(Artigo publicado originalmente a 20 de fevereiro de 2016)
Em 2016 cumprem-se 500 anos sobre a canonização de Santa Isabel de Portugal, pelo que o bispo de Coimbra determinou que de 1 a 13 de Julho a mão da santa, ressequida mas num estado razoável para quem morreu há 680 anos, poderá ser vista por quem se deslocar ao mosteiro de Santa-Clara-A-Nova – o devoto terá, todavia, que contentar-se em espreitar a mão (e apenas a mão) por um óculo, à maneira das feiras de antanho que exibiam criaturas fabulosas numa penumbra estudada.
Santa Isabel, também conhecida como Isabel de Aragão, falecida em Estremoz, a 4 de Julho de 1336, foi sepultada, cumprindo a vontade expressa no seu testamento, no mosteiro de Santa-Clara-A-Velha, em Coimbra, a cuja fundação esteve intimamente ligada, cuja edificação acompanhou e junto do qual viveu após a morte de D. Dinis, em 1325. Porém, o progressivo assoreamento do Mondego fez com que as águas do rio fossem subindo e invadindo o mosteiro, pelo que, após o fracasso de várias obras paliativas, D. João IV ordenou, em 1647, a construção de um novo mosteiro – Santa-Clara-A-Nova – para o qual as clarissas foram transferidas em 1677, altura em que também foram transladados os restos mortais de Santa Isabel, que passaram a estar albergados num sumptuoso túmulo de prata e cristal.
A carne incorrupta
O túmulo de pedra original fora aberto bem antes da transladação, a 26 de Março de 1612, a fim de cumprir os preceitos necessários ao processo de canonização. Uma comissão de médicos, eruditos e religiosos certificou que o corpo da santa estava miraculosamente preservado – “mui são, inteiro e sem corrupção, de maneira que a cabeça estava com os cabelos inteiros, louros e sãos […]. A testa e todo o rosto coberto pela mesma carne, muito alba e bem proporcionada, com nariz, orelhas, olhos e boca, sem corrupção” – o que levou o bispo D. Afonso de Castelo Branco a determinar que fosse exibido aos fiéis.
A exposição pública do cadáver viria depois a circunscrever-se a uma mão (engelhada mas ainda com alguma carne, ao que consta), talvez por o resto do corpo ter seguido, ainda que tardiamente, o curso natural das coisas perecíveis. A exibição da mão às gentes comuns sempre esteve sujeita a autorização do bispo e à ocorrência de efemérides “especiais”, que nunca têm faltado, graças aos céus: em 1996 foram os 300 anos da consagração da igreja do mosteiro de Santa-Clara-A-Nova, em 2000 foi ano de jubileu, em 2012 foi o quadricentenário da primeira abertura do túmulo. Tais restrições não se aplicavam aos reis de Portugal, que, sempre que passavam por Coimbra, costumavam ir ao mosteiro beijar a mão da santa (com práticas tão pouco higiénicas, espanta que a monarquia não se tenha extinguido antes de 1910).
Os rumores sobre a incorruptibilidade do cadáver de Santa Isabel nada têm de invulgar no contexto dos seus pares. Deus parece importar-se pouco em prolongar a vida ou mitigar os padecimentos dos seus eleitos, mas após a morte empenha-se, nalguns casos, em suster o processo de putrefacção. Talvez alguns santos e beatos tivessem preferido, a um bonito cadáver, ter vivido até aos 120 anos ou, pelo menos, ter sido poupados aos achaques da velhice, mas os desígnios do Senhor são insondáveis.
Em The incorruptibles: A study of the incorruption of the bodies of various Catholic saints and beati (1977), Joan Carroll Cruz lista 102 casos de incorrupção de santos e beatos, mas não só esta lista não é exaustiva (não inclui, por exemplo, Santa Isabel de Portugal) como deixa de fora os numerosos “incorruptíveis” da Igreja Ortodoxa.
A incorruptibilidade nem sempre cobre todo o corpo: quando o túmulo de Santo António de Pádua/Lisboa, na igreja de Santa Maria, em Pádua, foi aberto 30 anos depois da sua morte, o corpo estava reduzido a pó, mas a língua estava intacta, o que levou a que fosse colocada num relicário, que pode hoje ser visto numa das capelas da basílica. Por outro lado, a garantia também tende a ser limitada e alguns corpos miraculosamente preservados durante séculos tendem a decompor-se rapidamente por alturas da invenção da máquina fotográfica. É o caso, por exemplo, de Santa Zita (c.1212-1272): quando foi exumada em 1580, o corpo estava intacto, mas entretanto os poderes divinos parecem ter negligenciado a sua conservação – a aparência não está mal para um cadáver com 744 anos, mas não se pode falar em milagre, antes em mumificação, um processo que não envolve intervenções sobrenaturais, apenas condições adequadas de temperatura e humidade.
