[Donald Trump reconheceu esta semana Jerusalém como a capital de Israel. Seguiram-se confrontos, feridos e já quatro mortos contabilizados. Leia a primeira parte da história da cidade que está no centro do conflito.]

c. 2000 a.C.

Embora os primeiros vestígios arqueológicos de ocupação humana datem de c.4500-3500 a.C., a primeira menção a Jerusalém surge em textos egípcios de c. 2000. O nome da cidade é dado como “Rushalim”, um dos muitos que viria a receber ao longo do tempo nos documentos de diferentes povos – só nos textos sagrados judaicos a cidade é designada por 72 nomes diferentes. Se os nomes são legião, as interpretações etimológicas oferecidas para cada um deles por diferentes estudiosos são um turbilhão estonteante – as discussões etimológicas em torno do nome “Jerusalém” são tão ferozes, sectárias e inconclusivas como as disputas pela cidade propriamente dita.

c. 1850 a.C.

Seguindo as instruções de Deus, Abraão sobe a uma montanha na “terra de Moriah”, acompanhado pelo seu filho Isaac. Chegado ao cimo, amarra o rapaz, deita-o sobre uma pedra a fazer a vez de altar e prepara-se para o degolar. No último instante surge um anjo que detém a sua mão e lhe aponta um providencial carneiro preso num arbusto próximo como vítima alternativa. Jesus (o treinador de ludopédio, não o Filho de Deus), diria que Abraão “não levou o guião certo”, mas a emenda acabou por evitar o pior e a história – sinistra e reveladora de um conceito de deus sanguinário, prepotente e que preza a obediência cega acima de tudo – acabou por impor-se nas exegeses e no imaginário como um edificante teste à solidez da fé de Abraão.

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“Sacrifício de Isaac”, por Michelangelo da Caravaggio, c. 1603

Muitos estudiosos da Bíblia identificam a montanha na “terra de Moriah” como o local onde mais tarde foi construído o Templo de Salomão, ou seja, o actual Monte do Templo, em Jerusalém. Nunca saberemos se Abraão e Isaac tiveram existência real e, tendo-a, se alguma vez se aproximaram de Jerusalém, mas é mau agouro que a primeira história que tem a cidade como palco seja a de um pai disposto a cortar a garganta ao filho sem hesitação só porque ouviu uma voz que lhe disse para o fazer.

[“Story of Isaac”, de Leonard Cohen, do álbum Songs from a room (1969), contém uma acusação que, desgraçadamente, é intemporal: “Vós que agora construis estes altares/ Para sacrificar estas crianças/ Não mais o deveis fazer/ Um ardil não é uma visão/ E vós nunca fostes tentados/ Por um demónio ou por um deus”]

c. 1550-1000 a.C.

Jerusalém fica sob domínio egípcio, mas este entra em declínio após a derrota infligida pelos “Povos do Mar” na batalha de Djahy (ou Canaã), em 1178 a.C. O domínio dos egípcios dá lugar ao dos jebusitas, até que em 1010 a.C. o rei David conquista a cidade e faz dela a capital do Reino Unido de Israel, constituído pelos reinos de Israel, a norte, com capital em Samaria, e Judá, a sul, com capital em Jerusalém.

“David triunfante”, por Matteo Rosselli, 1620

c. 962-700 a.C.

No mesmo local onde David terá erguido um altar, o rei Salomão inicia em 962 a.C. a construção do que ficará conhecido como o Primeiro Templo.

“Salomão consagra o templo”, por James Tissot (ou discípulo), c.1896-1902

Com a morte de Salomão, c.930 a.C., o reino cinde-se em dois e não tarda que o faraó Sheshonk I (Shishak na Bíblia) se aproveite desta fraqueza para saquear Jerusalém.

Por volta de 850 a.C. sucedem-se os saques por filisteus (o povo de onde derivará mais tarde o topónimo “Palestina”), árabes e etíopes. Mostrando que os judeus não precisam de lições de estrangeiros no que toca a pilhagens e massacres, Joás, rei de Israel, entra em conflito com Amassias, rei de Judá, derrota as tropas deste na batalha de Beth-shemesh, semeia a destruição em Jerusalém e apropria-se dos tesouros do Templo.

