A polémica do Facebook e dos desempregados já lá vai. Hoje, Isabel é tão fã das redes sociais que o slogan do Banco Alimentar Contra a Fome mudou de “Alimente esta ideia” para “Partilhar sabe bem”. A instituição celebra 25 anos e Isabel Jonet já conta 23 à frente da instituição. “Eu sou voluntária. Não sou mais nem menos que os outros”, sublinha.
A também presidente da Federação Europeia dos Bancos Alimentares defende a rede com unhas e dentes. Confessa que hoje fazer voluntariado é apetecível para o currículo, fala sobre as novas famílias pobres e explica porque é que os mais velhos têm mais dificuldade em pedir ajuda. Na véspera da 49ª campanha, a realizar este sábado e domingo, Isabel Jonet sublinha: “Distribuir alimentos não é dar restos de comida”.
São 25 anos de Banco Alimentar. Qual é o perfil da pessoa que hoje pede ajuda ao Banco Alimentar Contra a Fome?
Em Portugal podemos apontar dois tipos de pobreza: a pobreza estrutural e a pobreza conjuntural. A pobreza estrutural está mais ligada à idade: os mais idosos que têm baixíssimas pensões de reforma, os deficientes sem recursos ou os sem-abrigo. Sempre houve em Portugal famílias pobres, mas nos últimos anos surgiu um novo perfil de beneficiários do Banco Alimentar. São pessoas que nunca pensaram que fossem ficar numa situação de pobreza. E estão nessa situação por dois grandes motivos: primeiro, pelo desemprego; segundo, pelo sobre-endividamento. Ou por um divórcio, por exemplo. E essas pessoas pedem apoio às instituições de solidariedade social.
E depois como é que recebem o apoio do Banco Alimentar?
Bom, os bancos alimentares não entregam nada diretamente às pessoas carenciadas. Isso não seria bom. Se nós nos limitássemos a entregar comida, não estávamos a ajudar à autonomização das famílias. Hoje há 21 bancos alimentares em todo o território nacional e cada um celebra protocolos de parceria com instituições da sua zona de residência. Os bancos alimentares entregam os produtos às instituições e são as instituições que os entregam às famílias. Quando procuram ajuda diretamente ao Banco Alimentar nós não damos, mas encaminhamos para a instituição da sua zona de residência. E as instituições, quando levam o pão, levam esperança, levam afeto, levam educação, levam conhecimento. E a certeza de que estas pessoas pobres não estão sozinhas. Estes alimentos servem para lhes ajudar a mudar a vida.
É um bocadinho como o provérbio? Não dar (só) o peixe mas ensinar a pescar?
O peixe dá forças para que estas famílias possam aprender a pegar na cana. Quem as ensina a pegar na cana são as instituições. Ao entregar alimentos às instituições, o Banco Alimentar faz com que as instituições tenham mais capacidade de ajudar porque têm mais comida, logo, poupam recursos. E podem apoiar pessoas que necessitam de comida, pessoas às quais não podiam chegar porque não tinham capacidade. Este trabalho do Banco Alimentar com as instituições é uma das maiores redes de parceria e de solidariedade que há em Portugal. É uma rede de confiança. Nós angariamos alimentos e as instituições distribuem-nos às famílias que conhecem muito bem. Conhecem cada uma de perto, conhecem as suas necessidades. Quando uma mãe vai com os filhos pedir ajuda, a instituição sabe se ela vacinou o filho, se ela põe o filho na creche ou na escola. Ao dar-lhe o alimento, podem ensiná-la a ganhar competências para fazer outras coisas.
Por exemplo?
As mulheres podem ensinar a cuidar da própria casa. Quando distribuem alimentos a idosos, ajudam a cuidar da higiene pessoal do idoso. E o mais importante é que esse idoso não está sozinho. Uma das razões para os aumentos de pedidos de ajuda é porque as instituições confiam muito nos bancos alimentares.
21 Bancos Alimentares
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Há 21 bancos alimentares espalhados pelo país.
Distribuem 120 toneladas de comida por dia a 2600 instituições.
Essas instituições apoiam 430 mil pessoas.
As pessoas hoje ajudam mais ou menos?
Há mais pessoas a ajudar. E ajudam com tudo o que podem. Nos 3 últimos anos as pessoas não podiam ajudar tanto, mas não queriam deixar de ajudar. Uma campanha do Banco Alimentar envolve um milhão de sacos. Pelos 21 bancos alimentares, é à volta de 2600 toneladas de comida. Foi o que conseguimos na última campanha. As campanhas são muito importantes porque nós recolhemos produtos básicos como o leite, o arroz, o óleo, o azeite, os enlatados, cereais de pequeno-almoço, açúcar, etc. Mas também são a maior ação de voluntariado organizado que há em Portugal. São 42 mil pessoas que vestem a mesma camisola, que sabem que estão ali para que outros comam.
