O teste começa agora, na pré-campanha, e não acalma já depois de eleitos no Parlamento. Há uma série de armadilhas para as quais convém estar preparado, especialmente quando se é um político dito independente, pouco ou nada habituado à lógica do “aparelho”, isto é, da chamada máquina partidária. Nas listas de candidatos a deputados já apresentadas pelos partidos para as legislativas de outubro contam-se vários. Estarão preparados para jogar o duro jogo da política partidária?
O canadiano Michael Ignatieff, académico, historiador e político no ativo por breves anos, identificou em “Fogo e cinzas – êxito e fracasso em política” (livro não editado em português) alguns desses perigos da selva política. Mas os políticos portugueses que o digam. E dizem mesmo. Quer ver?
A existência de uma “bolha da política” é uma das primeiras constatações de quem aterra no Parlamento, sobretudo se vier de meios onde a lógica político-partidária pouco ou nada impera. Há quem lhe chame “rotinas” da política, outros chamam de “cultura” parlamentar. Raramente a conotação é positiva. “São os almoços, jantares, telefonemas, conversas de corredor, modos de interação onde se decide e se influencia muito a opinião dos pares”. É assim que o ex-deputado Miguel Vale de Almeida se refere à “bolha” e são estes os sinais que destaca desse microcosmos que é o jogo político-partidário.
Miguel Vale de Almeida, antropólogo, académico e ativista, foi convidado pelo PS para integrar as listas de candidatos a deputados em 2009 e esteve no Parlamento de outubro desse ano a dezembro do ano seguinte. Não aguentou muito mais. “Nunca fui bom nisso [nos almoços, jantares e conversas de corredor], talvez por vir de uma cultura académica onde impera a afirmação clara do que se pensa e se espera um debate mais liso e racional nas questões de conteúdo”, diz ao Observador, num exercício de memória daquele período em que quase se sentiu um estranho na casa da democracia.
“Num partido há vários interesses e visões, e em questões que sejam vistas como polémicas ou delicadas, tem mais força quem estiver dentro do aparelho, quem aconselha mais os dirigentes e quem em última instância decide, do que uma pessoa independente”, sublinha.
Mas as regras do jogo político não se medem só nos meandros do poder e nos bastidores das negociações estratégicas, que ultrapassam muitas vezes os limites das crenças e das ideologias. Medem-se também nas “regras” puras e duras do funcionamento dos organismos. Que o digam os jornalistas (ou ex-jornalistas) Vicente Jorge Silva e Manuela Moura Guedes, já que ambos passaram pela experiência de se sentarem no lado de lá da bancada de imprensa e ambos viram de perto como funcionam os corredores dos partidos e os regimentos parlamentares. “Era castrador”, resume ao Observador Manuela Moura Guedes, que foi eleita em 1995 pelas listas do CDS-PP, a convite de Paulo Portas, tendo-se mantido cerca de um ano na bancada parlamentar centrista.
“Tem de se falar na ordem certa, no tempo certo, o regimento é muito castrador da liberdade dos deputados”, diz a apresentadora.
Estranha sobretudo quem está habituado a outro tipo de regime comunicativo, como é o da comunicação social. Também Vicente Jorge Silva, jornalista fundador do jornal Público que foi convidado pelo PS para se candidatar à Assembleia da República, se lembra imediatamente das regras. As regras, essas regras tão diferentes daquelas a que estava habituado. Isso e as “manhas”, os “artifícios” que tinham obrigatoriamente de ser usados como recurso à “enorme rigidez do funcionamento do plenário”. “Perdia-se muito tempo com ninharias, há uma grande rigidez do ponto de vista do funcionamento da máquina que quebra a espontaneidade do debate e favorece os golpes retóricos”, lembra. Quem dá a maior machadada sai como vencedor, e quem esgota o tempo para falar em plenário depois de ser alvo de uma dessas machadadas, sai como derrotado. Parece simples, mas é preciso saber dominar as regras do jogo.
Vicente Jorge Silva aguentou cerca de dois anos, entre 2002 e 2005, na oposição a Durão Barroso e depois a Santana Lopes, mas sairia com a dissolução da Assembleia e a queda do Governo. Se tal não acontecesse, contudo, sairia na mesma – já tinha dado essa indicação ao líder parlamentar (António Costa, na altura). As regras daquele jogo não eram para ele.