Os desentendimentos entre Judá e Israel prosseguem e levam Ahaz de Judá a solicitar a protecção de Tiglath Pileser III, o senhor do império Neo-Assírio (e com um nome que soa a banda de doom metal lituana ou marca de cerveja artesanal eslovaca). Os assírios começam por aceitar a vassalagem, mas não tardam a passar à conquista de boa parte do Médio Oriente, e Israel e Judá não escapam à sua ambição.

A expansão do Império Assírio entre 824 a.C. e a sua máxima extensão, em 671 a.C.

701 a.C.

O rei assírio Sennacherib sitia Jerusalém mas não a conquista. Existem, consoante a fonte seja hebraica ou assíria, explicações tão contraditórias para este desfecho que funcionam como uma advertência para que encaremos com a maior desconfiança os relatos que nos chegaram da Antiguidade – muitos “factos históricos” sobre os quais alguns povos baseiam hoje reivindicações e crenças não passam de fraudes descaradas, criadas para efeitos de propaganda.

Se dermos crédito à Bíblia, em 701 a.C. Deus enviou em socorro de Jerusalém um anjo que matou 185.000 soldados assírios; se dermos crédito aos anais de Sennacherib, este levantou o cerco depois de Ezequias, rei de Judá, encurralado na cidade “como um pássaro na gaiola”, ter pago um resgate de “30 talentos de ouro, 800 de prata e diversos tesouros”.

A verdade pode estar entre estes dois extremos: talvez o levantamento do cerco tenha resultado de Ezequias ter empreendido prudentes preparativos, assegurando a abastecimento de água à cidade através da escavação de um túnel de meio quilómetro e eliminando, à aproximação dos assírios, todas as fontes de água no exterior; ou, como acontecia frequentemente até há não muito tempo, o deflagrar de uma epidemia no acampamento sitiante pode ter forçado Sennacherib a regressar a casa.

A versão judaica dos eventos: “A derrota de Sennacherib”, por Peter Paul Rubens, c.1612-14: o pinto tomou a liberdade de substituir o anjo solitário por um Quarteto Fantástico

609 a.C.

Partem os assírios, regressam os egípcios. O faraó Necao II, que pretende fazer face aos babilónios, uma potência emergente no sempre agitado cenário geopolítico do Médio Oriente, solicita a Josias, rei de Judá, que deixe passar as suas tropas, mas Josias recusa e Necao II derrota-o na batalha de Meggido. Meggido justifica um aparte: é um povoado de modesta relevância, no vale de Jezreel, mas a topografia da região faz dele um ponto de passagem muito frequentado, de forma que várias batalhas foram aí travadas ao longo da história; a dar crédito ao Livro do Apocalipse, terá também aí lugar, no fim dos tempos, a batalha definitiva, entre Deus e os exércitos de pecadores comandados por Satanás, ou seja, o Armagedão – nome derivado de Har Meggido.

Em Jerusalém, os novos senhores egípcios removem Joacaz, filho do falecido Josias, e colocam no trono de Jerusalém o seu irmão Joaquim. Porém, quatro anos depois, Necao II é derrotado pelo rei babilónio Nabucodonosor II (Nebuchadnezzar) e Jerusalém transfere para este a sua vassalagem.

Morte de Josias em Meggido, por Francesco Conti (1681-1760)

586 a.C.

A submissão de Judá aos babilónios não dura muito tempo: o fracasso retumbante da tentativa de invasão do Egipto por Nabucodonosor II estimula alguns dos seus vassalos a rebelar-se – é o caso de Judá, cujo rei Joaquim cessa o pagamento do tributo. O profeta Jeremias, seu conselheiro, adverte-o de que não será uma boa ideia e reprova os desvios do rei às tradições judaicas e Joaquim riposta queimando em público os escritos do profeta. As advertências eram justificadas: em 598 a.C., Nabucodonosor sitia Jerusalém, Joaquim perece e a cidade cai em 597 a.C. Jeconias sucede a Joaquim, mas poucos meses depois Nabucodonosor substitui-o pelo tio, Zedequias. Em 589 a.C. este alia-se com os egípcios contra os babilónios e Nabucodonosor regressa em força. O cerco à cidade foi longo e impiedoso: há indícios arqueológicos de que a população passou a alimentar-se de ervas e o relato de Jeremias sugere mesmo que os sitiados se viram forçados a recorrer ao canibalismo.

