[Donald Trump reconheceu esta semana Jerusalém como a capital de Israel. Seguiram-se confrontos, feridos e já quatro mortos contabilizados. Leia a primeira parte da história da cidade que está no centro do conflito.]
c. 2000 a.C.
Embora os primeiros vestígios arqueológicos de ocupação humana datem de c.4500-3500 a.C., a primeira menção a Jerusalém surge em textos egípcios de c. 2000. O nome da cidade é dado como “Rushalim”, um dos muitos que viria a receber ao longo do tempo nos documentos de diferentes povos – só nos textos sagrados judaicos a cidade é designada por 72 nomes diferentes. Se os nomes são legião, as interpretações etimológicas oferecidas para cada um deles por diferentes estudiosos são um turbilhão estonteante – as discussões etimológicas em torno do nome “Jerusalém” são tão ferozes, sectárias e inconclusivas como as disputas pela cidade propriamente dita.
c. 1850 a.C.
Seguindo as instruções de Deus, Abraão sobe a uma montanha na “terra de Moriah”, acompanhado pelo seu filho Isaac. Chegado ao cimo, amarra o rapaz, deita-o sobre uma pedra a fazer a vez de altar e prepara-se para o degolar. No último instante surge um anjo que detém a sua mão e lhe aponta um providencial carneiro preso num arbusto próximo como vítima alternativa. Jesus (o treinador de ludopédio, não o Filho de Deus), diria que Abraão “não levou o guião certo”, mas a emenda acabou por evitar o pior e a história – sinistra e reveladora de um conceito de deus sanguinário, prepotente e que preza a obediência cega acima de tudo – acabou por impor-se nas exegeses e no imaginário como um edificante teste à solidez da fé de Abraão.
Muitos estudiosos da Bíblia identificam a montanha na “terra de Moriah” como o local onde mais tarde foi construído o Templo de Salomão, ou seja, o actual Monte do Templo, em Jerusalém. Nunca saberemos se Abraão e Isaac tiveram existência real e, tendo-a, se alguma vez se aproximaram de Jerusalém, mas é mau agouro que a primeira história que tem a cidade como palco seja a de um pai disposto a cortar a garganta ao filho sem hesitação só porque ouviu uma voz que lhe disse para o fazer.
[“Story of Isaac”, de Leonard Cohen, do álbum Songs from a room (1969), contém uma acusação que, desgraçadamente, é intemporal: “Vós que agora construis estes altares/ Para sacrificar estas crianças/ Não mais o deveis fazer/ Um ardil não é uma visão/ E vós nunca fostes tentados/ Por um demónio ou por um deus”]
c. 1550-1000 a.C.
Jerusalém fica sob domínio egípcio, mas este entra em declínio após a derrota infligida pelos “Povos do Mar” na batalha de Djahy (ou Canaã), em 1178 a.C. O domínio dos egípcios dá lugar ao dos jebusitas, até que em 1010 a.C. o rei David conquista a cidade e faz dela a capital do Reino Unido de Israel, constituído pelos reinos de Israel, a norte, com capital em Samaria, e Judá, a sul, com capital em Jerusalém.
c. 962-700 a.C.
No mesmo local onde David terá erguido um altar, o rei Salomão inicia em 962 a.C. a construção do que ficará conhecido como o Primeiro Templo.
Com a morte de Salomão, c.930 a.C., o reino cinde-se em dois e não tarda que o faraó Sheshonk I (Shishak na Bíblia) se aproveite desta fraqueza para saquear Jerusalém.
Por volta de 850 a.C. sucedem-se os saques por filisteus (o povo de onde derivará mais tarde o topónimo “Palestina”), árabes e etíopes. Mostrando que os judeus não precisam de lições de estrangeiros no que toca a pilhagens e massacres, Joás, rei de Israel, entra em conflito com Amassias, rei de Judá, derrota as tropas deste na batalha de Beth-shemesh, semeia a destruição em Jerusalém e apropria-se dos tesouros do Templo.
Os desentendimentos entre Judá e Israel prosseguem e levam Ahaz de Judá a solicitar a protecção de Tiglath Pileser III, o senhor do império Neo-Assírio (e com um nome que soa a banda de doom metal lituana ou marca de cerveja artesanal eslovaca). Os assírios começam por aceitar a vassalagem, mas não tardam a passar à conquista de boa parte do Médio Oriente, e Israel e Judá não escapam à sua ambição.
