Pouco mais de um ano depois de ter aprovado o primeiro Orçamento do Estado de António Costa e Mário Centeno, a esquerda sente que o Governo abusou de um instrumento de gestão das contas públicas para atingir um valor histórico do défice orçamental. É que as cativações, agora tão contestadas, foram aprovadas por estes mesmos partidos no Parlamento, sem o Governo dizer previamente quanto representavam. PSD e CDS chumbaram, na altura, a norma do Orçamento relativa às cativações, mas PCP, BE e Verdes assinaram de cruz. Agora que foram revelados os números, Bloco e PCP pedem explicações ao Governo e o caso promete ter consequências em futuras negociações.

Esta quarta-feira foi conhecido pela primeira vez o valor final das cativações em 2016, o primeiro ano pelo qual responde o Governo socialista. Como o Observador noticiou, a partir da Conta Geral do Estado publicada na segunda-feira, as cativações de 2016 atingiram um valor recorde de 942,7 milhões de euros e os partidos da esquerda pedem explicações. O PCP diz que já esperava um valor elevado, mas admite que ficou acima das piores previsões. E este é um tema caro ao PCP que, nos últimos anos (e nos deste Governo sem exceção), tem alertado para os constrangimentos que as cativações provocam no funcionamento dos serviços públicos.

Défice histórico conseguido com 942,7 milhões de euros em cativações

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Ao Observador, o deputado comunista Paulo Sá diz nada ter contra o uso das cativações, mas também diz que nos últimos tempos o PCP tem recebido “muitos exemplos de organismos a queixarem-se da falta de disponibilidade orçamental”. “As cativações sempre existiram e têm um objetivo de gestão rigorosa que não é corrigir o défice”, acrescenta o deputado que avisa: “Iremos analisar em detalhe a Conta Geral do Estado e onde foram feitas as cativações”. Mais, o PCP quer ter mais informação sobre este instrumento a que o Governo recorreu como nenhum outro, pelo menos, desde 2004. “Obviamente que gostaríamos de ter um retrato completo do impacto que as cativações têm no funcionamento dos serviços”.

A reação do Bloco de Esquerda é ainda mais assertiva, com Mariana Mortágua a apresentar, esta quarta-feira, um requerimento para que as Finanças expliquem onde foi cativada verba e que detalhem quanto é que o Governo previu congelar, não apenas em 2016, mas também este ano, em 2017. Até porque, tal como no primeiro Orçamento, a esquerda aprovou a proposta do Governo para 2017 sem que nela tivesse inscrita uma verba para cativações. Com isto, o Bloco quer evitar novas surpresas.

O super-poder de Mário Centeno

Certo é que o Bloco de Esquerda ficou desconfortável com o “poder discricionário” que o ministro das Finanças acaba por ter, uma vez aprovado o Orçamento no Parlamento, com os limites de despesa previstos para cada ministério. Uma espécie de super-poder de um super-ministro. “Os deputados estão a aprovar um Orçamento para um determinado ministério e depois o ministro das Finanças tem poder discricionário para alterar a verba que de facto é atribuída a esse ministério. Isto passa-se à margem do poder de escrutínio da Assembleia da República”, disse Mariana Mortágua quando apresentou o requerimento a exigir mais informações ao Governo.

Para o Bloco de Esquerda há aqui um dado novo que agrava o quadro: é que “o ano em que houve recorde de cativações é o mesmo ano em que o défice ficou abaixo da meta em 1.600 milhões”. A estratégia do atual Governo, que passa por “cativar para depois, se necessário, descativar” é diferente da estratégia seguida, por exemplo, pelo Governo anterior que, segundo a deputada bloquista, “suborçamentava e depois retificava”. Mas não é necessariamente melhor. “A forma que o Governo encontrou para gerir o défice e alcançar os objetivos orçamentais foi dar ao Ministério das Finanças o poder discricionário de gerir as cativações”, diz, criticando igualmente esta “fórmula” que pode “pôr em causa o funcionamento dos serviços públicos“.