[O segundo cerco babilónio a Jerusalém visto por Alessandro Scarlatti: na ária “Del mio cor più segreto”, da oratória Il Sedecia, re di Gerulasemme (1705), Ismaele, filho de Sedecia (Zedequias), antevê o futuro funesto que lhe está reservado. Interpretação do contratenor Philippe Jaroussky e Il Seminario Musicale, dirigido por Gérard Lesne (Virgin Classics/Warner)]

Em 586 a.C., após 30 meses de cerco, a cidade cai e Nabucodonosor, abespinhado pela sucessivas rebeliões dos judeus e pelo cerco prolongado, dá largas à sua cólera: faz degolar todos os filhos de Zedequias perante os olhos deste; é a última coisa que Zedequias vê, pois em seguida é cegado e levado cativo para Babilónia, onde perecerá. A maior parte da população de Jerusalém que sobreviveu ao cerco e aos massacres é também deportada para Babilónia – as estimativas variam entre 10.000 e 20.000 condenados ao exílio. A cidade é pilhada e o Templo de Salomão é arrasado.

Destruição de Jerusalém pelos babilónios, segundo Michel Wolgemut & Wilhelm Pleydenwurff, na Crónica de Nuremberga, 1493

A recordação do cativeiro na Babilónia está envolto em mágoa – “Junto aos rios da Babilónia estávamos sentados e chorando, lembrando-nos de Sião. Nos salgueiros das margens pendurámos as nossas harpas” – mas não teve apenas aspectos negativos, pois foi aí que o moderno alfabeto hebraico foi adoptado e vários textos sagrados hebraicos terão sido redigidos, denotando influências das religiões e mitologias dos povos da Babilónia e da Pérsia. Como escreve Simon Sebag Montefiore em Jerusalém: A biografia (Alêtheia) “foi aqui que a Bíblia começou a tomar forma”.

“Junto aos rios da Babilónia”, por Gebhard Fugel, c. 1920

539 a.C.

Mais uma reviravolta no instável tabuleiro geopolítico do Médio Oriente: o rei persa Ciro derrota o rei babilónio Nabonido. Ao contrário dos assírios e babilónios, que alicerçavam os seus impérios exclusivamente na opressão e no terror, Ciro oferece tolerância religiosa como contrapartida da aceitação do domínio político. Assim, liberta os judeus exilados em Babilónia e autoriza-os a regressar a Jerusalém e reconstruir o Templo e compromete-se a respeitar os seus direitos e leis. Não é de admirar que Ciro goze de excelente reputação entre os judeus, mas seria um erro clamoroso vê-lo como um monarca bondoso e tolerante: quando foi morto em 530 a.C., quando pretendia anexar ao seu império o território dos Massagetas (actual Cazaquistão), o líder massageta Tomiris cortou-lhe a cabeça e guardou-a num recipiente cheio de sangue, como se dissesse “aí tens com que saciar a tua sede pelos territórios dos outros povos”.

Nem todos os judeus exilados regressaram a Jerusalém: os que ficaram em Babilónia formaram uma comunidade tão sólida e influente que resistiu às constantes mudanças políticas e religiosas da região e que constituiu “até à invasão mongol, […] um centro de cultura e poder judaico quase tão importante como Jerusalém” (Montefiore).

Zorobabel mostra os planos do novo Templo a Ciro, por Jacob van Loo, c.1640-70

516 a.C.

Os que regressaram a Jerusalém fizeram-no em várias levas – uma delas foi liderada por Zorobabel, neto do último rei de Judá e nascido na Babilónia (é isso mesmo que o nome “Zorobabel” significa). É ele que, em 516 a.C., no reinado do imperador persa Dario I, empreende a construção do Segundo Templo – a sua consagração, no ano seguinte envolveu o sacrifício de 100 touros, 200 carneiros e 400 cordeiros, mas a imponência destas cerimónias não oculta a realidade: o novo templo era uma pálida amostra do anterior e Jerusalém continuava a ser uma cidade em ruínas e semi-despovoada.