701 a.C.
O rei assírio Sennacherib sitia Jerusalém mas não a conquista. Existem, consoante a fonte seja hebraica ou assíria, explicações tão contraditórias para este desfecho que funcionam como uma advertência para que encaremos com a maior desconfiança os relatos que nos chegaram da Antiguidade – muitos “factos históricos” sobre os quais alguns povos baseiam hoje reivindicações e crenças não passam de fraudes descaradas, criadas para efeitos de propaganda.
Se dermos crédito à Bíblia, em 701 a.C. Deus enviou em socorro de Jerusalém um anjo que matou 185.000 soldados assírios; se dermos crédito aos anais de Sennacherib, este levantou o cerco depois de Ezequias, rei de Judá, encurralado na cidade “como um pássaro na gaiola”, ter pago um resgate de “30 talentos de ouro, 800 de prata e diversos tesouros”.
A verdade pode estar entre estes dois extremos: talvez o levantamento do cerco tenha resultado de Ezequias ter empreendido prudentes preparativos, assegurando a abastecimento de água à cidade através da escavação de um túnel de meio quilómetro e eliminando, à aproximação dos assírios, todas as fontes de água no exterior; ou, como acontecia frequentemente até há não muito tempo, o deflagrar de uma epidemia no acampamento sitiante pode ter forçado Sennacherib a regressar a casa.
609 a.C.
Partem os assírios, regressam os egípcios. O faraó Necao II, que pretende fazer face aos babilónios, uma potência emergente no sempre agitado cenário geopolítico do Médio Oriente, solicita a Josias, rei de Judá, que deixe passar as suas tropas, mas Josias recusa e Necao II derrota-o na batalha de Meggido. Meggido justifica um aparte: é um povoado de modesta relevância, no vale de Jezreel, mas a topografia da região faz dele um ponto de passagem muito frequentado, de forma que várias batalhas foram aí travadas ao longo da história; a dar crédito ao Livro do Apocalipse, terá também aí lugar, no fim dos tempos, a batalha definitiva, entre Deus e os exércitos de pecadores comandados por Satanás, ou seja, o Armagedão – nome derivado de Har Meggido.
Em Jerusalém, os novos senhores egípcios removem Joacaz, filho do falecido Josias, e colocam no trono de Jerusalém o seu irmão Joaquim. Porém, quatro anos depois, Necao II é derrotado pelo rei babilónio Nabucodonosor II (Nebuchadnezzar) e Jerusalém transfere para este a sua vassalagem.
586 a.C.
A submissão de Judá aos babilónios não dura muito tempo: o fracasso retumbante da tentativa de invasão do Egipto por Nabucodonosor II estimula alguns dos seus vassalos a rebelar-se – é o caso de Judá, cujo rei Joaquim cessa o pagamento do tributo. O profeta Jeremias, seu conselheiro, adverte-o de que não será uma boa ideia e reprova os desvios do rei às tradições judaicas e Joaquim riposta queimando em público os escritos do profeta. As advertências eram justificadas: em 598 a.C., Nabucodonosor sitia Jerusalém, Joaquim perece e a cidade cai em 597 a.C. Jeconias sucede a Joaquim, mas poucos meses depois Nabucodonosor substitui-o pelo tio, Zedequias. Em 589 a.C. este alia-se com os egípcios contra os babilónios e Nabucodonosor regressa em força. O cerco à cidade foi longo e impiedoso: há indícios arqueológicos de que a população passou a alimentar-se de ervas e o relato de Jeremias sugere mesmo que os sitiados se viram forçados a recorrer ao canibalismo.
[O segundo cerco babilónio a Jerusalém visto por Alessandro Scarlatti: na ária “Del mio cor più segreto”, da oratória Il Sedecia, re di Gerulasemme (1705), Ismaele, filho de Sedecia (Zedequias), antevê o futuro funesto que lhe está reservado. Interpretação do contratenor Philippe Jaroussky e Il Seminario Musicale, dirigido por Gérard Lesne (Virgin Classics/Warner)]
Em 586 a.C., após 30 meses de cerco, a cidade cai e Nabucodonosor, abespinhado pela sucessivas rebeliões dos judeus e pelo cerco prolongado, dá largas à sua cólera: faz degolar todos os filhos de Zedequias perante os olhos deste; é a última coisa que Zedequias vê, pois em seguida é cegado e levado cativo para Babilónia, onde perecerá. A maior parte da população de Jerusalém que sobreviveu ao cerco e aos massacres é também deportada para Babilónia – as estimativas variam entre 10.000 e 20.000 condenados ao exílio. A cidade é pilhada e o Templo de Salomão é arrasado.