A Isabel é voluntária desde 1993. Ter voluntariado no currículo é hoje uma das principais razões para se querer ser voluntário?
É muito interessante perguntar isso. Acho que o voluntariado mudou muito. O voluntariado tem muito a ver com a educação. Os filhos de voluntários fazem voluntariado. Mas hoje em dia o voluntariado jovem é completamente diferente. Tem mais a ver com participação. “Não sou só voluntário porque sou bonzinho, ou porque sou católico”. Hoje muitos jovens fazem voluntariado porque isso enriquece os currículos. E porque as empresas valorizam. Muitas universidades têm cadeiras de voluntariado. Hoje em dia é muito comum os alunos acabarem a universidade e fazerem um ano sabático de voluntariado. Ou irem para países de África. É costume em Portugal, como é em outros países. Até a filha do Obama foi fazer um ano de intervalo de voluntariado.
E o voluntariado por descarga de consciência?
Isso não existe com os mais jovens. Os mais jovens não têm essa noção de limpar pecadilhos.
Existe nos mais velhos?
Sim. Mas eu não vejo isso assim. Diria que é mais devolver à sociedade alguma coisa que a sociedade lhes deu. Nós temos muitos voluntários que foram quadros superiores de empresas. Tiveram uma vida profissional muito plena, muito preenchida e muito ativa e, de repente, vêm-se na reforma. Alguns até muito novos. E aí pensam: ‘porque é que eu hei de ir já para a reforma e não hei de ir dar o meu tempo e saber ao serviço de quem precisa?’
Acha que as redes sociais podem ajudar à cidadania?
Claro que sim. As redes sociais são todo o tipo de redes em que pessoas se juntam. O Banco Alimentar é uma rede social. Mas eu acredito muito nas redes sociais da internet. Acredito tanto que esta campanha tem aliás como mote: “Partilhar sabe bem”. Ao fim destes anos todos decidimos mudar a assinatura “Alimente esta ideia”, que era a marca do Banco Alimentar, para “Partilhar sabe bem”.
E essa decisão teve a ver com a importância dada às redes sociais?
Teve, sim. Hoje em dia toda a gente partilha alguma coisa, todos os dias. Partilha uma fotografia, partilha uma história, partilha um filme, muitas famílias têm os filhos fora e falam no Skype. Ou fazem um like. Partindo desta ideia de que partilhar é simples, o nosso desafio para as pessoas é: se partilhar é tão fácil e se nós todos partilhamos, então partilhemos com quem mais precisa e por quem mais precisa. Partilhemos então, contribuindo para a campanha do Banco Alimentar.
A Isabel tem Facebook?
Tenho, claro. Senão como é que via as páginas de Facebook do Banco Alimentar?
E Instagram? E Twitter?
Twitter não. Mas tenho Instagram e gosto muito.
O que é que gosta de pôr?
Gosto de pôr coisas que me surpreendam. Uma paisagem, uma cobra que passe na estrada… Coisas que me surpreendam. Não gosto de me pôr a mim.
Tem mais alguma rede social?
Tenho Whatsapp. Sou um bocadinho viciada, confesso. Tenho três filhos (dos cinco) que moram no estrangeiro. Dois em Londres e uma na Áustria. Se não tivesse WhatsApp como é que falava com eles?
Acha que foi mal interpretada quando em 2014 disse que “o pior inimigo dos desempregados são as redes sociais”?
Eu acho que há sempre pessoas que gostam de fazer as suas próprias interpretações. Eu mantenho rigorosamente tudo aquilo que disse. Muitas vezes, quando estamos agarrados a realidades que não são verdadeiras, até perdemos algumas hipóteses que existem no mundo real. Na internet consegue-se muitas boas coisas, mas não podemos esgotar-nos naquilo que é uma realidade virtual quando vivemos num mundo que é real.
Sabe que criaram uma página de Facebook em 2012 para a apoiarem, que se chama “Isabel Jonet, 20 anos a alimentar Portugal”?
Foi? Não, não sabia.
Foi na altura da polémica dos “bifes”. Quando a Isabel disse: “Temos de reaprender a viver mais pobres” e que: “Se não temos dinheiro para comer bifes todos os dias, não podemos comer bifes todos os dias”. Surgiu uma petição pública para que se demitisse e depois surgiu esta página de apoio.
