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Lúcia Bragança Paulino: "As crianças têm medo da palavra divórcio"

Conversar com os filhos (e ouvi-los), mostrar segurança e manter as regras são alguns dos conselhos para quem está a passar por uma separação. Porque o "divórcio" é tema tabu entre os mais novos.

“Isto é para sempre?”, “Fui eu que fiz alguma coisa?”, “Quando é que vou ver o pai ou a mãe?” e “Como é que vai ser o Natal?”. Há perguntas que precisam de ser feitas. E respondidas. A partir dos seis anos de idade as crianças começam a ter noção — e medo — da palavra divórcio, uma espécie de bicho papão que é, em simultâneo, um tema tabu entre os mais pequenos. É a psicóloga infanto-juvenil Lúcia Bragança Paulino quem o explica numa entrevista ao Observador.

O mote de conversa é o lançamento do livro “Agora tenho duas casas” (coleção Crescer com Pinta), cujo público-alvo são sobretudo pais com filhos que estejam a atravessar um processo de divórcio. Porque há pouca informação escrita em Portugal sobre o assunto, garante a profissional que trabalha com a clínica Oficina de Psicologia, e as crianças precisam de descobrir que não estão sozinhas no barco. “Fazer com que a criança perceba que não tem culpa pela separação parece algo muito simples, mas não é assim tão óbvio para ela”, garante Lúcia Paulino Bragança.

Conversar com os filhos (e ouvi-los), convidá-los a expressar dúvidas ou receios e ter uma postura confiante e segura são alguns dos conselhos que a psicóloga quer passar aos pais. O mesmo aplica-se aos adolescentes, estes que não devem ser tratados como adultos: “Se uma criança de seis anos sente que tem culpa pelo que aconteceu aos pais, já um adolescente sente-se a vítima. É uma perspetiva bastante diferente em termos de desenvolvimento, mas que faz sentido porque os adolescentes vivem as emoções ao máximo”.

A ideia a reter parece ser simples e a receita para o sucesso: a entrevistada garante que quando há comunicação entre os pais, mesmo já não sendo um casal, ter duas casas e experiências a dobrar pode traduzir-se numa situação positiva para as crianças. Afinal, “há obstáculos na vida que têm o potencial de criar oportunidades de maior felicidade”.

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Lúcia Bragança Paulino

D.R.

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– Numa primeira fase, quando o divórcio ainda não é oficial, a criança consegue perceber o mal-estar em casa?

As crianças são muito mais perspicazes do que os pais pensam. Por muito que às vezes se tente omitir e esconder, as crianças sentem quando há mal-estar e quando há tensão.

– Por que motivo as crianças ficam com sentimento de culpa aquando do divórcio dos pais?
A criança precisa de muito apoio. Fazer com que perceba que não tem culpa pela separação parece algo muito simples, mas não é assim tão óbvio para ela. O que desencadeia esse sentimento é o facto de a criança viver no seu mundo e sentir as questões muito voltadas para si própria, principalmente entre os cinco e os dez anos de idade. São exemplo as discussões relacionadas com a logística do quotidiano: a criança acaba por se sentir como o objeto causador aquele distúrbio, do conflito entre o pai e a mãe.

– Como é que um pai pode atenuar esse sentimento de culpa?
Verbalizando-o várias vezes. Não chega dizê-lo só uma vez porque a criança pode sucessivamente ter essa sensação. É importante que haja diálogo e conversa, que não se trate a criança como um adulto que consegue lidar com as suas próprias emoções e sintomas, até porque ela própria não os conhece. Por outro lado, o pai deve certificar-se que o filho não tem receios do que vai acontecer. Caso tenha, deve acalmá-lo e dar-lhe a entender que, realmente, ele não tem culpa do que está a acontecer. Que se trata de um problema entre os pais e que, embora deixe de existir uma instituição enquanto casal, eles continuam a ser as figuras paternais.

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– Uma criança de pais divorciados tem duas casas. As experiências são a dobrar. Qual o lado positivo e negativo dessa realidade?
O lado mau começa quando os pais têm de tomar a decisão sobre a partilha, isto é, o tempo que a criança passa com a mãe e com o pai. Isto tem tido muitas mudanças a nível legal, no que diz respeito a decisões de tribunal. Cada vez mais se está a assistir a situações em que a criança está metade do tempo com a mãe e com o pai. Muitas vezes acontece que, após a decisão ter sido tomada, um dos progenitores acaba por não se sentir confortável e querer mudar a respetiva decisão. Isso gera mais conflito e a própria criança pode não se sentir adaptada. A criança pode ainda estar mais ligada a um dos progenitores e não se sentir tão segura ou confortável quando está com o outro. Há ainda pais que veem a criança dia sim, dia não, e esta acaba por ser espécie de bola de ping pong, viajando de casa em casa.

