Peniche e Nazaré esgotaram a quota de pesca de sardinha no fim de semana e Portimão atingiu o limite esta sexta-feira. Os pescadores pedem o alargamento da quota daquela que é a principal fonte de rendimento do setor, mas o Ministério da Agricultura e do Mar já avisou que isso não vai acontecer. Uma decisão apoiada pela Plataforma de Organizações Não-Governamentais para a Pesca (PONG-Pesca) e pelo presidente do Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA).
“A sardinha não é como a criação de frangos, não temos maneira de a aumentar”, explicou o presidente do IPMA
“Não é possível aumentar a quota. É preciso preservar o setor, mas também é preciso preservar o recurso”, disse Miguel Miranda, na quarta-feira, em entrevista à TVI 24. “A sardinha não é como a criação de frangos, não temos maneira de a aumentar”, reforçou o presidente do IPMA. “Uma vez que os fatores ambientais, também eles importantes para o estado atual do stock, não são controláveis resta-nos gerir adequadamente a única variável que podemos controlar em tempo útil, a pesca”, referiu a PONG-Pesca em comunicado de imprensa, esta quinta-feira.
Na entrevista, o presidente do IPMA refere que os stocks de sardinha estão nos níveis mais baixos das últimas quatro ou cinco décadas, mas os pescadores continuam a afirmar que ainda há sardinha suficiente para pescar mais umas semanas. “É do interesse do país fazer desaparecer aquele que é um dos produtos mais relevantes da pesca portuguesa?”, interroga-se Miguel Miranda.
Já João Ferreira, membro da Comissão de Pescas no Parlamento Europeu, diz confiar na experiência dos pescadores quando lhe dizem que seria possível ir além da quota fixada. O eurodeputado do PCP considera que o setor não têm interesse em esgotar um recurso que é a principal fonte de rendimento. Mas esse é precisamente o tema que está em discussão – e onde há desacordo.
O pescado é um recurso natural: não é “plantado”, não é alimentado, não é “vitaminado”. Como tal, caso não seja gerido de uma forma sustentável, isto é, caso exista pesca excessiva, pode esgotar-se, como alerta Miguel Miranda. É por isso que a Comissão Europeia a estabelece limites de pesca para várias espécies, como o bacalhau, espécie em que a maior parte das zonas de pesca estão sobre-exploradas ou ultrapassaram os limites biológicos seguros – ou seja, são zonas onde deve interromper-se a pesca.
Já outras espécies têm as quotas definidas a uma escala mais pequena: no caso da sardinha resultam de um acordo entre Portugal e Espanha.
O acordo entre os dois países, que mesmo assim conta com o acompanhamento da Comissão Europeia, é baseado em pareceres científicos do Conselho Internacional para a Exploração do Mar (ICES, na sigla em inglês). Em Portugal, o IPMA é a entidade responsável por executar o “programa nacional de amostragem biológica [PNAB] de recursos da pesca com vista a estimar a distribuição e abundância de recursos marinhos e da biodiversidade”. Esta avaliação por parte do Laboratório de Estado inclui, “por um lado, amostragem nas lotas de norte a sul do país e, por outro, observadores a bordo e realização de várias campanhas de investigação em águas nacionais e internacionais”.
O Plano de Gestão da Sardinha (2012-2015) foi adotado em 2011 “no âmbito da gestão partilhada deste recurso com as associações de pescadores e as empresas da indústria conserveira”, indica o Ministério da Agricultura e do Mar (MAM) ao Observador. O parecer científico do ICES apontava para “falhas nos recrutamentos desta espécie desde 2005, o que se traduziu em recomendações para a diminuição da captura a partir de 2008”.