Acontece que, a bem da verdade, “não há regras neste jogo”. O jogo da política, leia-se. Manuela Moura Guedes solta um riso nervoso quando o diz, como que recordando alguns episódios que talvez não fosse boa ideia contar. “Em política, não se aplica o princípio de o que parece é e o que não parece não é. Mesmo o que parece que é de uma determinada maneira, a maior parte das vezes é de maneira diferente”. Que é como quem diz, tudo se resolve longe da vista. “A estratégia tática, a politiquice, o lado da política que não é o da gestão da coisa pública, eu isso não tinha, e isso havia por toda a parte”, diz.
Era pois essa estratégia política, que por vezes falava mais alto do que as convicções ideológicas, que fazia com que, quando estava isolada na representação dos centristas na comissão dos Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, Manuela Moura Guedes votasse várias vezes ao lado do partido no Governo (o PSD, com quem tinha maior proximidade ideológica), mas quando estava acompanhada do líder parlamentar votasse ao lado do PS, “apenas porque, tal como o CDS, era a oposição”, explica.
Maria Elisa Domingues é um dos casos mais emblemáticos de alguém que, sem a escola político-partidária, quase foi ao engano para aquilo que viria a ser a sua luta no Parlamento.
“O dr. José Manuel Durão Barroso achava que era importante levar civis para a política e por isso fui logo como cabeça de lista (por Castelo Branco) na campanha eleitoral”, começou por explicar em entrevista ao Observador a jornalista que foi deputada pelo PSD entre 2002 e 2005. Acontece que “havia algumas pessoas que estavam há dezenas de anos à espera disso (de um lugar nas listas) e eu tirei-lhes a vez. Não pensei nisso antes. Pensava que era mulher e que, por isso, tinha de aceitar, porque é importante que haja mais mulheres em lugares de responsabilidade”.
No geral, e olhando para aquilo que foram três anos diferentes na sua vida, o saldo é negativo, e Maria Elisa não o esconde. “A minha vida no Parlamento foi basicamente um inferno — não há ninguém que odeie mais os independentes do que os grupos parlamentares a que eles pertencem. Mal fui eleita, o PS começou uma enorme campanha dentro da comissão de Ética a meu respeito por continuar a fazer televisão, na vertente cultural. A grande incompatibilidade da Assembleia, durante uns largos meses, fui eu. Fui o bode expiatório daquela casa durante meses com a minha fotografia todos os dias nos jornais, na primeira página. Isto até eu desistir. E eu desisti, porque não é possível resistir àquilo”, relatou ao Observador.
Fernando Nobre, médico, presidente da AMI, ex-candidato à Presidência da República e ainda deputado por 10 dias, é um caso diferente, mas muito representativo da ala dos ‘independentes’. Foi convidado pelo presidente do PSD, Pedro Passos Coelho, para integrar as listas de candidatos a deputados (foi cabeça de lista por Lisboa), com a promessa de que seria depois indicado para presidente da Assembleia da República. Depois de uma campanha legislativa “dura” em que nadou em águas que por si eram desconhecidas, foi eleito para a Assembleia da República. Chegado lá, diz ter sido “ostracizado e rejeitado” pela falta de vínculo partidário. Nadou para fora de pé.
“Um independente é visto com suspeição por não se vergar à lógica político-partidária”, diz ao Observador, lembrando como a sua indicação para a presidência do Parlamento acabaria por ser chumbada, levando à sua batida em retirada.
A Vicente Jorge Silva, o que mais o fazia sentir-se um peixe fora da água – ou “um ator que não pertencia àquele filme” – era a obrigatoriedade e a necessidade de “ser parcial”. “Sempre soube enquanto jornalista que a objetividade era difícil de atingir, mas sempre procurei ir o seu encontro, mas ali era totalmente diferente. Havia uma obrigação de se ser parcial, de se ser partidário, e isso fazia com que não me sentisse bem na minha pele”, afirma.
Miguel Vale de Almeida arrisca mesmo um conselho: “Não tentar imitar os procedimentos de uma cultura partidária. Mas sim levar para o Parlamento os conhecimentos e a ‘cultura’ das suas profissões. Às vezes basta dizer as coisas de outro modo, com outro tom, e trazendo certos conhecimentos, para produzir efeitos positivos nos outros, que assim são ‘abanados’ nas suas rotinas”, sugere.