Sim… Sabe, eu acho que as polémicas não servem para nada. Quando se pensa no trabalho que o Banco Alimentar faz há 25 anos e que envolve milhares de pessoas em todo o país, pessoas completamente anónimas, que dão o seu tempo, o seu esforço… Eu fico muito agradecida por ter havido um conjunto de pessoas que decidiram unir-se. Não é para defender a Isabel Jonet, não. Decidiram unir-se para reagir contra uma idiotice de meia dúzia de pessoas, que, se calhar, interpretaram-me mal. Ou quiseram interpretar mal. Eu não entro nada nessas polémicas quando nós aqui alimentamos pessoas que não têm o que comer. Essas coisas não têm interesse.
Qual é o grande valor do Banco Alimentar?
Nós aqui recuperamos todos os dias alimentos que tinham como destino provável o lixo, quando estavam em bom estado. A nossa missão é lutar contra o desperdício alimentar. Os bancos alimentares nasceram nos EUA, quando um homem foi à janela e viu uma mulher que estava a mexer no caixote do lixo porque tinha 8 filhos e não tinha o que lhes dar de comer. Esse homem pensou na injustiça que era haver uma mulher que tinha de ir ao lixo para alimentar os filhos. Então telefonou a um amigo que era produtor de batatas e perguntou se ele não tinha umas batatas a mais. Nesse dia à tarde, tinha um camião TIR de batatas em frente à casa dele. Aí percebeu que havia excedentes de produção na agricultura e, por outro lado, havia carências em famílias pobres. Foi buscar onde sobra para entregar onde falta. Depois esta ideia foi importada para França e chega a Portugal em 1991, como o 5º país europeu a receber a ideia.
1 milhão
É o número de sacos conseguidos em média numa campanha do Banco Alimentar Contra a Fome.
Na última campanha, os 21 bancos alimentares conseguiram 2600 toneladas de comida.
O sistema do Banco Alimentar é o melhor sistema a funcionar? No meio de tantos sistemas de solidariedade que têm surgido?
Acho que é um sistema que funciona porque tem um modelo de gestão. Os bancos alimentares são geridos como empresas. São transparentes, têm as contas auditadas, têm higiene e segurança. Muita organização. Todos os corpos sociais dos 21 bancos alimentares são voluntários. Eu sou voluntária. Mas é uma opção de vida. Eu não sou mais nem menos que os outros. Sou igual. Estou é cá há mais anos (risos). Acho que é um sistema que funciona porque nunca se desfocou da sua missão: lutar contra o desperdício de alimentos para entregar a instituições que os entregam às pessoas. Se os bancos alimentares tivessem começado a angariar roupa ou o que seja, tinham-se desfocado da sua missão. Se tivessem entregado os alimentos diretamente às pessoas pobres, tinham-se desfocado da sua missão. Mas temos sido muito inovadores na forma como recolhemos os alimentos.
Que inovações têm feito?
As campanhas representam 20% daquilo que é distribuído pelos bancos alimentares. Os outros 80% são doações diárias da indústria agrícola, cadeias de distribuição, mercados e abastecedores ou particulares que entregam produtos todos os dias. Mas posso falar de dois projetos. Um é a campanha “Papel por alimentos” em que pedimos às instituições para nos darem jornais, revistas, livros de estudo antigos. Temos uma parceria com um reciclador que, por cada tonelada de papel, nós dá à volta de 90 euros em comida. As instituições vinham buscar os produtos de carro vazio e agora trazem-nos o papel. Essas toneladas de papel significam milhares de quilos de alimentos. Outro é o projeto “Hortas nas prisões”. Nas prisões há espaço livre, os reclusos têm tempo livre, então nós propomos fazer hortas nas prisões que os reclusos tratam e cuidam. Depois os alimentos vêm para o Banco Alimentar. O facto de trabalharem na horta permite que eles cultivem alimentos mas também que, através do ritmo da natureza, aprendam a aceitar aquela pena que passou a ser não só punitiva mas também reparadora.
Mas em relação às campanhas: antes havia só a campanha dos sacos. Primeiro os sacos eram de plástico, agora já há dois anos são sacos de papel. E hoje temos três modalidades de campanha: os voluntários com os sacos, uma campanha com vales que é a Ajuda Vale e temos uma campanha na internet já há seis anos. E aqui é importante o apoio das empresas que acreditam.
É a tal responsabilidade social a funcionar?