Reconstrução hipotética do Segundo Templo erguido por Zorobabel

Quaisquer melhoras que possa ter registado são anuladas em 350 a.C., quando a cidade se rebela contra o domínio persa e Artaxerxes III a toma de assalto e incendeia e procede à deportação dos revoltosos, desta vez para as remotas estepes da Hircânia, junto ao Mar Cáspio.

332 a.C.

Um rapaz macedónio, com apenas 24 anos de idade mas ambição e determinação ilimitados, obtém, sem grande esforço, a rendição de Jerusalém. Alexandre III está empenhado em apoderar-se de todo o império de Dario III, o que inclui o Egipto – e é no caminho para o Egipto que entra em Jerusalém. Mas, tal como Ciro, pouco impõe aos judeus para lá do domínio político, e logo parte para Oriente, na peugada de Dario III e dos seus sonhos de glória.

“Alexandre o Grande no Templo de Jerusalém”, por Sebastiano Conca, c.1736

320 a.C.

Os sonhos de Alexandre são interrompidos pela morte, em 323 a.C., e as disputas que eclodem entre os seus lugares-tenentes pela partilha do seu vasto império convertem-se numa interminável fonte de conflitos, a que não escapa Jerusalém, que, à partida, ficaria, como toda a Síria, sob o governo de Laomedonte de Mitilene.

Outro dos “sucessores de Alexandre”, Ptolemeu I, cobiça a Síria para si: propõe-se comprá-la a Laomedonte, mas este recusa e Ptolemeu envia um exército, comandado por Nicanor. Em 320 a.C. este general conquista Jerusalém à má-fé: alega querer oferecer um sacrifício ao Deus dos judeus durante o Sabbath, mas assim que se vê dentro da cidade assume o seu controlo com rapidez e brutalidade. À pilhagem e às violações soma-se a deportação de judeus para Alexandria – o que, como no caso do exílio em Babilónia, também tem consequências positivas: a comunidade judaica de Alexandria converter-se-á num dos mais importantes centros de erudição judaica do Próximo Oriente.

Divisão inicial do império de Alexandre pelos seus generais

200 a.C.

Não dura muito tempo o domínio de Ptolemeu I: em 315 a.C. o seu rival Antíoco I Monophthalmus (em grego tudo soa mais nobre e venerável: em português é “Antíoco o Zarolho”), invade a Síria e força Ptolemeu a recuar. Durante mais de um século, Jerusalém vai ser sucessivamente conquistada e reconquistada pelas dinastia dos Ptolemeus e dos Antíocos, até que em 200 a.C., Antíoco III o Grande – à frente do que é agora conhecido como Império Selêucida (por ter sido fundado por Seleuco I Nicator, um dos “sucessores” de Alexandre) – escorraça os Ptolemeus para o Egipto e toma conta de Jerusalém. Antíoco III mostra-se magnânimo: “prometeu reparar o Templo e as muralhas e repovoar a cidade” (Montefiore) e autorizou que os judeus se regessem pelas suas leis – “nunca Jerusalém conheceu conquistador tão indulgente quanto este” (Montefiore).

Antíoco III o Grande

167 a.C.

O mesmo não pode dizer-se do seu filho Antíoco IV Epifânio, que sucede ao pai em 175 a.C. e aproveita querelas familiares entre o sumo-sacerdote Onias III e o seu irmão Jasão, para destituir o primeiro e elevar o segundo a sumo-sacerdote de Jerusalém (é substituído três anos depois por Menelau). O desígnio de Antíoco IV Epifânio é a anulação da identidade judaica: Jerusalém é convertida numa polis grega, com o nome de Antioquia-Hierosolyma; o Templo é ultrajado com carne de porco e reconsagrado a Zeus e na colina fronteira é construído um ginásio grego para os jovens se exercitarem nus; a posse da Tora é punida com a morte; as mães que circuncidam os filhos são atiradas das muralhas, juntamente com as crianças; quem observa o Sabbath é queimado vivo.