Milagres em série
Santa Zita, patrona das empregadas domésticas e que tem fama de ajudar a encontrar chaves perdidas (eis uma santa cujo nome vale a pena reter), merece menção por outro aspecto que a liga a Santa Isabel de Portugal. Santa Zita entrou ao serviço da família Fatinelli, em Lucca, com apenas 12 anos como criada e para ela trabalhou durante 48 anos. Apesar de ter sido humilhada e maltratada pelos patrões (e pelos outros criados), a sua abnegação, devoção e bondade acabaram por comovê-los e reconduzi-los à verdadeira fé (e a promover Zita a governanta). Entre as acções devotas que empreendia regularmente estava a caridade para com os pobres e, de uma vez em que seguia com vários pães embrulhados no seu manto, foi interceptada pelos ríspidos patrões, que lhe indagaram o que ali levava – Santa Zita abriu o manto e (oh, milagre!) viu-se que apenas continha flores.
A coincidência com o “milagre das rosas” de Santa Isabel de Portugal nada tem de excepcional, já que é um milagre atribuído a muitos outros santos, incluindo Santa Isabel da Hungria (1207-1231), tia-avó da “nossa” santa (e tia das Santas Cunegunda e Santa Margarida da Hungria, sobrinha de Santa Edviges da Silésia e prima de Santa Inês de Praga – os geneticistas têm descurado o estudo da transmissão hereditária da santidade). Também esta princesa húngara, a quem é atribuído um carácter caridoso, devoto e bondoso, teria o hábito de levar disfarçadamente aos pobres pão, subtraído da mesa do castelo. Numa dessas ocasiões em que levava pão oculto no manto, ao deparar-se inesperadamente com o marido, Luís IV da Turíngia (ou o cunhado, noutra versão), que regressava da caça, e instada a revelar que volume suspeito era aquele que o seu manto ocultava, abriu-o e revelou rosas brancas e vermelhas, sucesso tanto mais prodigioso por se estar em pleno Inverno.
Mais tarde, quando se transladaram os seus restos mortais, embora estes não estivessem intactos, o túmulo emanava um aroma doce e agradável, que é mencionado num sermão de Cesário de Heisterbach (que certamente sabia do que falava, uma vez que foi autor do Dialogus miracolurom, um tratado hagiográfico onde se listam 746 milagres) e poderá ter contribuído para que lhe fosse atribuído, por associação olfactiva, o milagre das rosas. Há vários outros santos, “incorruptíveis” ou não, a cujo cadáver se atribui um aroma agradável ou sobre os quais se relata que um perfume invadiu os aposentos no momento em que o santo expirou e que funciona como metáfora olfactiva do estado de graça da sua alma, isenta de pecado – a chamada “morte em odor de santidade”.
De qualquer modo, os “milagres das rosas” – que envolvem também Santa Casilda de Toledo e São Diego de Alcalá – são tão semelhantes que é quase inevitável concluir que foram decalcados uns dos outros. O facto de alguns milagres terem sido “enxertados” na biografia do santo por vezes séculos depois do seu falecimento torna difícil identificar o “milagre original” e nem sequer a data da primeira referência documentada serve para estabelecer precedências, pois a lenda pode ter circulado sob forma oral durante muito tempo antes de ser fixada por escrito.
Ao decalque nos milagres corresponde por vezes um decalque na representação iconográfica: em meados do século XVII, o pintor espanhol Francisco de Zurbarán (um dos notáveis continuadores de Caravaggio) não fez alterações substanciais entre a sua visão de Santa Isabel de Portugal e Santa Casilda, a princesa moura do século XI, filha de Almanun, rei de Toledo, que foi interceptada por soldados mouros quando, à socapa, levava pão para os prisioneiros cristãos. A semelhança não é apenas de pose e composição: Zurbarán veste as duas santas medievais com roupas anacrónicas e atribui à princesa moura trajos e aparência ocidentais – o mesmo faz, quase três séculos depois, Zacarías González. Seria preciso esperar pela representação do milagre por Juan Nogales, em 1892 – com o orientalismo a fazer furor nas artes plásticas europeias –, para que o guarda-roupa de Santa Casilda ganhasse verosimilhança histórica.