A recordação do cativeiro na Babilónia está envolto em mágoa – “Junto aos rios da Babilónia estávamos sentados e chorando, lembrando-nos de Sião. Nos salgueiros das margens pendurámos as nossas harpas” – mas não teve apenas aspectos negativos, pois foi aí que o moderno alfabeto hebraico foi adoptado e vários textos sagrados hebraicos terão sido redigidos, denotando influências das religiões e mitologias dos povos da Babilónia e da Pérsia. Como escreve Simon Sebag Montefiore em Jerusalém: A biografia (Alêtheia) “foi aqui que a Bíblia começou a tomar forma”.
539 a.C.
Mais uma reviravolta no instável tabuleiro geopolítico do Médio Oriente: o rei persa Ciro derrota o rei babilónio Nabonido. Ao contrário dos assírios e babilónios, que alicerçavam os seus impérios exclusivamente na opressão e no terror, Ciro oferece tolerância religiosa como contrapartida da aceitação do domínio político. Assim, liberta os judeus exilados em Babilónia e autoriza-os a regressar a Jerusalém e reconstruir o Templo e compromete-se a respeitar os seus direitos e leis. Não é de admirar que Ciro goze de excelente reputação entre os judeus, mas seria um erro clamoroso vê-lo como um monarca bondoso e tolerante: quando foi morto em 530 a.C., quando pretendia anexar ao seu império o território dos Massagetas (actual Cazaquistão), o líder massageta Tomiris cortou-lhe a cabeça e guardou-a num recipiente cheio de sangue, como se dissesse “aí tens com que saciar a tua sede pelos territórios dos outros povos”.
Nem todos os judeus exilados regressaram a Jerusalém: os que ficaram em Babilónia formaram uma comunidade tão sólida e influente que resistiu às constantes mudanças políticas e religiosas da região e que constituiu “até à invasão mongol, […] um centro de cultura e poder judaico quase tão importante como Jerusalém” (Montefiore).
516 a.C.
Os que regressaram a Jerusalém fizeram-no em várias levas – uma delas foi liderada por Zorobabel, neto do último rei de Judá e nascido na Babilónia (é isso mesmo que o nome “Zorobabel” significa). É ele que, em 516 a.C., no reinado do imperador persa Dario I, empreende a construção do Segundo Templo – a sua consagração, no ano seguinte envolveu o sacrifício de 100 touros, 200 carneiros e 400 cordeiros, mas a imponência destas cerimónias não oculta a realidade: o novo templo era uma pálida amostra do anterior e Jerusalém continuava a ser uma cidade em ruínas e semi-despovoada.
Quaisquer melhoras que possa ter registado são anuladas em 350 a.C., quando a cidade se rebela contra o domínio persa e Artaxerxes III a toma de assalto e incendeia e procede à deportação dos revoltosos, desta vez para as remotas estepes da Hircânia, junto ao Mar Cáspio.
332 a.C.
Um rapaz macedónio, com apenas 24 anos de idade mas ambição e determinação ilimitados, obtém, sem grande esforço, a rendição de Jerusalém. Alexandre III está empenhado em apoderar-se de todo o império de Dario III, o que inclui o Egipto – e é no caminho para o Egipto que entra em Jerusalém. Mas, tal como Ciro, pouco impõe aos judeus para lá do domínio político, e logo parte para Oriente, na peugada de Dario III e dos seus sonhos de glória.
320 a.C.
Os sonhos de Alexandre são interrompidos pela morte, em 323 a.C., e as disputas que eclodem entre os seus lugares-tenentes pela partilha do seu vasto império convertem-se numa interminável fonte de conflitos, a que não escapa Jerusalém, que, à partida, ficaria, como toda a Síria, sob o governo de Laomedonte de Mitilene.
Outro dos “sucessores de Alexandre”, Ptolemeu I, cobiça a Síria para si: propõe-se comprá-la a Laomedonte, mas este recusa e Ptolemeu envia um exército, comandado por Nicanor. Em 320 a.C. este general conquista Jerusalém à má-fé: alega querer oferecer um sacrifício ao Deus dos judeus durante o Sabbath, mas assim que se vê dentro da cidade assume o seu controlo com rapidez e brutalidade. À pilhagem e às violações soma-se a deportação de judeus para Alexandria – o que, como no caso do exílio em Babilónia, também tem consequências positivas: a comunidade judaica de Alexandria converter-se-á num dos mais importantes centros de erudição judaica do Próximo Oriente.
