No dia 20 de dezembro de 2014, dois pais americanos, Danielle e Alexander Meitiv, decidiram deixar os seus filhos, de 10 e 6 anos, fazer um percurso de 1 milha (1,6 quilómetros) desde o parque até casa, numa tarde de inverno, e em plena luz do dia. Esse atrevimento valeu-lhes uma acusação de negligência por parte da polícia por não estarem a supervisionar os seus filhos menores.
Quando questionados pela polícia, que encontrou os filhos a meio do percurso porque alguém a alertou, os pais disseram que defendiam uma educação “free range” em oposição ao actual “helicopter parenting”. Nos Estados Unidos, este conceito de “free range” aparece associado a galinhas e designa o seu habitat, isto é, se vivem num galinheiro comunitário de dimensões mínimas ou se andam à solta. Se andarem, são “free range” e, com sorte, “grass-fed” (alimentam-se a partir do que encontram no campo).
Mas aquilo que se aplica às galinhas é cada vez mais difícil de aplicar às crianças.
O casal Meitiv, cuja mãe é consultora de ciência climática e o pai físico no National Institutes of Health, testou antecipadamente os filhos em pequenos percursos nas imediações da sua casa, biblioteca e escola, e estes mostraram-se responsáveis e conhecedores da área. A mãe acha que é absolutamente fundamental para o desenvolvimento dos filhos que eles aprendam a ser responsáveis, a conhecer o mundo, a ganhar confiança e competências.
A polícia, no entanto, exigiu que os pais assinassem um termo de responsabilidade em como não voltariam a deixar as crianças sem supervisão até serem entrevistados pelos Serviços de Proteção de Menores. O pai terá recusado, mas quando confrontado com a possibilidade da retirada dos filhos, mudou de ideias e assinou.
Como os pais não consentiram que os Serviços de Proteção de Menores fossem a sua casa, os filhos acabaram por ser interrogados na escola, o que terá chocado a mãe. Segundo a lei estatal americana, menores de 8 anos devem ser deixados com uma pessoa de confiança que tenha pelo menos 13 anos. Esta lei abrange habitações, espaços cercados e veículos. Os pais continuam a achar que estão a ser pressionados a educar os filhos de acordo com valores que não defendem e que vão contra a sua maneira de pensar.
O que diz a lei portuguesa
Em Portugal, segundo o Instituto de Apoio à Criança, não há idade mínima estipulada que possa desresponsabilizar os pais — essa opção está dependente do grau de autonomia da criança. Deixar menores em casa sozinhos, independentemente desse facto vir a ter ou não consequências, pode ser considerado crime por ato negligente, sobretudo se a criança for vítima de algum tipo de acidente, ou se, simplesmente, o facto de estar sozinha representar uma ameaça.
Os pais podem mesmo ficar sujeitos a uma pena que vai da vigilância dos encarregados de educação por técnicos da Comissão de Proteção de Menores até à perda da custódia dos filhos. Mais: qualquer pessoa que saiba de crianças que são deixadas em casa sozinhas tem o dever de alertar as autoridades (PSP ou GNR) ou participar diretamente à Comissão de Menores.
Rafi e Dvora, os filhos dos Meitiv, faziam-se normalmente acompanhar de um cartão plastificado com os contactos dos pais, onde se lia: “Não estou perdido. Sou um free-range kid.” No dia 20 de dezembro, contudo, não transportavam o cartão consigo.
É tudo menos óbvio que para deixar um filho andar sozinho na rua se tenha de lhe colocar uma etiqueta, qual anilha num pombo. No entanto, após um inquérito em dois grupos fechados de mães no Facebook, onde a amostra foi de 400 respostas, a esmagadora maioria respondeu que os filhos vão geralmente de carro para a escola e, se forem a pé, vão sempre acompanhados pelos pais, avós, irmãos mais velhos ou empregada. À medida que avançam na idade — sendo os 10 anos a idade média para se aventurarem sozinhos — conquistam uma autonomia controlada por telemóveis.
Segundo os mesmos grupos de mães, os locais típicos para onde as crianças se deslocam sozinhas são: a escola, a padaria, o supermercado, os ATLs, a própria casa e a casa de familiares e amigos. As distâncias variam entre escassos metros (“escola em frente de casa”) até 1,5 km. As respostas mencionam também o recurso ao grupo, como garantia de estarem acompanhados. Percebe-se também que os rapazes têm mais facilidade em saírem sozinhos do que as raparigas. Nenhuma mãe mencionou que o filho estivesse identificado com um cartão com os seus dados pessoais, morada e telefone. Em compensação, houve uma mãe — só uma — que afirmou que os seus filhos iam sozinhos de bicicleta para a escola.