Quando, em 167 a.C., um alto funcionário selêucida ordena ao sacerdote Matatias que sejam feitos sacrifícios em honra dos deuses gregos, aquele não só se recusa a cumprir a ordem como mata um judeu helenizado que se ofereceu para o fazer, bem como o representante de Antíoco. É a centelha que desencadeia a Revolta dos Macabeus que, em 164 a.C. toma conta de Jerusalém, para a perder novamente para os selêucidas em 160 a.C., ano em que é morto Judas Macabeu e cessa a revolta.

“Matatias punindo a idolatria”, por Philippe De Louthebourg, 1815

63 a.C.

O império selêucida entra em declínio e começa a ver a primazia na região disputada pelos partos e pelos romanos, o que, aliado a guerras fratricidas entre príncipes selêucidas cria um vácuo de poder que permite a emergência de um reino judeu independente – é o início da dinastia dos Asmoneus, que, todavia, também é dilacerada por conflitos intestinos.

O poder romano vai estendendo-se ao Próximo Oriente: em 63 a.C. Pompeu cerca Jerusalém e é mais um dos conquistadores a usar a deslealdade de atacar durante o Sabbath. No massacre que se segue terão morrido 12.000 judeus, mas, ao menos, Pompeu abstém-se de saquear os tesouros do Templo.

Pompeu entra no Templo, por Jean Fouquet, c.1470-75

Em 40 a.C., Roma nomeia como rei dos judeus Herodes o Grande, que empreende importantes obras em Jerusalém e reconstrói o Templo, suplantando amplamente a modesta construção erigida por Zorobabel.

Jerusalém após a reconstrução promovida por Herodes, segundo James Tissot, c.1886-94

Reconstrução hipotética do Templo de Herodes, segundo maqueta de 1966

6 d.C.

Roma põe fim ao estatuto de estado-vassalo do reino asmoneu (embora continuem a existir reis asmoneus, com poderes limitados, até 92 d.C.) e converte a Judeia numa província, com capital administrativa na nova cidade de Cesareia Palestina (ou Cesareia Marítima) e não em Jerusalém, e colocada na dependência do governador da Síria. A reforma fiscal imposta por Públio Sulpício Quirino, o novo governador romano da Síria, gera revolta entre os judeus – é sufocada, mas dela nasce o movimento dos zelotas, grupo radical apostado em expulsar os romanos da Judeia.

Jesus expulsa os vendilhões do Templo, por Giovanni Paolo Panini, c.1750

c. 33 d.C.

No Domingo de Ramos, um pregador radical galileu – que alguns estudiosos associam hoje aos zelotas –, que em ocasião anterior já gerara um tumulto no Templo, entra em Jerusalém montado num burro e acompanhado por discípulos que o saúdam como “Messias” e “Rei de Israel”. Os sumos-sacerdotes vêem uma séria ameaça neste agitador que anuncia o apocalipse iminente e contesta a sua autoridade e as tradições religiosas judaicas, o que é tanto mais perigoso por ser Páscoa e, portanto, Jerusalém estar inundada de milhares de peregrinos judeus vindos de todo o Próximo Oriente. Após várias peripécias, conseguem que o governador romano da cidade, Pôncio Pilatos, o faça crucificar.

Entrada de Jesus em Jerusalém, por Anthony Van Dyck, 1617

c. 50 d.C.

Os discípulos do pregador crucificado reúnem-se em Jerusalém, a fim de decidir o que fazer com o legado espiritual do seu mestre. Neste concílio está também presente Paulo de Tarso, que, após uma experiência traumática, se consagrou de corpo e alma à divulgação de uma interpretação muito própria dos ensinamentos do pregador crucificado, o que o faz entrar em conflito com os discípulos directos, que têm uma visão mais ortodoxa.

É impossível aferir o que realmente se terá passado entre as duas “facções”, pois a única versão que sobreviveu sobre estes eventos foi a de Paulo – o quer dizer que nunca saberemos se o pregador crucificado se reconheceria nos ensinamentos difundidos por Paulo.

