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José Cardoso Pires. E que tal começarmos a ler escritores a sério?

Em menos de duas décadas José Cardoso Pires passou de escritor genial a escritor esquecido. Num país que se dá ao luxo de apagar os seus grandes espíritos, a Relógio D'Água avança com a sua reedição.

Quando comecei a estagiar na secção de Cultura do Diário de Notícias, chefiada pelo carismático Albano Matos, uma das primeiras coisas que ele me perguntou foi: o que é que já leste do Cardoso Pires? E eu, querendo impressionar, desconversei: ando a ler Séneca. “Séneca?”, cuspiu com ironia, “qual Séneca? Lê o Cardoso Pires. Está lá tudo.”

Durante anos falámos dessa coisa para ele “criminosa” que era a D. Quixote não ter disponíveis as obras de Cardoso Pires. Por vezes, telefonava mesmo para a editora a fim de saber se havia novidades, e depois vociferava: “acho que aquele gajo que me atendeu o telefone nem deve saber quem é o Cardoso Pires”. Albano Matos, um dos homens mais cultos que conheci, morreu em Fevereiro e já não terá a grande alegria de ver esta semana a obra do seu “José” começar a ser reeditada pela Relógio D’Água.

O escritor José Cardoso Pires na década de 90

O escritor José Cardoso Pires na década de 90

“Para já são quatro volumes, as obras que consideramos nucleares: Anjo Ancorado, O Delfim, A Balada da Praia dos Cães e De Profundis,Valsa Lenta, prefaciadas por autores que nunca tinham escrito sobre Cardoso Pires. Mas gostava de editar mais coisas”, explica, ao Observador, Francisco Vale da editora Relógio D’Água.

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“Seria difícil ter havido o Saramago sem ter havido o Cardoso Pires. Ele foi o pioneiro do que pode ser designado como a 'nova ficção portuguesa'."
Helder Macedo

Nesses anos, a secção de Cultura do DN tinha na parede uma enorme fotografia de José Saramago tirada na altura em que ganhou o prémio Nobel. Albano Matos, para quem um bom jornalista aprendia a escrever com Cardoso Pires, gostava de injuriar Saramago chamando-lhe “Zé de Lanzarote”, nunca se tendo conformado que este prémio não tivesse sido dado ao outro José.

Helder Macedo, antigo professor no King’s College em Londres (onde Cardoso Pires esteve como escritor residente entre 1969 e 1971), afirma ao Observador: “Seria difícil ter havido o Saramago sem ter havido o Cardoso Pires. Ele foi o pioneiro do que pode ser designado como a ‘nova ficção portuguesa’, combinando depuração estilística, análise aprofundada de personagens e realismo social. O Cardoso Pires limpou os estereótipos do neo-realismo. Beneficiou do surrealismo (passou pelo Café Herminius, do primeiro Grupo Surrealista, frequentado pelo António Maria Lisboa, o Cesariny, o O’Neill,) e isso nota-se nas suas justaposições estilísticas e conceptuais.”

O Anjo Ancorado, novela de 1958

“O Anjo Ancorado”, novela de 1958, na nova edição da Relógio D’Água

A verdade é que, por mais importância que tenha tido, Cardoso Pires morreu em 1998, a memória é curta, e nestas duas décadas o panorama literário em Portugal mudou radicalmente. Tínhamos o Cardoso Pires, o Saramago, a Agustina, e agora temos o José Luís Peixoto, o Valter Hugo Mãe, o João Tordo e mais o rol de de prémios Leya cujo nome já esquecemos.

Temos a literatura paga a milhões num país colapsado, o mito imbecilizante do “está na televisão é porque é bom”, pronto a fabricar génios literários todos os meses. Temos um país de universitários, mestres, doutorados e políticos para quem o livro se tornou um objecto simbólico de status quo, mas cujo nível de literacia não passa o grau zero da literatura que são José Rodrigues dos Santos, Helena Sacadura Cabral ou os bestsellers internacionais.

As editoras transformaram-se em empresas geridas para dar lucro financeiro e não cultural, e são geridas por pessoas que não fazem a menor ideia de quem foi Homero, Tolstói ou Dostoiévski, e que não sabem, portanto, que a literatura não é aquilo que se imprime em papel, mas, sim, aquilo que resulta do esforço heróico do Homem para dar sentido ao caos — e que é nela, e através dela, que se ilumina o que fomos aprendendo sobre a natureza humana.