“Ao fim de um ano parecia que tinha sido trocado por um duplo, uma personagem nova e estranha que apenas reconhecia quando me olhava ao espelho. Nunca me tinha vestido tão bem na vida mas ao mesmo tempo nunca me tinha sentido tão vazio”. Michael Ignatieff
Manuel Moura Guedes lembra-se bem do “cinzentismo” que sentiu quando aterrou no Parlamento a convite do líder do CDS. “Eram todos iguais, vestiam-se todos de igual – e eu tentei ser igual a eles (a elas, neste caso)”, lembra-se, admitindo que esse foi um dos seus erros de principiante. “Tentei ser como o rebanho, não só na maneira de vestir como também naquilo que dizia, tinha medo de dizer tudo o que pensava apesar do meu compromisso de ser independente”, recorda ao Observador.
Mas depois esqueceu as saias e os fatos e deu lugar às calças de ganga. “Acho que fui a primeira mulher a ir de jeans para a Assembleia – o [Paulo] Portas até brincou comigo a dizer que o Almeida Santos [na altura presidente da Assembleia da República] me ia expulsar”, recorda-se, esclarecendo logo de seguida que não seria pelas calças de ganga que seria expulsa do Parlamento.
A verdade é que o dress code está implícito, sobretudo para as mulheres (já que nos homens quase só muda a gravata ou falta dela). Ana Drago, na altura uma jovem deputada do Bloco de Esquerda e atual candidata a deputada pelo Livre/Tempo de Avançar, afirmou em 2008 ao Correio da Manhã que era normal alinhar num dado código de vestuário – para “não criar um debate em torno de coisas que não queria”, explicou. Também Teresa Caeiro, ainda deputada centrista, realçava que só relaxava no vestuário aos fins de semana. Aí sim, era corrida a “calças de ganga e sapatos rasos”. Ossos do ofício.
“Mostrei-me totalmente indignado pela má-fé dos meus adversários. Mas tive de aprender que a boa ou a má-fé não contam para nada. Na arena da política vale tudo, e o que conta não é a boa vontade, as boas intenções ou a boa-fé. O que conta é ganhar.” Michael Ignatieff
Vicente Jorge Silva recorda-se bem de um episódio passado na sala da comissão dos Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, que o marcou por ser revelador de que a boa-fé vale pouco no duelo da política. “Estávamos a tratar de um assunto muito específico, não me recordo qual, mas lembro-me que o Nuno Melo (CDS) entrou com um discurso absurdo contra o [Francisco] Louçã (BE), que nada tinha a ver com aquilo que estávamos a resolver. Na altura achei inacreditável, totalmente gratuito. E eu é que me insurgi, não foi o Louçã. Claro que depois também levei, ouvi logo que eu é que não tinha categoria para estar ali dentro”, conta.
O ex-diretor do Público recorda-se ainda das intervenções em plenário contra o Governo onde às vezes tinham de ser outros deputados ou o líder parlamentar, na altura António Costa, a gritar as palavras mais feias ou mais agressivas para a bancada do Governo porque Vicente Jorge Silva não o fazia. “Naquela altura também se faziam mais à partes das bancadas”, lembra-se.
Nos debates em plenário, é frequente a discussão subir de tom e, muitas vezes, tem que ser o presidente da Assembleia da República a pedir calma aos deputados.
“Cada palavra pronunciada converte-se numa oportunidade para os adversários contra-atacarem. É inevitável que isso seja visto como ataque pessoal, mas não é. Esse é o primeiro erro de um político inexperiente: nada é pessoal, é tudo negócios”. Michael Ignatieff
As incompatibilidades dos deputados, nomeadamente dos tais que não vinham de dentro da máquina partidária, foi durante muito tempo uma das questões quentes abordadas no Parlamento. Além de Maria Elisa e das suas ligações à televisão quando exercia o mandato de deputada, o exemplo de Manuela Moura Guedes foi dos mais emblemáticos.
Ao Observador, a apresentadora e jornalista lembra-se bem. “Fui à tomada de posse, entrei no Parlamento, mas passado pouco tempo tive de sair porque colegas de outras bancadas me apontaram o dedo, dizendo que havia uma incompatibilidade porque o meu marido tinha uma produtora com a RTP”, diz, atirando logo que o argumento era “profundamente enviesado”. A verdade é que esteve fora do Parlamento durante dois meses e que o casal teve de vender as ações que detinha na empresa que produzia programas para a RTP.