A quantidade de sardinha atingiu mínimos históricos
“Esta avaliação é feita anual ou bianualmente, dependendo dos stocks“, explica ao Observador Antonina dos Santos, diretora do Departamento do Mar e Recursos Marinhos do IPMA. O instituto tem como missão a “modelação para a avaliação do estado dos recursos da pesca para mais de 50 stocks, em águas nacionais e internacionais, alvo de pescarias portuguesas” e com os dados recolhidos fazer o “aconselhamento científico à tutela”. Na entrevista à TVI 24, Miguel Miranda lembra que o IPMA só emite pareceres técnicos e científicos, pois a “decisão cabe às entidades que gerem a pesca”. Ainda assim, garantiu que o IPMA vai “desenvolver trabalhos suplementares, para dar uma visão mais clara do estado do stock, que ajudem nas decisões de risco”.
“Portugal está obrigado a enviar os dados sobre os stocks pesqueiros”, lembra João Ferreira, eurodeputado do PCP, acrescentando que tem informação de que, em 2012, o atual Governo devolveu à União Europeia fundos que deveriam ter servido para financiar a investigação destes stocks, sem o trabalho ter sido feito. João Ferreira considera por isso que não existem dados científicos suficientes. O eurodeputado afirma que as instituições científicas responsáveis por este estudo, como o Instituto Português do Mar e da Atmosfera, têm “profissionais excepcionais”, mas “estão na penúria”.
O Ministério da Agricultura e do Mar explica que “o financiamento comunitário do Plano Nacional de Amostragem Biológica funciona por ressarcimento dos custos reais incorridos (campanha de mar, amostragem nas lotas, participação de inspetores em embarcações de pesca, trabalho de laboratório e pessoal)” e que, em 2012, “não foi possível realizar todas as ações previstas devido à inoperacionalidade momentânea do navio de investigação Noruega”.
A diretora do Departamento do Mar e Recursos Marinhos do IPMA afirma, contudo, que “do nosso ponto de vista executamos todas as campanhas programadas e fornecemos aos organismos internacionais toda a informação solicitada”. “Não existem limitações técnicas ou de pessoal que tenham qualquer tipo de influência nos resultados”, acrescentou. De lembrar que as campanhas do IPMA não dependem exclusivamente do navio Noruega, como refere o MAM, mas também são realizadas “a bordo de traineiras, em cooperação com o sector”.
Olhando para os resultados de todos esses levantamentos percebe-se como não têm sido favoráveis: desde 1993, apesar das oscilações, a quantidade de sardinha tem decrescido e neste momento encontra-se no “mínimo histórico”, indica o IPMA, na área do site dedicada aos recursos vivos. A biomassa (abundância medida em peso) de sardinha chegou às 917 mil toneladas em 1993, mas desde 2006 tem vindo sempre a descer – em 2014 não chegava às 200 mil toneladas (ver gráfico acima), ou seja, apenas um quarto do que era há duas décadas. Daí que, em 2015, o limite para os pescadores da Península Ibérica tenha sido cerca de 19 mil toneladas de sardinha, segundo o Despacho n.º 5119-H/2015.
É pouco? Claco que é, pois, como lembra o eurodeputado do PCP, João Ferreira, a pesca da sardinha representa quase metade das pescas em todo o país”. Assim, como as quotas para esta espécie têm diminuído drasticamente – “são seis ou sete vezes mais baixas que há quatro anos” -, a crise está instalada.
Os gráficos do IPMA confirmam que a quantidade total nos desembarques dos dois países ibéricos tem diminuído (ver gráfico abaixo), ainda que Portugal mantenha valores de quota sempre superiores aos de Espanha – este ano, 13 mil toneladas em Portugal contra seis mil em Espanha. Se não se inverter o ritmo a que os stocks têm diminuído, as capturas também só poderão continuar a diminuir, como sucede praticamente desde há 30 anos.
Mas mesmo assim a taxa de exploração continua muito alta – porque a biomassa está muito mais baixa. Em 2010, 2011 e 2012, a taxa de exploração foi superior a 40%, valores que não se registavam tão altos desde 1980 (ver gráfico abaixo). Ora, “se estivermos a pescar mais de 20% do stock, vamos acabar com a espécie“, explica Miguel Miranda. Para ele “a gestão que tem sido feita, com a atribuição de quotas razoáveis, tem levado a que o recurso não se tenha degradado este ano mais do que no ano passado”. Mesmo assim o presidente do IPMA não classificaria a gestão como boa, mas apenas como “menos má”.