200 a.C.
Não dura muito tempo o domínio de Ptolemeu I: em 315 a.C. o seu rival Antíoco I Monophthalmus (em grego tudo soa mais nobre e venerável: em português é “Antíoco o Zarolho”), invade a Síria e força Ptolemeu a recuar. Durante mais de um século, Jerusalém vai ser sucessivamente conquistada e reconquistada pelas dinastia dos Ptolemeus e dos Antíocos, até que em 200 a.C., Antíoco III o Grande – à frente do que é agora conhecido como Império Selêucida (por ter sido fundado por Seleuco I Nicator, um dos “sucessores” de Alexandre) – escorraça os Ptolemeus para o Egipto e toma conta de Jerusalém. Antíoco III mostra-se magnânimo: “prometeu reparar o Templo e as muralhas e repovoar a cidade” (Montefiore) e autorizou que os judeus se regessem pelas suas leis – “nunca Jerusalém conheceu conquistador tão indulgente quanto este” (Montefiore).
167 a.C.
O mesmo não pode dizer-se do seu filho Antíoco IV Epifânio, que sucede ao pai em 175 a.C. e aproveita querelas familiares entre o sumo-sacerdote Onias III e o seu irmão Jasão, para destituir o primeiro e elevar o segundo a sumo-sacerdote de Jerusalém (é substituído três anos depois por Menelau). O desígnio de Antíoco IV Epifânio é a anulação da identidade judaica: Jerusalém é convertida numa polis grega, com o nome de Antioquia-Hierosolyma; o Templo é ultrajado com carne de porco e reconsagrado a Zeus e na colina fronteira é construído um ginásio grego para os jovens se exercitarem nus; a posse da Tora é punida com a morte; as mães que circuncidam os filhos são atiradas das muralhas, juntamente com as crianças; quem observa o Sabbath é queimado vivo.
Quando, em 167 a.C., um alto funcionário selêucida ordena ao sacerdote Matatias que sejam feitos sacrifícios em honra dos deuses gregos, aquele não só se recusa a cumprir a ordem como mata um judeu helenizado que se ofereceu para o fazer, bem como o representante de Antíoco. É a centelha que desencadeia a Revolta dos Macabeus que, em 164 a.C. toma conta de Jerusalém, para a perder novamente para os selêucidas em 160 a.C., ano em que é morto Judas Macabeu e cessa a revolta.
63 a.C.
O império selêucida entra em declínio e começa a ver a primazia na região disputada pelos partos e pelos romanos, o que, aliado a guerras fratricidas entre príncipes selêucidas cria um vácuo de poder que permite a emergência de um reino judeu independente – é o início da dinastia dos Asmoneus, que, todavia, também é dilacerada por conflitos intestinos.
O poder romano vai estendendo-se ao Próximo Oriente: em 63 a.C. Pompeu cerca Jerusalém e é mais um dos conquistadores a usar a deslealdade de atacar durante o Sabbath. No massacre que se segue terão morrido 12.000 judeus, mas, ao menos, Pompeu abstém-se de saquear os tesouros do Templo.
Em 40 a.C., Roma nomeia como rei dos judeus Herodes o Grande, que empreende importantes obras em Jerusalém e reconstrói o Templo, suplantando amplamente a modesta construção erigida por Zorobabel.
6 d.C.
Roma põe fim ao estatuto de estado-vassalo do reino asmoneu (embora continuem a existir reis asmoneus, com poderes limitados, até 92 d.C.) e converte a Judeia numa província, com capital administrativa na nova cidade de Cesareia Palestina (ou Cesareia Marítima) e não em Jerusalém, e colocada na dependência do governador da Síria. A reforma fiscal imposta por Públio Sulpício Quirino, o novo governador romano da Síria, gera revolta entre os judeus – é sufocada, mas dela nasce o movimento dos zelotas, grupo radical apostado em expulsar os romanos da Judeia.
c. 33 d.C.