E agora o lado positivo. As vivências duplicadas — como aquela imagem de duas árvores de Natal e o dobro dos presentes — podem funcionar muito bem quando a criança está tranquila, confortável em ambos os lares e há segurança manifestada pelos dois pais. Além da comunicação com o filho, é muito importante a comunicação entre os pais e, muitas vezes, é isso que falha. Quando as coisas funcionam bem, ter duas casas é bom e é algo que as crianças veem como sendo positivo. Conseguem promover o seu bem-estar em cada um dos quartos, conseguem ter duas festas de anos e dois Natais. Conseguem sentir-se bem e seguras. Acredito muito na capacidade e na competência dos pais para resolver os problemas.

"Fazer com que a criança perceba que não tem culpa pela separação parece algo muito simples, mas não é assim tão óbvio para ela."
Lúcia Bragrança Paulino

– O que acontece quando a criança percebe que tem coisas a dobrar e tira partido disso?
Aí entramos no campo do excesso, o que nunca é bom. Aí é o peso a medida que estão em causa e os pais devem perceber onde está o equilíbrio e do que a criança realmente precisa. Se os pais estiverem sintonizados naquilo que são as suas formas de parentalidade, as coisas resultam bem.

– É possível e real a ideia de uma criança que manipula os pais para ter mais?
Sem dúvida. Não é só na questão dos bens materiais, mas em tudo o resto. A manipulação da criança, mesmo que inconsciente, é muito recorrente em situações de divórcio. É mais fácil ter pais que não comunicam e poder dizer uma coisa à mãe e outra ao pai. As coisas só se resolvem a partir do momento em que os pais falam um com o outro.

– Que tipo de implicações pode a mudança de rotinas ter numa criança?
Para já é fundamental que a rotina não seja alterada de um momento para o outro, que as coisas sejam graduais e isso é sempre uma estratégia que os pais devem adotar para que não seja uma situação de choque. Por outro lado, pode provocar desorganização em termos práticos, como os trabalhos de escola que estão na outra casa ou as questões da roupa e dos brinquedos. Mais, o pai e a mãe devem tentar manter o mesmo nível de regras, caso contrário torna-se muito confuso e quase que há uma sensação injustiça entre casas.

Também é preciso ter em conta a saudade: o facto de a criança estar, muitas vezes, habituada à sua casa e de repente existir outra habitação. A casa de origem é aquela onde se sente mais confortável e, então, a diferença entre uma e outra pode não ter nada que ver com o progenitor, mas ser apenas uma ligação à casa. Outras situações existem em que são duas casas novas e isso aí já não se coloca. Com a desorganização emocional também é costume sentir-se um decréscimo nas notas escolares e é importante que isso seja feito com os professores que acompanham as crianças.

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"Cada vez mais se está a assistir a situações em que a criança está metade do tempo com a mãe e com o pai. (...) Há ainda pais que veem a criança dia sim, dia não, e esta acaba por ser espécie de bola de ping pong, viajando de casa para casa."
Lúcia Bragrança Paulino

– Porque é que um professor é tão importante nestas circunstâncias?
O professor é importante em todos sentidos na vida de uma criança porque passa muito tempo com ela — às vezes até passa mais tempo do que os próprios pais. Tendo em conta o número grande de situações idênticas que existem atualmente, é importante que haja uma pscicoeducação por parte do professor para que possa existir apoio e elucidação — as crianças continuam a ter ideias erradas sobre o divórcio. O professor pode até, de certa forma, tirar algumas dúvidas, as quais a criança não tem coragem de perguntar aos pais por estar, nesta fase, muito sensível na relação com eles. Às vezes, o simples facto de colocar uma questão pode sentir que está a magoar a mãe ou o pai. Ou ambos. É mais fácil falar com alguém exterior à dinâmica familiar.

– Que conselhos daria aos pais para facilitar o processo de divórcio nos filhos?
É muito importante que haja diálogo e espaço para que a criança possa expressar dúvidas e receios. Perguntas como “isto é para sempre?”, “fui eu que fiz alguma coisa?”, “quando é que vou ver o pai ou a mãe?” e “como é que vai ser o Natal?”. Elas têm, muitas vezes, estas dúvidas lá dentro, mas não têm espaço para expô-las. O não haver espaço quer dizer que os pais estão demasiado centrados no seu próprio problema e não conseguem perceber que os filhos têm problemas. O apoio não é só levá-los a um parque infantil e passa também por ouvi-los.

– Como devem os pais transmitir às crianças que o divórcio está iminente?
Nunca é uma conversa fácil. É importante que os pais estejam seguros das próprias decisões e sejam assertivos quanto ao que vai acontecer no futuro para que a criança se sinta segurança. Demonstrar insegurança cria crianças inseguras. Explicar tudo o que vai acontecer, os timings, o processo de adaptação, tranquilizar a criança e dar a entender que há uma fase de adaptação para todos.

"Penso que a partir dos cinco ou seis anos a palavra divórcio já é algo que ouviram antes, seja porque algum colega falou sobre o assunto ou até porque os meios de comunicação falam disso. Mas ainda é um assunto tabu, sem dúvida, quase como que um medo escondido que as crianças têm."
Lúcia Bragrança Paulino

– As crianças conhecem o significado da palavra divórcio?
Feliz ou infelizmente já vão conhecendo. Penso que a partir dos cinco ou seis anos a palavra divórcio já é algo que ouviram antes, seja porque algum colega falou sobre o assunto ou até porque os meios de comunicação falam disso. Mas ainda é um assunto tabu, sem dúvida, quase como que um medo escondido que as crianças têm. Há aquelas que trazem este medo à consulta, mesmo que não haja necessariamente uma evidência de que isso vá acontecer. E qualquer discussão provoca ansiedade.