“O Governo pode dizer que não há cativações na Saúde e na Educação, mas na verdade não sabemos. Será que não há cativações no material, no papel, nos serviços correntes destas áreas?”, questiona a deputada bloquista, criticando o facto de as cativações não estarem discriminadas, “não serem claras”. Paulo Sá, do PCP, também diz não concordar que as cativações possam ser utilizadas como um instrumento adicional para cumprir imposições da União Europeia, nem para impedir os organismos do Estado de contraírem despesa normal para o seu funcionamento”.

E os dois partidos acabam por não se afastar das críticas da direita — isolando o Governo e o PS — quanto às implicações que estas cativações de 2016 possam ter tido nas despesas da Defesa e da Administração Interna, duas áreas setoriais onde o Governo está em plena gestão de crises. Na audição de Mário Centeno no Parlamento, esta quarta-feira, o ministro foi questionado, da esquerda à direita, sobre as implicações do congelamento de despesa nestes dois ministérios. O Ministro negou sempre e até deu exemplos: o “Orçamento da Autoridade Nacional de Proteção Civil aumentou em 2016” e, “ao contrário dos anos anteriores, a Lei de Programação Militar não teve cativações”.

O facto de os dois partidos que apoiam o Governo terem embarcado nestas críticas ao Governo foi mal visto no PS. João Galamba disse que “o PCP e o BE também têm estado mal”, ao ligar as cativações ao que aconteceu em Pedrógão Grande e base militar de Tancos. No comentário na SIC-Notícias, o porta-voz do PS disse que a investigação ainda está em curso e é preciso esperar.

https://observador.pt/2017/07/05/psd-para-satisfazerem-algumas-clientelas-poem-em-risco-o-proprio-estado/

A verdade é que as explicações de Mário Centeno estão longe de convencer a esquerda, e não só, no que diz respeito àquelas áreas concretas. Mas foram os partidos parceiros do Governo socialista no Parlamento que validaram as cativações agora levadas a cabo, garantido a aprovação dos Orçamentos do Estado de Centeno, mesmo sem conhecerem a previsão de cativações. As cativações são legais, mas ambos os partidos concordam que foram excessivas.

O que são as cativações?

Quando o Governo apresenta a sua proposta de Orçamento do Estado ao Parlamento, o que está a fazer é a pedir autorização para gastar: onde vai gastar, quanto vai gastar. As cativações não são mais do que uma parte de todos os orçamentos que fica congelada desde o início do ano. Ou seja, os serviços — como os institutos públicos e os Ministérios — não podem gastar este dinheiro a menos que recebam autorização do ministro das Finanças, depois de fazerem um pedido forma, que tem de incluir uma justificação para que esta verba seja descongelada.

Por exemplo, há serviços que, para poderem contratar pessoal, comprarem folhas para as fotocopiadoras ou comprarem gasolina para os carros dos serviços, têm de pedir, a partir de certa altura no ano, uma autorização por escrito ao ministro das Finanças. O mesmo se aplica a aumentos salariais de trabalhadores que são convidados a assumir funções de chefia.

O Governo argumenta que as cativações não são cortes. E tem razão. As cativações são apenas as verbas que estão congeladas desde o início do ano. Mas esta discussão passa a ser uma discussão de semântica assim que o ano acaba, pois tudo o que foram cativações que não foram descongeladas, são tão cortes como todos os outros. O Parlamento deu autorizações ao Governo para gastar uma determinada verba. Essa verba não foi totalmente gasta por decisão do Governo.

As cativações são mais apelativas para um ministro das Finanças, e um governo em geral, por várias razões:

  • Por questões de flexibilidade da gestão orçamental: o ministro pode ir ajustando de um lado e cortando do outro, consoante as necessidades do orçamento ou do orçamento em geral.
  • Se fossem aplicados cortes logo no Orçamento, o governo podia ser obrigado a pedir um retificativo – um processo moroso e politicamente desgastante – para poder gastar mais do que o aprovado na lei.
  • Por uma questão política: assumir um corte em áreas sensíveis pode fazer com que seja mais difícil convencer os partidos que apoiam o governo a aprovar o Orçamento, nem que seja sem exigir mais contrapartidas para a aprovação.