No Domingo de Ramos, um pregador radical galileu – que alguns estudiosos associam hoje aos zelotas –, que em ocasião anterior já gerara um tumulto no Templo, entra em Jerusalém montado num burro e acompanhado por discípulos que o saúdam como “Messias” e “Rei de Israel”. Os sumos-sacerdotes vêem uma séria ameaça neste agitador que anuncia o apocalipse iminente e contesta a sua autoridade e as tradições religiosas judaicas, o que é tanto mais perigoso por ser Páscoa e, portanto, Jerusalém estar inundada de milhares de peregrinos judeus vindos de todo o Próximo Oriente. Após várias peripécias, conseguem que o governador romano da cidade, Pôncio Pilatos, o faça crucificar.
c. 50 d.C.
Os discípulos do pregador crucificado reúnem-se em Jerusalém, a fim de decidir o que fazer com o legado espiritual do seu mestre. Neste concílio está também presente Paulo de Tarso, que, após uma experiência traumática, se consagrou de corpo e alma à divulgação de uma interpretação muito própria dos ensinamentos do pregador crucificado, o que o faz entrar em conflito com os discípulos directos, que têm uma visão mais ortodoxa.
É impossível aferir o que realmente se terá passado entre as duas “facções”, pois a única versão que sobreviveu sobre estes eventos foi a de Paulo – o quer dizer que nunca saberemos se o pregador crucificado se reconheceria nos ensinamentos difundidos por Paulo.
O que é certo é que na altura Paulo está longe de reunir o consenso entre os judeus: c. 58 d.C., Paulo regressa a Jerusalém e vai ao Templo na companhia de Tiago o Justo, irmão de Jesus e primeiro bispo de Jerusalém, mas alguns judeus que não se identificam com as suas pregações reconhecem-no e atacam-no e apenas a intervenção dos soldados romanos o salva de ser linchado pela turba.
Poucos anos depois – c.62-66 d.C. – o sumo-sacerdote Anano, filho do Anás que tinha condenado Jesus à morte, manda prender Tiago o Justo e fá-lo condenar pelo Sinédrio: Tiago é atirado do alto do Templo, mas como a queda não o mata, passam a apedrejá-lo, até que um espírito mais expedito o despacha com um golpe de maço na cabeça.
66 d.C.
Em 66 d.C., em Cesareia, capital da Judeia, um grupo de gregos sacrifica um galo junto à entrada da sinagoga, um acto que, na óptica judaica, torna o edifício “impuro”. A provocação causa o efeito pretendido: a ira dos judeus.
Estes apelam para a intervenção romana, mas o procurador imperial para a Judeia, Géssio Floro, a quem os gregos subornam, recusa-se a intervir. Em represália, os sacerdotes judeus anunciam que deixarão de executar sacrifícios e orações em prol do imperador romano. Aos agravos de ordem religiosa somam-se agravos de ordem tributária, quando Floro invade o Templo e subtrai ao seu tesouro dinheiro que diz ser devido a Roma. Os judeus retaliam bombardeando Floro com moedas nas ruas de Jerusalém e Floro exige às autoridades judaicas que os responsáveis lhe sejam entregues. Perante a recusa, os soldados romanos prendem alguns líderes judeus: uns são açoitados e outros crucificados. Apesar da tentativa de intermediação pela parte de Berenice, irmã do rei Herodes Agripa, a escalada de violência prossegue: os judeus pegam em armas, chacinam a guarnição romana de Jerusalém e depois dedicam-se a limpar a Judeia de cidadãos romanos, judeus suspeitos de simpatizar com os romanos e símbolos da autoridade romana.
Tudo isto, é bom ter presente, começou com a morte de um galo.
70 d.C.
O imperador Nero encarrega Vespasiano de reprimir a revolta judaica, mas em 68 d.C. é o próprio Nero que se vê a braços com várias revoltas, e acaba por ter um fim patético (uma espécie de “suicídio assistido”, pois não teve coragem para o acto e alguém teve o fazer por ele). Vespasiano aspira à sucessão de Nero e dirige-se apressadamente para Roma, onde Vitélio tenta apoderar-se do trono, e deixa a cargo do seu filho Tito a conclusão da campanha da Judeia. Tito cerca Jerusalém durante sete meses e, apesar da ferocíssima resistência dos zelotas, acaba por triunfar. A cidade é incendiada, o Templo é arrasado, os tesouros do Templo são saqueados e os líderes judeus são presos e levados para Roma, onde figuram numa procissão triunfal que tem como corolário a sua execução.