“Os jornalistas não são árbitros. Aparecem quando há guerra e querem ver um bom combate”. Michael Ignatieff
Vicente Jorge Silva tem uma história (entre muitas) para contar. “No primeiro dia, na tomada de posse lembro-me bem da minha intervenção. Demorei mais tempo do que devia a falar. Estava a sentir-me constrangido. Quis dizer ao Durão Barroso que ele estava ali a fazer uma intervenção de total show off mas levei muito tempo a organizar o meu discurso e não teve o impacto que devia. Veio logo nos jornais a dizer que a minha prestação tinha sido má, citando fontes anónimas e sem me confrontarem sequer com aquilo nem ouvirem a minha versão”.
A ex-deputada do CDS, Manuela Moura Guedes, por ser ex-jornalista tem outra versão. Considera que foi alvo de “boicote por parte da imprensa”. “Os colegas aceitam muito mais facilmente a ida de um jornalista para um gabinete de um ministro e o seu regresso (em que a população não sabe tão claramente que lá estiveram), do que a ida para o Parlamento, onde o jornalista assume claramente e dá a carga pelo cargo público”, considera.
“Mesmo que uma pessoa tenha exercido toda a sua vida atividades de jornalista, escritor ou professor, nada a prepara para o uso do discurso assim que se entra na arena política. Podia-se pensar até que se era um bom comunicador, mas tudo muda quando se sobe àquele estrado ou púlpito pela primeira vez. Bem-vindos ao mundo do literal, onde o que conta é apenas e só as palavras que foram ditas – e não aquilo que se quis dizer”. Michael Ignatieff
Manuela Moura Guedes reconhece-se na perfeição no testemunho do politólogo canadiano. Ainda hoje se recorda da sua primeira intervenção em plenário. Apesar da sua experiência em comunicação e do seu à vontade com as câmaras – “nunca tinha estado tão nervosa como ali”.
Porquê? “Talvez por causa da mudança de estatuto. Na minha cabeça eu tinha uma necessidade de que me vissem de outra forma, tinha de me impor de outra forma, e esse peso que punha em cima de mim mesma foi uma grande pressão no início”, explica.
Certo é que tinha “medo de dizer alguma coisa demasiado fora da linha, ou que fosse entendida como sendo contra a corrente do meu grupo parlamentar”. Por isso pensava inúmeras vezes a antes de falar. Como se, a partir do momento em que chegara ao Parlamento tivesse de usar um filtro entre o cérebro e as cordas vocais. “Sabemos que tudo o que dizemos pode ser usado pelos outros, ali sabes que estás à lupa. Politicamente usam-se todas as armas e se alguém cai na asneira de dizer alguma coisa que não é bem assim, já foi”. É uma parte do jogo, atacar o adversário através das suas fragilidades.
A experiência de Miguel Vale de Almeida confere. “Sim, é preciso medir o que se diz, porque nunca se está a falar apenas em nome próprio. Há mais margem de manobra para um independente, mas há, apesar de tudo, um programa e um partido em que os eleitores votaram – para não falar das táticas e estratégias políticas a que os acontecimentos vão obrigando”.
Fernando Nobre tem a mesma opinião. “Uma pessoa está habituada a falar das coisas livremente, sem ser calculista, mas ali não, tem de se pensar em cada palavra que se diz. Esse é o jogo puro e duro da política partidária – as máquinas estão montadas para derrotar o adversário e não tanto para defender ideias e propostas”.
“Cada profissão tem a sua linguagem, a linguagem político-partidária é muito diferente da linguagem de um médico como eu, habituado a causas sociais. Nesse campeonato, eu não tinha nem queria ter nada a ver com isso”, reconhece.
Ainda antes de ser eleito, Fernando Nobre viu no jornal uma notícia sobre quanto tinha ganho no ano anterior – a declaração de rendimentos era tema de capa. “Fui completamente escrutinado. A minha vida foi passada a pente fino. O Correio da Manhã a 29 de abril escarrapachou na capa os rendimentos que eu auferia, mas eu como tenho direitos de autor só faço o IRS em maio, ou seja, alguém disse aos jornalistas os valores dos meus rendimentos…”, queixou-se.
A vida pessoal de um político passa, em alguns campos, a pública. Há quem não conviva bem com isso e quem o aplauda. “O escrutínio aumentou e assim deve ser. Ser deputado é um cargo público, o poder que dá acarreta responsabilidade acrescida”, reconhece Vale de Almeida.
E agora? Vamos a isto?
(Ilustração: Milton Cappelletti)