[Veja nesta fotogaleria as várias versões do milagre das rosas]
Os cadáveres incorruptos de santos e beatos, embora causem mais espanto, não são mais dignos de estima, na óptica da Igreja Católica, do que os cadáveres que seguiram a via natural da decomposição e de que apenas restam ossadas ou fragmentos mumificados. Ambos integram a categoria das “Relíquias de I Classe”, onde também se contam os vestígios físicos associados à vida de Cristo, enquanto nas “Relíquias de II Classe” estão os objectos usados por santos (incluindo vestuário e calçado). A categoria das “Relíquias de III Classe” é um clube com critérios de admissão tão lassos que desprestigia o conceito de relíquia: inclui qualquer objecto que tenha entrado em contacto com uma relíquia das classes I e II.
Santos e apóstolos à deriva
Se algumas das relíquias hoje disseminadas pela Europa de santos e apóstolos que nasceram e viveram no Próximo Oriente podem ser rastreadas até Constantinopla, de onde foram pilhadas quando da infame IV Cruzada, em 1204, outras ocorrências europeias de restos de protagonistas bíblicos e paleocristãos são invenções sem sequer essa frágil sustentação. Esta “migração” reflecte o facto de o centro de gravidade da Cristandade se ter deslocado progressivamente do palco dos primeiros desenvolvimentos do Cristianismo – a Terra Santa e os territórios limítrofes, como o Egipto, a Síria e a Ásia Menor – para a Europa e de o “berço do Cristianismo” ter caído em poder do Islão na década de 630.
A Europa, sendo fervorosamente cristã e não possuindo relíquias cristãs, tratou de inventá-las e de conferir-lhes credibilidade através de histórias como a que fez Maria Madalena atravessar o Mediterrâneo num barquito sem leme nem vela nem remos, acompanhada pelo seu “irmão” Lázaro de Betânia – o que Jesus ressuscitou e cuja irmã Maria foi “fundida” com Maria Madalena –, e encontrar refúgio no sul de França, perto do que é hoje Aix-en-Provence. Maria Madalena teria vivido longos anos em penitência numa gruta, em Sainte-Baume, o que fez com que esta se tornasse, na Idade Média, local de peregrinação reputado (a ponto de merecer a visita de dois Papas e do rei São Luís).
Ainda mais enredada foi a viagem empreendida pelo apóstolo Tiago (Santiago Maior, filho de Zebedeu): tendo também ele atravessado o Mediterrâneo e estando a pregar na Hispânia, terá deparado com uma visão da Virgem Maria nas margens do Ebro, perto de Cesaraugusta (a actual Zaragoza). Seguindo as instruções da Virgem, regressou à Judeia, onde terá sido executado por Herodes Agripa, que se encarregou pessoalmente da decapitação. O corpo foi levado por anjos e colocado num barquito sem leme, nem vela, nem remos (como o de Maria Madalena), que, vogando ao sabor das ondas, acabou por dar à costa na Hispânia, em Iria Flavia (a actual Padrón, na Galiza) e foi sepultado em Compostela. A inverosimilhança deste périplo não impediu que Santiago de Compostela ganhasse um súbito vigor nos séculos X-XI e nem os raids vikings e árabes conseguiram extinguir a devoção (al-Mansur saqueou Compostela mas não ligou aos restos de Tiago), de forma que no século XIII a cidade era já o segundo santuário católico mais importante da Europa, depois de Roma.
A tradição pretende que Pedro esteja sepultado na basílica homónima em Roma, apesar de nada indicar que alguma vez tenha estado na cidade ou na Península Itálica, vivo ou morto. Fazem-lhe companhia, sob o mesmo tecto, Simão, o Cananeu (também conhecido como o Zelota) e Judas Tadeu, ambos martirizados onde hoje é Beirute, bem como grande cópia de santos e mártires e ainda 91 papas. Também em Roma, na Basilica dei Santi XII Apostoli, estará o outro Tiago (Santiago Menor, filho de Alfeu).
Na Basilica di San Paolo Fuori le Mura, estará Paulo, uma presença “confirmada” por escavações realizadas em 2009 e ratificada pelo Vaticano, ainda que os rumores de que Pedro e Paulo terão sido martirizados em Roma só tenha surgido por volta de 166-174 dC, através de Dionísio de Corinto.