“Como pudemos esquecer Cardoso Pires?”, perguntava-me tantas vezes o Albano Matos. “Como nos podemos dar ao luxo de ignorar um escritor da grandeza de Cardoso Pires?”, pergunta Francisco Vale da Relógio D’Água.

"A saída do Nelson de Matos foi o prenúncio de uma nova era na D. Quixote. Pensámos que, se o Zé fosse vivo, teria saído com ele."
Ana Pires

Ana Pires, filha do escritor, que neste momento está a viver em Timor, explica mais ou menos o que aconteceu:

“A saída do Nelson de Matos foi o prenúncio de uma nova era na D. Quixote. Pensámos que, se o Zé fosse vivo, teria saído com ele. Mas evito quanto possível as tomadas de decisão (sobre assuntos de outros) de cabeça quente. Depois, veio uma daquelas datas redondas, como agora os 90 anos de idade. E voltou-se a falar do Zé, com mais uns livros editados. Nós, as herdeiras, também tínhamos as vidas com solicitações várias e fomos deixando correr o marfim.

Quando nos preparávamos para tomar finalmente pulso à edição dos livros, já na Leya, o dr. João Amaral manifestou um empenho… de editor clássico – paixão pela obra, tristeza em perder o autor, abertura para uma nova vida aos livros. E propôs-nos um contrato com planos de marketing e imenso dinheiro para gastar na promoção de cada título. Mesmo muito dinheiro! Bati-me para que não fizessem uma edição tipo “Obras Completas”, que tratassem os livros em novos contextos. Não: naquele momento a coqueluche eram os livros de bolso. Mas havia aquele programa de festas, aberto a melhoramentos, e dinheiro para fazer coisas diferentes.
De tudo aquilo, resultou uma única actividade, chamemos-lhe assim, ainda por cima sobre livros que nem estavam editados… Em 2014, o contrato expirava e rescindimos.”

O Delfim

“O Delfim”, romance de 1968. Capa da Relógio D’Água, 2015

À agência Lusa, o editor João Amaral, das Publicações D. Quixote, que detinha os direitos da obra de Cardoso Pires, confirmou a saída do autor do seu catálogo, por decisão das herdeiras.“Fiz tudo o que podia fazer pela obra de Cardoso Pires, e é um autor em que nada me pesa na consciência”, disse. “As herdeiras escolheram outra editora”, afirmou, acrescentando que estas tiveram em conta a edição em formato de livro de bolso da obra do autor, que “foi uma experiência que não correu bem”. “Os títulos mais conhecidos de Cardoso Pires venderam, os outros nem tanto”, referiu.

Apesar do fatalismo de João Amaral, Ana Pires confirma que houve outras editoras interessadas nos direitos de autor das obras:

“Fui abordada pelo Manuel Alberto Valente, da Porto Editora, para nova edição de ‘Obras Completas’. Mas manifestei à família o desejo de fazer coisas mais arrojadas, em alguns títulos. A Relógio D’Água apresentou-se com um plano claro, sem rodriguinhos – há três meses! Um email dizia, basicamente, que queria empenhar-se na divulgação dos livros e da obra, avançava algumas ideias, alguns nomes. Não batalhou pela obra completa. E os livrinhos aí estão. Com prefácios de escritores que ainda não tinham sido chamados a prefaciar o Cardoso Pires e que apraz ouvir como lêem cada uma das obras. Já pediu mais um, já lhe foi cedido.”

O Observador confirmou ainda junto da editora Abysmo, a saída, em Outubro, de Lisboa, Livro de Bordo, com ilustrações de Carlos Botelho, e ainda um conto, Celeste e Lalinha, ilustrado por Rita Cardoso Pires, filha do autor.

E agora José?

“Aos cinquenta anos dei por mim a fumar ao espelho e a perguntar ‘E agora, José?’. Fumar ao espelho, qualquer José sabe isso, é confrontarmo-nos com o nosso rosto mais quotidiano e mais pensado. Por trás, em fundo, tem-se um cenário do presente imediato (a porta do quarto, um cabide vazio) mas esse presente, logo à segunda fumaça já é passado (a porta desfez-se, o cabide voou) e tanto mais passado quanto mais mergulhamos no cigarro. O olhar envelheceu, foi o que foi.”