A conversão de S. Paulo na estrada de Damasco, por Michelangelo da Caravaggio, c.1600-01

O que é certo é que na altura Paulo está longe de reunir o consenso entre os judeus: c. 58 d.C., Paulo regressa a Jerusalém e vai ao Templo na companhia de Tiago o Justo, irmão de Jesus e primeiro bispo de Jerusalém, mas alguns judeus que não se identificam com as suas pregações reconhecem-no e atacam-no e apenas a intervenção dos soldados romanos o salva de ser linchado pela turba.

Poucos anos depois – c.62-66 d.C. – o sumo-sacerdote Anano, filho do Anás que tinha condenado Jesus à morte, manda prender Tiago o Justo e fá-lo condenar pelo Sinédrio: Tiago é atirado do alto do Templo, mas como a queda não o mata, passam a apedrejá-lo, até que um espírito mais expedito o despacha com um golpe de maço na cabeça.

66 d.C.

Em 66 d.C., em Cesareia, capital da Judeia, um grupo de gregos sacrifica um galo junto à entrada da sinagoga, um acto que, na óptica judaica, torna o edifício “impuro”. A provocação causa o efeito pretendido: a ira dos judeus.

Ruínas do teatro romano de Cesareia

Estes apelam para a intervenção romana, mas o procurador imperial para a Judeia, Géssio Floro, a quem os gregos subornam, recusa-se a intervir. Em represália, os sacerdotes judeus anunciam que deixarão de executar sacrifícios e orações em prol do imperador romano. Aos agravos de ordem religiosa somam-se agravos de ordem tributária, quando Floro invade o Templo e subtrai ao seu tesouro dinheiro que diz ser devido a Roma. Os judeus retaliam bombardeando Floro com moedas nas ruas de Jerusalém e Floro exige às autoridades judaicas que os responsáveis lhe sejam entregues. Perante a recusa, os soldados romanos prendem alguns líderes judeus: uns são açoitados e outros crucificados. Apesar da tentativa de intermediação pela parte de Berenice, irmã do rei Herodes Agripa, a escalada de violência prossegue: os judeus pegam em armas, chacinam a guarnição romana de Jerusalém e depois dedicam-se a limpar a Judeia de cidadãos romanos, judeus suspeitos de simpatizar com os romanos e símbolos da autoridade romana.

Tudo isto, é bom ter presente, começou com a morte de um galo.

70 d.C.

O imperador Nero encarrega Vespasiano de reprimir a revolta judaica, mas em 68 d.C. é o próprio Nero que se vê a braços com várias revoltas, e acaba por ter um fim patético (uma espécie de “suicídio assistido”, pois não teve coragem para o acto e alguém teve o fazer por ele). Vespasiano aspira à sucessão de Nero e dirige-se apressadamente para Roma, onde Vitélio tenta apoderar-se do trono, e deixa a cargo do seu filho Tito a conclusão da campanha da Judeia. Tito cerca Jerusalém durante sete meses e, apesar da ferocíssima resistência dos zelotas, acaba por triunfar. A cidade é incendiada, o Templo é arrasado, os tesouros do Templo são saqueados e os líderes judeus são presos e levados para Roma, onde figuram numa procissão triunfal que tem como corolário a sua execução.

“A destruição do Templo de Jerusalém”, por Francesco Hayez, 1867

132-136

Poderia pensar-se que esta punição brutal poria termo às insurreições judaicas, mas em 115-117 eclodem tumultos sangrentos, desta vez entre os judeus da diáspora, na Cirenaica e em Chipre. Em 130, o imperador Adriano visita Jerusalém, ou o que resta dela, e decide apagá-la da história: no seu lugar será erigida Élia Capitolina, cidade consagrada ao culto de Júpiter, inspirada nos planos de helenização de Antíoco IV Epifânio e onde não há lugar para o judaísmo: a circuncisão é proibida sob pena de morte.

Adriano tem reputação de homem sábio mas é óbvio que subestima os judeus: em 132 a Judeia volta a inflamar-se com a revolta de Simão bar Kokhba, aclamado como Messias. Simão assume o controlo de Jerusalém durante três anos mas as 12 legiões enviadas para o combater acabam por prevalecer: “foram muito poucos os que sobreviveram, 50 fortalezas e 985 aldeias foram queimadas, 585.000 mortos no campo de batalha”, não contando com os que morreram “de fome, de doenças e pelo fogo”, conta o historiador Dião Cássio. “Foram tantos os judeus reduzidos à escravatura, que valiam menos do que um cavalo no mercado de escravos de Hebron” (Montefiore).