Seja como for, o corpo de Paulo em San Paolo Fuori le Mura poderá não estar completo, uma vez que a Igreja do Naufrágio de São Paulo, em Malta, reclama, desde 1771, a posse de um osso do pulso do santo, provavelmente sem mais bases para o fazer do que os Actos dos Apóstolos registarem o naufrágio de São Paulo em Melita (Malta) na sua viagem para Roma.
Voltando aos 12 apóstolos: Bartolomeu foi martirizado na Arménia mas, convenientemente, imitou Santiago Maior e deu à costa na ilha de Lipari, junto à Sicília – hoje há, alegadamente, bocados dele espalhados por Roma, Frankfurt e Canterbury. Mateus, a quem se atribuem viagens um pouco por todo o lado, estará em Salerno, Itália. Filipe, que foi martirizado e sepultado em Hierapolis (perto da actual Denizli, na Turquia), terá sido levado para Constantinopla e daí para Roma, onde repousa na Basilica dei Santi XII Apostoli.
Marcos, que foi martirizado em Alexandria, estará na basílica com o seu nome, em Veneza, após um audacioso “rapto” levado a cabo em 828, por dois mercadores venezianos, que o fizeram viajar coberto por carne de porco, para dissuadir inspecções das autoridades alfandegárias do califado. Todavia, os cristãos coptas alegam que a cabeça terá ficado em Alexandria, mais precisamente na catedral ortodoxa copta de São Marcos, onde lhe prestam culto; e há mesmo quem sustente que os dois mercadores venezianos se enganaram (ou foram enganados) e que o corpo que raptaram de Alexandria era o de Alexandre o Grande e não o de São Marcos.
Sem surpresa, não há santuário que reclame a posse do corpo ou sequer de uma falange de Judas Iscariotes, embora a Collegiata di Santa Maria, em Visso, Itália, alegue ter uma das 30 moedas recebidas como paga pela traição.
Santos tetracéfalos e outros prodígios
O caso de Compostela é bem revelador de como a alegada posse de uma relíquia de elevado valor e um eficaz programa de promoção no estrangeiro eram capazes de converter uma cidade de uma região pobre e periférica num fervilhante centro de peregrinação. Inevitavelmente, multiplicaram-se as reivindicações de posse de relíquias, gerando disputas de difícil resolução, como é o caso de S. João Baptista: há pelo menos quatro santuários a reclamar a posse do seu crânio, são três os locais que pretendem possuir a sua mão direita (ver o artigo “Os segredos de Jesus: teorias conspirativas e dois copinhos de catequese”) e o número de dedos indicadores eleva-se a 11 (não contando, claro, os que fazem parte das mãos completas). Um dos dedos não deixou que a sua migração para Ocidente fosse detida pelo Oceano Atlântico e está hoje em exibição no Nelson-Atkins Museum of Art, em Kansas City, embora neste caso não haja nenhuma história piedosa que, por meio de anjos ou barquinhos à deriva, justifique a presença de S. João Baptista no Midwest.
Algo de semelhante se passa com o apóstolo Matias (o substituto de Judas Iscariotes na equipa dos 12 apóstolos), que os alemães pretendem estar sepultado na Abadia de S. Matias, em Trier, enquanto os gregos garantem que jaz em Gonio-Apsaros, na Grécia; e com o apóstolo Tomás, que tendo (supostamente) levado a sua acção missionária até à Índia, é dado como certo em Chennai, na basílica com o seu nome em Ortona, em Itália, e em Edessa, na Mesopotâmia – para agravar a situação, o Mosteiro de São João Teólogo, na ilha grega de Patmos reclama a posse do seu crânio e a Igreja de Santa Croce in Gerusalemme, em Roma, reclama a posse do dedo indicador com que o dubitativo Tomás tocou a chaga aberta pela lança romana em Jesus.
São Justo de Beauvais, hoje caído em esquecimento mas que foi muito popular na Idade Média – o que é atestado pelas muitas localidades baptizadas com o seu nome na Europa francófona – terá vivido na Gália, perto do que hoje é Auxerre, no século III e terá sido decapitado em 287, com a tenra idade de nove anos, nas perseguições aos cristãos movidas pelo imperador Diocleciano. Depois de decapitado, o corpo pegou na cabeça, que continuou a falar e a proclamar a sua fé, o que pode parecer grotesco aos olhos de hoje, mas foi uma lenda muito disseminada na Idade Média – há registo de cerca de 120 destes santos e mártires ditos cefalóforos, que tomaram a sua própria cabeça após serem decapitados, o mais famoso dos quais talvez seja São Dinis de Paris, cujo corpo empreendeu uma caminhada de 10 quilómetros, enquanto a cabeça debitava um sermão.