132-136
Poderia pensar-se que esta punição brutal poria termo às insurreições judaicas, mas em 115-117 eclodem tumultos sangrentos, desta vez entre os judeus da diáspora, na Cirenaica e em Chipre. Em 130, o imperador Adriano visita Jerusalém, ou o que resta dela, e decide apagá-la da história: no seu lugar será erigida Élia Capitolina, cidade consagrada ao culto de Júpiter, inspirada nos planos de helenização de Antíoco IV Epifânio e onde não há lugar para o judaísmo: a circuncisão é proibida sob pena de morte.
Adriano tem reputação de homem sábio mas é óbvio que subestima os judeus: em 132 a Judeia volta a inflamar-se com a revolta de Simão bar Kokhba, aclamado como Messias. Simão assume o controlo de Jerusalém durante três anos mas as 12 legiões enviadas para o combater acabam por prevalecer: “foram muito poucos os que sobreviveram, 50 fortalezas e 985 aldeias foram queimadas, 585.000 mortos no campo de batalha”, não contando com os que morreram “de fome, de doenças e pelo fogo”, conta o historiador Dião Cássio. “Foram tantos os judeus reduzidos à escravatura, que valiam menos do que um cavalo no mercado de escravos de Hebron” (Montefiore).
Toda esta destruição não basta a Adriano: os judeus e os cristãos são expulsos de Élia Capitolina e proibidos de aproximar-se sequer da cidade, sob pena de serem executados. O Monte do Templo ganha um templo de Júpiter, o Calvário um templo de Vénus. A Judeia passa a chamar-se Palestina.
326
Em 324, Constantino, o primeiro imperador romano a converter-se à fé cristã, desembaraça-se do seu último rival e torna-se no senhor absoluto de Roma. Em 313, Constantino já promulgara o Édito de Milão, que permitia o culto do cristianismo, e em 325 convoca o Concílio de Niceia, que vai ter um papel padronizador no que era então uma fé com incontáveis variantes, ramificações e dissidências.
Constantino levanta as restrições à entrada de cristãos em Jerusalém, o que desencadeia um afluxo de emigração cristã para a cidade, muito reforçada pela visita da octogenária imperatriz viúva Helena, mãe de Constantino, que pode ser vista como pioneira do turismo religioso.
A visita de Helena a Jerusalém reverte o trabalho de supressão do passado empreendido por Adriano: o templo de Vénus no Calvário é demolido e, numa série de afortunadíssimas coincidências (se não as lermos como panfletos de propaganda cristã, confeccionados a posteriori), Helena “descobriu” uma infinidade de locais e relíquias sagradas: o túmulo de Jesus, o local exacto da crucificação, a própria cruz (mais as duas dos “ladrões”) e os respectivos pregos, a Santa Túnica. Num ápice, Jerusalém vê nascer a Basílica de Eleona, no Monte das Oliveiras (333), assinalando o local da Ascensão, e a Igreja do Santo Sepulcro (335). Entretanto, apesar da provecta idade, Helena faz questão de visitar todos os locais associados com a vida de Jesus – nos anos seguintes o roteiro irá atrair multidões de peregrinos e o turismo religioso de massas dará nova vida a Jerusalém à Palestina. O sector da hotelaria e restauração prospera, o comércio de relíquias fervilha.
361
Breve interlúdio: o imperador Juliano o Apóstata, que não professa a fé cristã, permite aos judeus o regresso a Jerusalém e a reconstrução do Templo.
614
Desde o início do século IV que o império sassânida, herdeiro do império parta, que por sua vez era herdeiro do império persa, se afirmara como uma das potências (“players”, como hoje sói dizer-se) do Médio Oriente. Cosroe I (Khosrau) que subiu ao trono em 531 obteve tais sucessos militares que em 532 o imperador bizantino Justiniano I se viu forçado a pagar-lhe uma fortuna pela “paz eterna”. A “eternidade” durou só até 540 e durante os anos seguintes bizantinos (o Império Romano do Oriente) e sassânidas digladiaram-se em guerras quase incessantes, com sucessivos avanços e recuos. Porém, a partir do início do século VII, com o sha Cosroe II, a maré está, genericamente, a favor dos sassânidas.