Toda esta destruição não basta a Adriano: os judeus e os cristãos são expulsos de Élia Capitolina e proibidos de aproximar-se sequer da cidade, sob pena de serem executados. O Monte do Templo ganha um templo de Júpiter, o Calvário um templo de Vénus. A Judeia passa a chamar-se Palestina.

Ruínas de Masada, o último reduto da resistência judaica na Revolta de bar Kokhba

326

Em 324, Constantino, o primeiro imperador romano a converter-se à fé cristã, desembaraça-se do seu último rival e torna-se no senhor absoluto de Roma. Em 313, Constantino já promulgara o Édito de Milão, que permitia o culto do cristianismo, e em 325 convoca o Concílio de Niceia, que vai ter um papel padronizador no que era então uma fé com incontáveis variantes, ramificações e dissidências.

Constantino levanta as restrições à entrada de cristãos em Jerusalém, o que desencadeia um afluxo de emigração cristã para a cidade, muito reforçada pela visita da octogenária imperatriz viúva Helena, mãe de Constantino, que pode ser vista como pioneira do turismo religioso.

A visita de Helena a Jerusalém reverte o trabalho de supressão do passado empreendido por Adriano: o templo de Vénus no Calvário é demolido e, numa série de afortunadíssimas coincidências (se não as lermos como panfletos de propaganda cristã, confeccionados a posteriori), Helena “descobriu” uma infinidade de locais e relíquias sagradas: o túmulo de Jesus, o local exacto da crucificação, a própria cruz (mais as duas dos “ladrões”) e os respectivos pregos, a Santa Túnica. Num ápice, Jerusalém vê nascer a Basílica de Eleona, no Monte das Oliveiras (333), assinalando o local da Ascensão, e a Igreja do Santo Sepulcro (335). Entretanto, apesar da provecta idade, Helena faz questão de visitar todos os locais associados com a vida de Jesus – nos anos seguintes o roteiro irá atrair multidões de peregrinos e o turismo religioso de massas dará nova vida a Jerusalém à Palestina. O sector da hotelaria e restauração prospera, o comércio de relíquias fervilha.

“Achamento da Vera Cruz” pela imperatriz Helena, por Piero della Francesca, c.1452-66

361

Breve interlúdio: o imperador Juliano o Apóstata, que não professa a fé cristã, permite aos judeus o regresso a Jerusalém e a reconstrução do Templo.

614

Desde o início do século IV que o império sassânida, herdeiro do império parta, que por sua vez era herdeiro do império persa, se afirmara como uma das potências (“players”, como hoje sói dizer-se) do Médio Oriente. Cosroe I (Khosrau) que subiu ao trono em 531 obteve tais sucessos militares que em 532 o imperador bizantino Justiniano I se viu forçado a pagar-lhe uma fortuna pela “paz eterna”. A “eternidade” durou só até 540 e durante os anos seguintes bizantinos (o Império Romano do Oriente) e sassânidas digladiaram-se em guerras quase incessantes, com sucessivos avanços e recuos. Porém, a partir do início do século VII, com o sha Cosroe II, a maré está, genericamente, a favor dos sassânidas.

Batalha entre os bizantinos comandados pelo imperador Heráclio e os sassânidas comandados por Cosroe II, segundo Piero della Francesca, c.1452

Em 614, os sassânidas, sob o comando do general Shahrbaraz e aliados aos judeus (que se tinham revoltado contra o domínio bizantino), tomam Jerusalém. Incendeiam a Igreja do Santo Sepulcro, massacram a população cristã, prendem o patriarca cristão e apoderam-se das relíquias cristãs. Shahrbaraz nomeia Neemias, o líder dos insurrectos judeus, como governador da cidade e este empenha-se em construir um novo templo (o terceiro) e em vingar anos de repressão dos judeus às mãos dos cristãos. Dedica-se a esta última tarefa com tal zelo que os cristãos se revoltam e lincham numerosos judeus, Neemias incluído. Os judeus sobreviventes vão pedir ajuda a Shahrbaraz, que reconquista a cidade; porém, os sassânidas acabam por concluir que os cristãos são a força dominante em Jerusalém, pelo que lhes confiam o governo da cidade e expulsam os judeus.

