam de ter essas lacunas cobertas, nem que seja por invenções ou por factos alternativos. Os romances têm esses aspetos: tudo é explicado, mas essa explicação está a induzi-las em erro. Nem tudo pode ser explicado e há lacunas que devem ser respeitadas.
ALF: É muito importante saber distinguir factos de opiniões e, hoje em dia, transforma-se a opinião em facto. Não tenho nada contra os romances históricos, Alexandre Herculano escreveu grandes romances históricos. Agora, não é um romance histórico com figuras reais, com um peso histórico, que são deturpadas. Quem quiser escrever romances históricos — já tive essa tentação — invente de modo a não confundir. Pode haver uma maneira de fazer chegar uma história séria ao grande público através de temas que interessam às pessoas, como é o caso dos casamentos. E a culpa é nossa, da Academia, de nos fecharmos demais. As pessoas estão interessadas e cabe a nós fazer alguma coisa por isso. Sempre achei que as universidades têm uma missão cívica portanto, se estamos aqui [Faculdade de Letras], é para servir o país e acho fundamental essa abertura à sociedade civil.