Em 614, os sassânidas, sob o comando do general Shahrbaraz e aliados aos judeus (que se tinham revoltado contra o domínio bizantino), tomam Jerusalém. Incendeiam a Igreja do Santo Sepulcro, massacram a população cristã, prendem o patriarca cristão e apoderam-se das relíquias cristãs. Shahrbaraz nomeia Neemias, o líder dos insurrectos judeus, como governador da cidade e este empenha-se em construir um novo templo (o terceiro) e em vingar anos de repressão dos judeus às mãos dos cristãos. Dedica-se a esta última tarefa com tal zelo que os cristãos se revoltam e lincham numerosos judeus, Neemias incluído. Os judeus sobreviventes vão pedir ajuda a Shahrbaraz, que reconquista a cidade; porém, os sassânidas acabam por concluir que os cristãos são a força dominante em Jerusalém, pelo que lhes confiam o governo da cidade e expulsam os judeus.
637
Após séculos de atrito entre sassânidas e bizantinos, os dois impérios estão completamente extenuados e criou-se um vazio de poder, que irá ser aproveitado por um novo actor, que tinha até então estado relegado a um discretíssimo papel. A Blitzkrieg árabe alastrou pelo Médio Oriente e Norte de África com velocidade fulgurante, infligindo espectaculares derrotas aos desgastados exércitos sassânidas e bizantinos. Em 637, Jerusalém é tomada pelos árabes, comandados pelo califa Omar I o Grande, mas este garante liberdade de culto aos não-muçulmanos.
Para o Islão, Jerusalém não é apenas mais uma conquista – é a sua terceira cidade santa, após Meca e Medina, o que poderá parecer absurdo, uma vez que Maomé (c.570-632) nunca esteve na cidade nem sequer se aproximou da Palestina. Porém, em 620, Maomé teve uma visão em que terá feito uma viagem nocturna, montado num corcel alado, que o terá levado a um “santuário longínquo” e ao Céu e ao Inferno e em que terá encontrado Adão, Abraão, Moisés e Jesus. O Corão apresenta esta experiência – conhecida como Isra e Miraj – como uma visão e não explicita onde fica o “santuário longínquo”, mas surgiram – e prevaleceram – interpretações que proclamam que o Isra e Miraj terá sido uma experiência física e que o “santuário longínquo” era Jerusalém.
A escolha de Jerusalém, situada 1200 Km a noroeste de Meca e Medina, parecerá descabida para quem veja o Islão como uma religião criada ex nihilo na Península Arábica, como pretendem as biografias do Profeta. Porém, os pontos de contacto do islamismo com o judaísmo e o cristianismo são tantos que “não será certamente absurdo perguntar como se explica que figurem no Corão tantas personagens bíblicas. Uma resposta possível é que Maomé tivesse absorvido influências judaicas e cristãs durante as viagens de negócios que fez à Síria; ou então que, a despeito do que nos dizem as fontes muçulmanas, houvesse em Meca colónias florescentes de judeus, de cristãos, ou de ambos”, argumenta Tom Holland em Sob o signo da espada.
Na verdade, dez anos antes da visão/viagem nocturna de 620, Maomé estipulara o Monte do Templo em Jerusalém como ponto de referência para onde os crentes deveriam orientar-se nas suas orações, instrução que foi corrigida em 624, passando Meca a ser a referência primordial.
661
Em 661, o Monte do Templo é o local escolhido pelos líderes islâmicos para um concílio destinado a decidir a nomeação de um sucessor para o quarto califa, Ali, genro do Profeta, assassinado nesse ano em Kufa. O eleito é Muawiyah ibn Abi Sufyan, que ficará para a história como Muawiyah I. Embora estabeleça a sua sede em Damasco, tudo faz para realçar o papel de Jerusalém e, em particular, do Monte do Templo, que designou como “terra da reunião e da ressurreição no Dia do Juízo”. “A zona que fica entre os dois muros desta mesquita é mais cara a Deus do que toda a terra”, declarou.
691
O califa Abd al-Malik conclui a construção da Cúpula da Rocha, no Monte do Templo, empresa que consumiu sete anos de rendimentos da província do Egipto. “A Rocha assinala o local onde ficava situado o Paraíso de Adão, o altar de Abraão, o sítio onde David e Salomão fizeram os planos para o Templo, por onde Maomé viria a passar na sua Viagem Nocturna” (Montefiore).
Não é de estranhar que as disputas religiosas que persistem em torno de Jerusalém no século XXI: judaísmo, cristianismo e islamismo são três irmãos siameses que estão unidos por Jerusalém
[A segunda parte deste artigo é publicada este domingo]