Avaliação de competências
Rita Chichorro, psicóloga clínica infantil, sugere que os pais devem começar por avaliar as competências dos seus filhos para assumirem esta responsabilidade, e sugere uma longa lista de questões para esse efeito: “Caminha sem dificuldade? Tem visão adequada? Conhece as regras da estrada? Sabe o caminho para o local pretendido? Sabe como se deslocar em segurança? Com quem vai (pares)? O peso da mochila é excessivo ou adequado à idade? Tem conhecimento das normas sociais e morais? Conhece os direitos das crianças? Se for abordado/a por um estranho, como deve reagir?”
Para além da resposta a estas questões, Rita Chichorro sugere que comecem por ser dadas às crianças diferentes tarefas no dia-a-dia, para ir testando a sua autonomia. Por exemplo, indo despejar o lixo ou deslocando-se à mercearia mais próxima de casa. Ao mesmo tempo, é muito importante acompanhar algumas vezes as crianças nos percursos que depois se pretende que façam sozinhas. Segundo a psicóloga clínica infantil, o ensino para a autonomia é fundamental: “É premente que os agentes educativos viabilizem a autonomia dos seus filhos, sem deixar que as angústias, excesso de preocupações e receios impeçam o seu processo de desenvolvimento.”
Claramente, Portugal segue a tendência americana no que toca à supervisão, na medida em que a maioria dos pais não se sente segura ao deixar uma criança ir sozinha para a escola. E quanto à criança ficar sozinha em casa? Haverá neste acto uma maior confiança na autonomia e capacidades da criança?
Sozinhos em casa
Tomando como amostra os mesmos dois grupos de mães, a resposta é um rotundo “não”. Só se torna um “sim” quando as crianças têm cerca de 10 anos, por períodos curtos de ausência dos pais, em situações em que os pais têm de sair para levar o cão à rua, para uma ida rápida ao supermercado ou para despejar o lixo. Atos esses que são facilitados por uma supervisão via telemóvel ou pela presença em casa de irmãos mais velhos, ainda que igualmente menores. Habitualmente, existem ainda instruções claras para que os menores não atendam o telefone, nem abram a porta a ninguém.
Quando questionada acerca da idade em que as crianças podem ficar em casa sozinhas, Rita Chichorro afirma não haver “uma idade padrão que defina quando um filho está preparado para ter esta responsabilidade e autonomia”. Ao longo do crescimento são adquiridas diferentes competências durante diferentes períodos de idade, essenciais para o desenvolvimento da autonomia, mas a psicóloga ressalva que “não são iguais em todas as crianças”. Por isso, é absolutamente essencial “compreender este processo” e “inferir sinais sobre o desenvolvimento e nível da maturidade” de cada filho.
De qualquer forma, parece não haver grandes dúvidas sobre a crescente preocupação dos pais com a segurança dos seus filhos. E existe este facto indesmentível: quando olhamos para a nossa própria infância, todos achamos que havia mais liberdade e autonomia quando éramos crianças do que aquela que os nossos filhos têm nos dias de hoje.
A grande questão é: A que se deve essa mudança? Estará hoje o mundo mais perigoso do que antigamente?
Steven Pinker, linguista americano, autor do livro Como Funciona a Mente e do aclamado e fundamental The Better Angels of Our Nature: Why Violence Has Declined, afirma claramente que não. As suas teses são resumidas numa TED Talk intitulada “O Surpreendente Declínio da Violência”, onde ele demonstra que o mundo, ao contrário do que muitos pensam, está cada vez mais seguro. A redução da violência e da taxa de criminalidade nos países desenvolvidos é indesmentível. Só que, ao mesmo tempo, existem mais notícias sobre violência e crimes, e a sua disseminação é muito mais rápida e eficaz — o que diminui a nossa sensação de segurança.
Qual a solução para quebrar os receios excessivos em relação à segurança dos nossos filhos? Esta é uma pergunta sem resposta fácil. O que parece certo e pacífico entre especialistas é que a educação para a autonomia dos filhos deve ser uma prioridade dos pais, e que as estatísticas desmentem a insegurança crescente do mundo. Na verdade, a dificuldade que nós temos em criar crianças “free range” tem menos a ver com os perigos que elas podem encontrar fora do galinheiro, do que com a cultura pai-galinha que a actual geração de jovens pais tem vindo a cultivar.