Porque as cativações se tornaram uma questão?

Todos os governos usam cativações. É um instrumento normal da gestão orçamental, tem estado sempre na lei dos orçamentos e em 2016 não foi diferente, tal como estão no Orçamento deste ano. A grande questão, face ao que foi feito em 2016, é quanto do valor congelado se tornou num corte permanente.

Nunca, pelo menos desde que há registo sem interrupção na Conta Geral do Estado, um Governo cortou tanto usando as cativações feitas no início do ano. Em 2016, foram 942,7 milhões de euros que o ministro das Finanças não descongelou, seja porque entendeu não descongelar ou porque os serviços não pedem o descongelamento dessa verba. Trata-se do valor mais alto desde pelo menos 2004, o dobro dos 445 milhões de euros prometidos à Comissão Europeia.

O ano em que houve um valor de cativos transformados em cortes mais parecido com o que aconteceu no ano passado foi em 2010, primeiro ano em que o Governo Sócrates começou a apertar o cinto devido ao início da crise financeira. O anterior governo, liderado por PSD e CDS-PP, também usou as cativações de forma significativa, mas longe do que foi feito por este Governo: 566,3 milhões de euros em 2014; 521,5 milhões de euros em 2015.

E o Parlamento, não sabia?

Todas as cativações são aprovadas no início do ano no Orçamento do Estado enviado pelo Governo ao Parlamento. Todos os artigos dizem onde se vai cortar e em que proporção. Todos os artigos do Orçamento são votados e aprovados (ou rejeitados) pelos partidos com assento na Comissão de Orçamento, Finanças e Modernização Administrativa.

2016 não foi exceção. Os partidos votaram o artigo da proposta de lei. PSD e CDS-PP votaram contra, por ser um orçamento deste Governo; Bloco de Esquerda, PCP e o PS votaram a favor.

Então porquê tanta celeuma à esquerda? A questão aqui é de transparência.

O que é que na lei são cativações: a reserva orçamental (parte dos orçamentos de cada Ministério) que não pode ser usada sem autorização do ministro, tal como 12,5 % das despesas afetas a projetos não co-financiados, 15% das dotações iniciais das verbas para aquisição de bens e serviços do Estado, 25% das verbas para papel deslocações e estadas, estudos, pareceres, projetos e consultadoria e outros trabalhos especializados. Isto é o que consta, por exemplo, no Orçamento para 2017.

O que não diz, e os partidos não exigiram que dissesse antes de o aprovar, é:

  1. Quanto é o valor de cativações total à disposição do ministro das Finanças?
  2. Quais são as áreas em que são aplicados os cortes?
  3. Quais são os serviços que são afetados e de que forma?

Ou seja, os cortes são na Defesa? Na Administração Interna? Nos Transportes? Nada no Orçamento dizia isso. Desde cedo, ainda durante o correr do ano, o Governo foi questionado sobre onde seriam feitos estes cortes. Mário Centeno e João Leão, secretário de Estado do Orçamento, responderam sempre a uma outra pergunta: ao que não foi cortado. Saúde e Educação, repetiram sempre, não sofriam cativações. Por lei, o Serviço Nacional de Saúde e o Ensino Superior não podem ser alvos de cativações.

O Parlamento acabou por aprovar, como tem feito sempre, as cativações sem grande discussão, sem saber o poder total que estavam a dar ao ministro das Finanças, outra das questões que se colocou em relação a 2016: o Parlamento deixou 1733 milhões de euros congelados desde o início do ano, dependentes de uma autorização do ministro das Finanças para serem usados.

Nunca antes tinha sido aprovado um valor tão alto de congelamentos ao início do ano. O mais perto que esteve disso foi, mais uma vez, 2010, ano em que o Governo pediu, e obteve, autorização para deixar congelados 1377,3 milhões de euros. No final do ano, 822,9 milhões de euros não foram descativados, tornando-se cortes permanentes.