Para 2016, o ICES recomenda uma redução ainda mais drástica: que a quota da sardinha para Portugal e Espanha não chegue sequer às 1.600 toneladas, menos de um décimo do limite deste ano. O presidente da Associação Nacional das Organizações de Produtores da Pesca do Cerco já avisou que o setor não vai aceitar esta quota e chega mesmo a duvidar da credibilidade dos dados científicos. Neste ponto, o Governo concorda com os pescadores. O secretário de Estado do Mar, Manuel Pinto de Abreu, vai pedir explicações sobre o parecer científico por considerar este cenário “anormal”. Também o PS pediu uma reavaliação dos dados por considerar esta proposta “dramática” para o setor.
“A PONG-Pesca discorda totalmente destas críticas porque o ICES é um organismo internacional independente, onde colaboram cerca de quatro mil investigadores de 350 instituições provenientes de 20 países, incluindo Portugal”, conforme refere em comunicado. “Estes pareceres são elaborados com base no melhor conhecimento científico disponível, seguem protocolos e são independentes de qualquer influência.”
Também Antonina dos Santos reforça que “a proposta feita por este organismo [ICES] está correta”, de acordo com a “aplicação do plano de gestão para a sardinha”. “No caso de ser acordado um valor um pouco mais elevado para as capturas de 2016 tal irá aumentar, também um pouco, os riscos de manutenção da espécie em níveis exploráveis.”
Interrogado sobre o parecer do ICES pela TVI 24, Miguel Miranda afirma que o IPMA só emite pareceres e que a decisão caberá ao regulador que terá de encontrar um “compromisso entre o risco que podemos correr e o recurso que estamos dispostos a pescar”.
O Ministério da Agricultura e do Mar confirma ao Observador que os pareceres e recomendações das “instituições científicas reconhecidas nesta área serão sempre tidas em conta, ponderado o nível de risco que cada opção da recomendação tem associado em função da projeção de comportamento do stock previsto”. Mas lembra que o atual Plano de Gestão da Sardinha termina no final de 2015 e que “está em curso a sua revisão para um novo período, com inicio em 2016, de forma a ser aprovado e adoptado por Portugal e Espanha”.
O ciclo da sardinha
A sardinha, na costa portuguesa reproduz-se durante um período alargado, de outubro a abril, mas mais intensamente entre dezembro e fevereiro, refere o IPMA no site. É por isso que de dezembro a abril não se pode pescar sardinha. Assim que chega ao fim da época da reprodução, a sardinha começa a acumular gordura até ao outono seguinte, pois a ideia é acumular energia suficiente para produzir óvulos e espermatozoides. É por isso que encontramos sardinha mais gorda (e mais saborosa) à medida que avançamos no verão.
O crescimento é rápido e ao fim de um ano poderá já ter 14 centímetros e ter atingido a maturidade sexual – altura em que se começa a reproduzir. É por isso que não se deve pescar sardinha com menos de 11 centímetros: se os animais não chegarem à idade adulta, não repõem os stocks da espécie (recrutamento). Capturar a chamada “petinga” – que alguns pescadores têm dito, nas televisões, existir em abundância – é, assim, pescar peixes imaturos que nunca chegaram sequer à época de reprodução. Em termos de sustentabilidade do recurso, ainda é pior.
Quando chegar aos dois anos, a sardinha pode já ter 90% do comprimento, mas mesmo assim poderá viver até aos 14 anos e atingir 27 centímetros. “No entanto, na costa Portuguesa, são mais comuns as sardinhas mais jovens (até 6-7 anos) e pequenas (até 21-22 centímetros)”, refere o site do IPMA.
As regras de pesca estabelecidas, tanto para o tamanho de cada peixe como para a quantidade de pescado admitida pretendem garantir que as espécies atingem a idade da reprodução, e se reproduzem, de forma a garantir os stocks marinhos. Caso estas regras não sejam respeitadas arriscamo-nos a extinguir completamente a espécie ou a deixar as populações tão depauperadas que dificilmente conseguirão recuperar para níveis que possibilitem a pesca.