Tal como acontece com os restantes milagres, a ocorrência de santos cefalóforos diminui drasticamente em séculos mais recentes e o mais próximo que hoje temos deste bizarro fenómeno é o político “decapitado” em eleições que regressa, com a sua cabeça falante debaixo do braço, como comentador político na TV.
A posse do corpo de São Justo de Beauvais é disputada pela abadia de Malmédy, pela abadia de Saint-Riquier e pela igreja de St. Just en Chaussé, em Beauvais (onde terá sido decapitado), mas também há rastos destes ou de outros corpos na igreja de S. Cipriano em Poitiers e em Neu Corbei na Alemanha. Quanto a cabeças, a Suíça detém duas, uma em Einsiedeln e outra em Chur, a Bélgica, uma, na igreja de Saint-Charles, em Antuérpia (talvez a mesma que antes esteve em Zutphen, na Holanda). Para complicar a disputa, consta que o corpo em Malmédy inclui cabeça e há ainda relíquias do santo (talvez parte do crânio) em Winchester (Grã-Bretanha).
A relíquia na era do avião a jacto
A desconcertante itinerância das relíquias ganhou uma nova dimensão no nosso tempo, agora sem estar ao sabor de correntes, ventos e ondas.
Tome-se o caso de Maria Madalena, cujo corpo teria sido sepultado na cripta de S. Maximino, em Saint-Maximin-la-Sainte-Baume, mas andou muito tempo desaparecido, supostamente porque foi escondido, em 716, para evitar que caísse nas mãos dos invasores sarracenos. O paradeiro de Maria Madalena foi desconhecido durante cinco séculos, até que, em 1279, Carlos II de Anjou ordenou uma escavação na cripta de S. Maximino e deu com o sarcófago com o corpo da santa, embora com alguns elementos em falta. Um deles era o maxilar inferior, que fora enviado, no início do século VIII, para uma basílica em Roma, onde esteve em exibição durante séculos. A boa nova da redescoberta do corpo levou o papa Bonifácio VIII a devolver o maxilar, que, em 1295, foi reinserido no crânio.
Os restos mortais de Maria Madalena tornaram-se na principal atracção da basílica que Carlos II fez construir sobre a cripta de S. Maximino, embora a basílica romana de Vézelay, na Borgonha, também reivindique a posse dos ossos de Maria Madalena (cuja autenticidade foi confirmada pelo Papa Estêvão IX). Não terminaram aqui as atribulações de Maria Madalena, ou, pelo menos, da parte dela que alegadamente estará em Saint-Maximin-la-Sainte-Baume, já que durante o frenesim anti-clerical da Revolução Francesa viu o relicário profanado e espoliado das jóias e os ossos dispersos. Só depois de extintos os ardores revolucionários os restos voltaram a ser reunidos na cripta de S. Maximino.
Em 2002 as relíquias fizeram uma digressão triunfal por dez cidades da diocese de Fréjus-Toulon, a que se seguiu, em 2004, uma digressão pelo Brasil, em 2009, outra por Toulouse, Lyon e Paris, e, em 2010, outra pelos EUA, sempre com acolhimento entusiástico. Previdentemente, os restos mortais de Maria Madalena estão albergados num novo relicário concebido para ser facilmente acondicionado nos porões dos aviões.
A persistência do culto das relíquias na era da datação por radiocarbono, do raio-X, da paleobotânica, da análise de ADN, da reflectografia de infra-vermelhos e da espectroscopia de fluorescência é difícil de compreender. Teria certamente menos adesão se a Igreja Católica não continuasse a encorajar a sua veneração, ao contrário do protestantismo, que se distanciou de imediato do que denunciou como crenças supersticiosas.
O Código de Direito Canónico promulgado em 1983 por João Paulo II estipula as condições para a exibição pública de relíquias, impondo que esta se faça num ambiente de dignidade e elevação, interdita a sua compra e venda e condena que sejam “sujeitas a qualquer uso impróprio ou profano, mesmo tratando-se de relíquias pertencentes a particulares”. Tais disposições não bastam para atenuar o carácter inverosímil e anacrónico da maioria das relíquias, nem para conferir respeitabilidade teológica à sua veneração.