Retrato a óleo de José Cardoso Pires (Júlio Pomar, 1954)

Retrato a óleo de José Cardoso Pires (Júlio Pomar, 1954)

Em 1977, José Cardoso Pires pegou no poema do poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade “E agora José?” e usou-o como título do seu livro de ensaios, onde ele escreve, entre outros, o Auto-Retrato que citámos em cima. Um texto precioso de amargura e ironia porque, tal como tinha visto a revolução a acontecer por dentro das pessoas em O Delfim (1968), também agora era um dos primeiros a ver que a revolução tinha desacontecido:

“Agora, aqui, ali, há sempre um José a fumar diante do espelho do país dos vinte capitães (…) mas José é José. Entre outras coisas adivinha que o querem despir de passado para que não reconheça o presente que lhe enviam pelas costas, defende-se (…) Com toda a sua obstinação, sua memória, seu mau perder, alonga-se no cigarro e não desarma (…) O Pessoa de mau feitio a agourar que ‘fizemos uma revolução para implantar uma coisa igual ao que estava, que ficámos os mesmos disciplinados que éramos antes e tal e coisa e coisa e tal (…) Os censores? Não te preocupes. Não te ouvem por enquanto, têm outras vidas. De resto quem te ouve? Quem dá crédito à tua liberdade? Vamos fuma José. Pensa bem esse cigarro (…) Olha é entardecer. E está tão claro (…) É este homem que te contempla, José. Que te fuma. Que te duvida.”

Romance "A Balada da Praia dos Cães" de 1982. Capa da Relógio D´Água

Romance “A Balada da Praia dos Cães”, de 1982. Capa da Relógio D’Água

É neste José a contemplar José, numa solidão inescapável — mesmo para ele, homem da boémia, contador de histórias, de gargalhadas inesquecíveis –, que Cardoso Pires escreveu toda a sua obra. Dez livros ao todo. Ele e as suas personagens sempre no fio da navalha, na linha de fronteira, que é o mais violento dos lugares, avesso ao romantismo neo-realista, ao sentimentalismo, a escrita seca, depurada, com a máquina de apagar sempre à espreita.

Ele e as suas personagens feitas para destruir os mitos portugueses que os nossos governantes, tendencialmente conservadores, tanto gostam e onde voltam sempre. É este o país que quase o esqueceu ou o embrulhou nos currículos escolares, e achou que isso redimia todos os outros de fazerem alguma coisa. E há ainda aqueles que lhe colocam o rótulo de datado, como o escritor João Ricardo Pedro, em entrevista ao Jornal de Letras: “É verdade que são livros muito datados, cheios de referências exclusivas de uma determinada época, objectos que já ninguém usa, expressões que já não se utilizam, mas isso não diminui em nada a qualidade dos seus livros, bem pelo contrário.”

A intemporalidade tem sido sobrevalorizada. “E agora José, que me dizes tu a isto? Que a guerra de Tróia já não se usa e que os país das criancinhas não lhe põem o nome de Aquiles, que a aristocracia russa foi assassinada pelos bolcheviques e que, portanto, Tolstói está datado, que as mulheres se emanciparam e não há pachorra para os dilemas morais e os preconceitos sociais que mataram Anna Karenina. Bem vês José, a intemporalidade está sobrevalorizada, logo tu que não cessaste de escrever sobre uma realidade cheia de enigmáticos significados onde o humano se projectasse no seu devir porque nenhuma literatura se faz, nenhuma arte se faz sem essa aspiração à intemporalidade que é o mais próprio do humano.”

historiasdeamor

“Histórias de Amor”, livro de contos apreendido pela censura em 1952. Aqui numa reedição de 2008 nas Edições Nelson de Matos

A este propósito também questionámos Helder Macedo, o escritor que não cessou de nos mostrar a intemporalidade de Camões, mais dos seus naufrágios, amores, e meninas vestidas de “cinta de fina escarlata” e “sainho de chamalote”. É Cardoso Pires um escritor datado?

“Não. Mas corre o perigo de que aquilo que é ‘circunstancial’ na sua obra ser confundido com o ‘essencial’ pelos leitores apressados. Ele escreveu sobre o seu tempo e, ao fazê-lo, para quem o saiba ler, tornou o seu tempo tão intemporal quanto é, por exemplo, o tempo do Camilo Castelo Branco (escritor que, aliás, ele muito admirava, preferindo-o ao Eça). Em ficção (e também nalguma poesia) o circunstancial é um dos significantes (tal como o estilo) do intemporal. O Cesário Verde é um grande poeta não porque escreveu sobre Lisboa (a poesia do quotidiano…) mas porque com a Lisboa do seu quotidiano escreveu a intemporalidade.”