Sim. As empresas dão-nos os seguros, os transportes, as plataformas informáticas, os empilhadores que usamos na campanha, o transporte dos empilhadores, a alimentação dos voluntários, a cedência do espaço nos armazéns, a publicidade… Tudo isso é oferecido. Para conseguir o dia-a-dia, são milhares de empresas que acreditam e suportam a atividade. Em 1994, logo no começo, nós publicámos um folheto para as empresas em que pedíamos “parceiros de negócio da luta contra a fome”. Ou seja, não estamos a pedir apenas um donativo. Pedimos parcerias de negócio. Pedimos às empresas que nos deem o que sabem fazer de melhor. Às seguradoras, seguros; às de publicidade, publicidade. Mas é uma parceria em que as empresas ganham por se associarem ao Banco Alimentar.
Mas ganham como?
Primeiro, porque têm benefícios fiscais. Depois, quando nos dão produtos excedentes, evitam custos de destruição. Mas ganham sobretudo porque o Banco Alimentar lhes dá a certeza de que a sua marca tem uma parceria de confiança.
Acha que hoje, com a quantidade de instituições que existem, quase que há uma luta para cada uma ter o seu público? Tanto de doadores como de pessoas ajudadas.
Em Portugal, a maioria das instituições vive do apoio do Estado (através do Instituto de Solidariedade Social) mas muitas vezes com donativos. É muito legítimo que as instituições queiram fidelizar os seus doadores e que lutem para os manter. Para mim, na caridade ou na solidariedade não se compete. É-se complementar. Há espaço para todas. É preciso não esquecer que o impacto da crise económica não foi tão grande por causa da nossa rede de instituições, que serve como almofada para as famílias.
Por vezes não falta colaboração entre as instituições?
Por vezes até pode parecer que há uma sobreposição. Muitas instituições a fazerem o mesmo.
A Refood, por exemplo, está a sobrepor-se ao Banco Alimentar?
São diferentes. Não há sobreposição porque a Refood distribui comida confecionada em restaurantes e cantinas e o Banco Alimentar não distribui comida confecionada. Quando o Hunter Halder (fundador da Refood) começou o projeto, veio falar comigo para se apresentar. Sabe que eu como estou aqui há tantos anos, hoje em dia já sou uma referência. Veio perguntar-me o que eu achava do projeto e eu disse que achava ótimo. A Refood é um projeto fantástico. Disse-lhe só para acautelar a higiene e segurança dos alimentos. É preciso assegurar que a comida está em ótimas condições. Eu tenho muito essa preocupação aqui. Distribuir alimentos não é dar restos de comida. É o contrário: contribuir para que possam ter uma vida melhor. Ajudar a alimentar é ajudar a dar mais força para agarrar na cana.
Acha que os direitos e as causas sociais podem ser uma arma política?
Acho que não deviam, mas podem. Os direitos sociais devem ser garantidos por todos e para todos. São os direitos do ser humano.
Mas há partidos que invocam mais os direitos sociais?
Há, claro. Reivindicam para si aquilo que não tem que ver com ideologia. Acho que o Estado deve estar cá para garantir os direitos sociais e isso não tem a ver com política ou ideologia. Os direitos sociais deviam ser independentes do governo que ganha as eleições. Mas é giro porque uma das diferentes abordagens das pessoas consoante a idade é a interpretação dessa designação de direitos sociais. É por isso que os mais velhos não pedem tanta ajuda.
São menos reivindicativos?
Os mais velhos não consideram que tenham o mesmo direito a essa ajuda. Muitas vezes têm vergonha de pedir ajuda porque não a olham como um direito. Acham que não a merecem. Os maiores casos de pobreza envergonhada são de pessoas mais idosas.
Os portugueses têm dificuldade em pedir ajuda?
Já tiveram mais do que hoje em dia. Há muitos portugueses que ainda vivem muito mal. E têm de pedir ajuda. Em Portugal há um milhão de pessoas que vive com menos de 250 euros por mês e há dois milhões de pessoas que vivem com menos de 450 euros por mês. Um quinto da população portuguesa vive com menos de 450 euros por mês. Essas pessoas, nomeadamente os idosos e muitos com mais de 80 anos, quando têm baixas pensões de reforma, têm de escolher entre comer, pagar os remédios, pagar a renda da casa, pagar a água, pagar a luz. Quando têm 250 euros por mês, têm sempre de ser ajudadas. As instituições minoram sofrimentos e ajudam a dar uma vida mais digna. Só se pode lutar contra a pobreza através da educação e da formação, mas depois tem de haver sítios para as pessoas trabalharem. Se as pessoas não têm educação, então é que nunca mais têm empregos onde possam ganhar dinheiro para poderem ser autónomas.