637

Após séculos de atrito entre sassânidas e bizantinos, os dois impérios estão completamente extenuados e criou-se um vazio de poder, que irá ser aproveitado por um novo actor, que tinha até então estado relegado a um discretíssimo papel. A Blitzkrieg árabe alastrou pelo Médio Oriente e Norte de África com velocidade fulgurante, infligindo espectaculares derrotas aos desgastados exércitos sassânidas e bizantinos. Em 637, Jerusalém é tomada pelos árabes, comandados pelo califa Omar I o Grande, mas este garante liberdade de culto aos não-muçulmanos.

Para o Islão, Jerusalém não é apenas mais uma conquista – é a sua terceira cidade santa, após Meca e Medina, o que poderá parecer absurdo, uma vez que Maomé (c.570-632) nunca esteve na cidade nem sequer se aproximou da Palestina. Porém, em 620, Maomé teve uma visão em que terá feito uma viagem nocturna, montado num corcel alado, que o terá levado a um “santuário longínquo” e ao Céu e ao Inferno e em que terá encontrado Adão, Abraão, Moisés e Jesus. O Corão apresenta esta experiência – conhecida como Isra e Miraj – como uma visão e não explicita onde fica o “santuário longínquo”, mas surgiram – e prevaleceram – interpretações que proclamam que o Isra e Miraj terá sido uma experiência física e que o “santuário longínquo” era Jerusalém.

Mesquita de Al-Aqsa, em Jerusalém, erguida em 705: o Islão identifica-a com o “santuário longínquo” visitado por Maomé na sua viagem nocturna

A escolha de Jerusalém, situada 1200 Km a noroeste de Meca e Medina, parecerá descabida para quem veja o Islão como uma religião criada ex nihilo na Península Arábica, como pretendem as biografias do Profeta. Porém, os pontos de contacto do islamismo com o judaísmo e o cristianismo são tantos que “não será certamente absurdo perguntar como se explica que figurem no Corão tantas personagens bíblicas. Uma resposta possível é que Maomé tivesse absorvido influências judaicas e cristãs durante as viagens de negócios que fez à Síria; ou então que, a despeito do que nos dizem as fontes muçulmanas, houvesse em Meca colónias florescentes de judeus, de cristãos, ou de ambos”, argumenta Tom Holland em Sob o signo da espada.

Na verdade, dez anos antes da visão/viagem nocturna de 620, Maomé estipulara o Monte do Templo em Jerusalém como ponto de referência para onde os crentes deveriam orientar-se nas suas orações, instrução que foi corrigida em 624, passando Meca a ser a referência primordial.

661

Em 661, o Monte do Templo é o local escolhido pelos líderes islâmicos para um concílio destinado a decidir a nomeação de um sucessor para o quarto califa, Ali, genro do Profeta, assassinado nesse ano em Kufa. O eleito é Muawiyah ibn Abi Sufyan, que ficará para a história como Muawiyah I. Embora estabeleça a sua sede em Damasco, tudo faz para realçar o papel de Jerusalém e, em particular, do Monte do Templo, que designou como “terra da reunião e da ressurreição no Dia do Juízo”. “A zona que fica entre os dois muros desta mesquita é mais cara a Deus do que toda a terra”, declarou.

691

O califa Abd al-Malik conclui a construção da Cúpula da Rocha, no Monte do Templo, empresa que consumiu sete anos de rendimentos da província do Egipto. “A Rocha assinala o local onde ficava situado o Paraíso de Adão, o altar de Abraão, o sítio onde David e Salomão fizeram os planos para o Templo, por onde Maomé viria a passar na sua Viagem Nocturna” (Montefiore).

Cúpula da Rocha

Não é de estranhar que as disputas religiosas que persistem em torno de Jerusalém no século XXI: judaísmo, cristianismo e islamismo são três irmãos siameses que estão unidos por Jerusalém

[A segunda parte deste artigo é publicada este domingo]