Com o objetivo de contribuir para a sustentabilidade dos recursos marinhos, o Oceanário criou um guia – o cartão S.O.S. Oceano – que “sugere ao consumidor os peixes e mariscos que pode comprar e consumir sem comprometer o futuro dos oceanos”. Nele as sardinhas com menos de 11 centímetros estão entre as espécies a “evitar”. Esta categoria inclui “espécies vulneráveis, sobre-exploradas, com gestão deficiente ou cujos métodos de captura/criação são desadequados e/ou com impacto no meio ambiente”.
O desaparecimento da sardinha tem efeitos devastadores para as comunidades de pescadores e para a economia, não só no que toca à exploração deste recurso, mas porque a sardinha serve de alimento a outros peixes com valor comercial, como os atuns ou a pescada. Além disso, a sardinha “tem um papel importante no ecossistema porque constitui a principal presa de várias espécies de golfinhos e de aves marinhas, como ganso-patola, cagarra, pardelas e gaivotas”, lembra o IPMA no site.
Os impactos sócio-económicos no setor preocupam a PONG-Pesca, mas a plataforma defende que sem a restrição das capturas “será muito difícil que o stock da sardinha recupere e volte a volumes que permitam a sua exploração de forma sustentável”. Sabe-se que o recrutamento da espécie tem ciclos e picos onde a quantidade de peixe é maior, mas também têm períodos longos em que parecem desaparecer completamente. Depois de um pico, o número de indivíduos vai decrescendo até que aconteça um novo pico. O problema agora é que o último pico foi há mais tempo do que estava previsto e ainda ninguém conseguiu explicar porquê.
“O mau estado do stock desta espécie não se deve exclusivamente ao excesso de capturas”, nota a PONG- Pesca. “Pode também ser potenciado por variações de fatores ambientais, como alterações significativas da temperatura, nutrientes, salinidade da água do mar ou mesmo predação por outras espécies.” Mas a plataforma acrescenta que “a pesca é a única variável que podemos controlar em tempo útil”.
A PONG-Pesca, numa recomendação semelhante à do Governo, aconselha os pescadores a pescarem carapau ou cavala “que estão em bom estado de conservação”. “Estas espécies são subvalorizadas pelos consumidores nacionais” e “uma das soluções para o setor pode ser apelar ao consumo do carapau“, como aliás recomenda o Oceanário no guia S.O.S. Oceano. Mas João Ferreira diz que “o preço em lota não compensa o trabalho”. A cavala está um pouco mais valorizada – dantes os pescadores atiravam-na ao mar, nem chegava à lota -, mas mesmo assim não compensa a ausência da sardinha.
A procura da sardinha é grande nesta altura do ano, sendo que o peixe em geral é um forte componente da alimentação de muitas pessoas. “Em todo o mundo, três mil milhões de pessoas dependem de espécies marinhas como fonte principal de proteína”, sublinha o Oceanário. Os portugueses são os terceiros maiores consumidores de peixe do mundo e os maiores da União Europeia – um português consome em média 57 quilogramas de pescado por ano, contra 21,4 quilogramas da média da Europeia, refere o site “Que peixe comer?“, da Liga para a Proteção da Natureza. Se quisermos manter estes hábitos alimentares, que até são saudáveis, então temos de saber preservar os recursos naturais – e a sardinha é um deles.
O IPMA alerta que existem outras espécies de pescado em risco: os que têm uma pesca sustentável, mas têm uma capacidade de reprodução reduzida, como o areeiro-de-quatro-pintas ou o peixe-espada-preto; os que estão no limite da exploração, mas que ainda assim têm uma boa capacidade reprodutiva, como o lagostim, a pescada ou os tamboris; e, em pior condição, os que estão sobre-explorados e que, como agravante, não têm uma boa capacidade reprodutiva, como a enguia ou o areeiro.