– As crianças têm medo da palavra?
Sim, acho que sim.

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– A criança chega a pensar que o amor que os pais têm por ela tem um prazo de validade?
Sim. É quase como se aquele sentimento de culpa provocasse essa sensação: será que o facto de terem deixado de gostar um do outro faz com que deixem de gostar de mim? A equipa pais e filho desmorona-se e a sensação de abandono invade. Quando um progenitor fica mais ausente, seja a mãe ou o pai, isso cria um hiato entre progenitor e filho e isso dá, obviamente, a sensação de falta de amor.

– A guarda partilhada tem aumentado?
Não tenho dados específicos, mas daquilo que é da minha observação julgo que sim. Penso que isto tem que ver com as decisões tomadas em tribunal: há uns anos a guarda era quase sempre conferida à mãe. Hoje em dia já não é 100% assim. Não encontrei nenhuma lei que descreva exatamente que só a partir de x idade é que a criança pode dormir em casa do progenitor que se ausentou. No entanto, é aconselhável que até um ano os períodos de saída da casa onde reside sejam menores.

– Há pais que se mantêm juntos por causa dos filhos?
Se isso acontece é porque alguma coisa não está bem e é impossível não manifestá-lo. É impossível não haver discussões quando há momentos de tensão — a criança vai aperceber-se disso. Para os pais isso significa criar frustrações e situações de desamor, sendo que, à medida que o tempo vai passando, vai sendo cada vez mais difícil de lidarem um com o outro. A imagem que a própria mãe transmite à criança não é a melhor e isso pode influenciar a forma como a criança visualiza o pai. Isto também acontece no outro sentido. Penso que nestas situações a criança acaba por não saber que é por ela que os pais estão juntos. Se o sabe, então obviamente que é muito complicado. Mas penso que isso não é muito frequente, embora pressuponha dinâmicas que não inspiram segurança na criança.

– O que acha que leva um casal a manter-se unido?
É muito difícil de visualizar uma mudança. E se é complicado para um adulto, deve ser ainda mais para uma criança. Isso leva a que casais demorem muito tempo a tomar esta decisão. Mas as coisas podem correr bem e os que se separam podem construir novas famílias. Um casal ao separar-se tem a hipótese de criar novas dinâmicas familiares e melhores ambientes.

"Se uma criança de seis anos sente que tem culpa pelo que aconteceu aos pais, já um adolescente sente-se a vítima. É uma perspetiva bastante diferente em termos de desenvolvimento, mas que faz sentido porque os adolescentes vivem as emoções ao máximo."
Lúcia Bragrança Paulino

– Quão difícil é para a criança conceber que vai ter um novo “pai” ou uma “mãe”?

Depende de criança para criança e da forma como isso é feito. Se for de uma forma muito agressiva e rápida, não é fácil. A criança precisa de se adaptar ao facto de que os pais já não serem um casal e que a família deixou de ser como ela imaginava. Se calhar até é mais fácil para uma criança aceitar um novo namorado ou namorada do que um adolescente. Os adolescentes têm as suas próprias problemáticas relacionadas com o divórcio.

– Os adolescentes vivem o divórcio de forma diferente?
Se uma criança de seis anos sente que tem culpa pelo que aconteceu aos pais, já um adolescente sente-se a vítima. É uma perspetiva bastante diferente em termos de desenvolvimento, mas que faz sentido porque os adolescentes vivem as emoções ao máximo. Mediante um divórcio, os adolescentes ficam sem chão e vão sentir-se as principais vítimas da situação. Isto porque, tal como a criança, o adolescente está muito centrado no seu mundo, embora estes sejam diferentes. É importante perceber que, mesmo sendo um adulto em formação, o adolescente também sofre bastante com o divórcio.

Acontece muitas vezes o adolescente criar conflitos com aquele que sai de casa. Mas também com o que fica, isto porque pode identificar a culpa do divórcio num dos progenitores. Precisa-se sempre de segurança, mas mais na adolescência, caso contrário o adolescente pode perder a identidade. As chamadas de atenção podem ser feitas de imensas formas, incluindo comportamentos estranhos como sair mais à noite ou estar mais tempo fora de casa para não ter de enfrentar o conflito. Mas também se vê adolescentes a darem apoio à mãe ou ao pai, esquecendo-se das suas próprias emoções.

– Falámos do sentimento de culpa nas crianças, mas não nos pais…
A culpa está associada mais à questão de um projeto que foi delineado enquanto casal e que deixa de existir. É quase como um falhanço. A culpa passa mais por aí, por não conseguir concluir esse projeto. É normal que, às vezes, as coisas não corram bem em diferentes contextos da vida, seja a nível pessoal ou profissional. São obstáculos na vida que têm o potencial de criar oportunidades de maior felicidade.

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