A ditadura dos “jovens e mediáticos escritores”

Nestas duas décadas, a literatura portuguesa enredou-se em si mesma no mito do “jovem escritor”, como se a juventude por si só fosse sinónimo de grandeza, de originalidade, de capacidade de fazer arte. Até José Saramago, que começou a escrever a sério quase aos 60 anos, criou um prémio para… jovens escritores.

Saramago não percebeu o seu tempo, não percebeu que vivemos precisamente aprisionados pela “cultura juvenil”, pela linguagem coloquial, pelo “cool”, que os jovens escritores nem lhes passa pela cabeça lerem Homero, ou Shakespeare, ou Joyce, ou Cardoso Pires (que foi quem lhes abriu as portas a esta linguagem moderna, coloquial, rápida e cinemática, que eles tanto valorizam). Não precisam porque o que quer que eles façam em termos literários vai ser sempre recebido como a oitava maravilha por uma crítica tão acéfala e inculta quanto eles.

E só agora, diz-nos Francisco Vale, “começa a haver uma geração de jovens mais exigentes e que quer ler sobretudo esses escritores e poetas da segunda metade do século XX”. O editor da Relógio D’Água espera que seja esse o público que vai redescobrir Cardoso Pires, cuja escrita, escreveu António Tabucchi, “é uma espécie de roer: roía as aparências para chegar à substância e acabava por verificar que muitas vezes as aparências são a substância”.

De profundis, Valsa Lenta, crónicas escritas em 1997 depois de ter sofrido o primeiro AVC. Capa da Relógio D'Água

“De Profundis, Valsa Lenta”, crónicas escritas em 1997 depois de ter sofrido o primeiro AVC. Capa da Relógio D’Água

Mas por detrás desta reedição de Cardoso Pires há uma história feia, de livros abandonados, guilhotinados, porque as editoras caíram em mãos de gente que sob a máscara da cultura quer apenas ganhar dinheiro. Ana Pires contou ao Observador por onde andaram os livros do seu pai nestes anos em que não se encontravam em lado nenhum:

“Pouco depois de o Nelson de Matos ter saído da D. Quixote, com as reestruturações havidas, sei que houve uma destruição de livros e, pior, de espólio. Havia provas revistas pelo punho de grandes homens das nossas letras, do tempo da fundação da editora, que foram arrolados para a fogueira." 
Ana Pires

“Pouco depois de o Nelson de Matos ter saído da D. Quixote, com as reestruturações havidas, sei que houve uma destruição de livros e, pior, de espólio. Havia provas revistas pelo punho de grandes homens das nossas letras, do tempo da fundação da editora, que foram arrolados para a fogueira – não sei se literal, se figurada, porque estou a ver mal quem faz esse tipo de coisas não pensar nos cifrões da venda de papel a peso. Sei de fonte limpa que foi uma decisão administrativa, executada sem pudor. Há alguns salvados desse crime, porque havia ‘trabalhadores braçais’ com mais amor às letras do que os gestores. Não me constou que houvesse livros do Cardoso Pires entre eles. Ou, pelo menos, não foram todos.

Quando deixámos a Leya, solicitei ao dr. João Amaral que nos concedesse a possibilidade de distribuirmos gratuitamente os ‘restos de colecção’ a pessoas e instituições que se propusessem dar-lhes uso. E ele foi impecável. Semanas depois, tínhamos uma garagem atulhada de caixotes de edições várias e de praticamente todos os títulos! ‘Lisboa, livro de bordo’ em álbum, primeiras edições… Neste momento, já só há uns exemplares de dois ou três títulos, que estão em vias de vir para Timor, se se concretizar uma dádiva mais avultada de exemplares não vendidos de outra editora (…)

Se as livrarias deixaram de ter stocks e passam a dizer sistematicamente que os livros estão esgotados, porque têm problemas de acertos de contas com os editores – imagine-se o que acontece a escritos de autores já falecidos. Não foram só os livros do Cardoso Pires que deixaram de circular: onde estão os do Carlos de Oliveira, do O’Neill, do Sttau Monteiro, do José Gomes Ferreira, do Nuno Bragança? A questão é que a divulgação é um investimento, maior quando o autor já não dá entrevistas, não pode mostrar o seu retiro dourado ou ser fotografado em eventos sociais.”

No dia 2 de Outubro, José Cardoso Pires faria 90 anos. Ele, que sempre escreveu para combater o mito do portuguesismo, o mito da ruralidade, o mito do marialvismo, que tratava a língua portuguesa como uma amante, não vai estar à venda num supermercado perto de si. O que é pena. Porque se estivesse significaria que Portugal tinha finalmente passado a considerar a literatura como um bem de primeira necessidade.

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