Na verdade, a Igreja Católica não se limita a regular a veneração das relíquias – encoraja-a, uma vez que incentiva as igrejas a obter relíquias e até as disponibiliza, por quantias módicas, a partir do Vicariato de Roma, desde que se destinem à veneração pública e não a colecções particulares. O pedido, que deve ser acompanhado por uma carta de recomendação do bispo da diocese do requerente, pode levar algum tempo a processar e envolve um pagamento que se destina apenas a cobrir os custos do relicário. É de supor que a oferta esteja limitada ao stock existente, mas este, como já se viu, revela uma elasticidade sobrenatural – mesmo sem considerar a constante dilatação do número de santos e beatos oficialmente reconhecidos.
O milagre da multiplicação das relíquias
A extravagância e credulidade que rodeia o culto das relíquias foi alvo de sátira em O nome da rosa (1980), de Umberto Eco. Adso de Melk e Guilherme de Baskerville, as duas personagens principais, são guiados por Nicolau de Morimondo numa visita à cripta dos tesouros da abadia beneditina onde decorre a acção e o jovem e ingénuo Adso fica boquiaberto com os prodígios que lhe são dados a ver: “a ponta da lança que trespassou o flanco do Salvador”, “um pedaço do lenho venerando da santa cruz”, “um prego da cruz”, “uma parte da coroa de espinhos”, “um bocadinho amarelecido da toalha da última ceia”, “a bolsa de São Mateus”, “um osso do braço de Santa Ana”, “um pedaço da manjedoura de Belém”, “um palmo da túnica purpúrea de S. João Evangelista, duas das correntes que apertaram os tornozelos do apóstolo Pedro em Roma, o crânio de Santo Adalberto, a espada de Santo Estêvão, uma tíbia de Santa Margarida, um dedo de São Vital, uma costela de Santa Sofia, o queixo de Santo Eobano, a parte superior da omoplata de São Crisóstomo, o anel de noivado de São José, um dente do Baptista, a vara de Moisés, uma rendinha rasgada e finíssima do vestido nupcial da Virgem Maria”, “um pedaço do maná que alimentou os hebreus no deserto” e frascos com “os detritos calcinados da cidade de Sodoma” e “cal dos muros de Jericó”.
Guilherme, velho e sabido, deita água fria no espanto de Adso: “Não te encantes demasiado com estas custódias. Fragmentos de cruz vi muitos outros, noutras igrejas. Se fossem todos autênticos, Nosso Senhor não teria sido supliciado sobre duas hastes cruzadas, mas sobre uma floresta inteira”. Acrescenta ter visto numa catedral alemã “o crânio de João Baptista com a idade de 12 anos” e quando Adso se admira, por o Baptista ter sido morto em idade mais avançada, Guilherme retorque, mantendo um ar sério: “O outro crânio deve estar noutro tesouro”.
Eco faz Guilherme de Baskerville prefigurar, no século XIV, a crítica que Calvino faria dois séculos depois, no Traité des reliques, à proliferação de fragmentos da Verdadeira Cruz: “Não há abadia, por pobre que seja, que não possua uma amostra […] Se se reunissem todos os pedaços, seriam suficientes para encher um navio. E, todavia, os Evangelhos atestam que bastou um homem para a carregar”. Também Martinho Lutero comentara sarcasticamente o facto de a Alemanha albergar os túmulos de 26 apóstolos, quando estes eram apenas 12.
Mas a sátira de Eco à devoção em torno das relíquias tem antecedentes ainda mais antigos: numa das histórias do Decameron, escrito por Bocaccio entre 1348 e 1353, surge um Frei Cipolla que tenta impingir aos florentinos, por uma boa maquia, várias relíquias, entre as quais está uma pena do Arcanjo Gabriel, recolhida quando da Anunciação à Virgem Maria em Nazaré (e que depois se verifica ser uma pena de papagaio).
Frei Cipolla, que é homem de exuberantes dotes retóricos, seduz os potenciais compradores contando que, nas suas deambulações pela Terra Santa, o patriarca de Jerusalém lhe concedera o privilégio de ver as relíquias que tinha à sua guarda e onde se contavam “um dedo do Espírito Santo, tão completo e são como sempre estivera, um tufo de cabelo do serafim que aparecera a São Francisco, uma unha de um querubim […], algumas vestes da Santa Fé Católica, alguns raios da estrela que apareceu aos Magos do Oriente, uma ampola com o suor que escorreu de São Miguel na sua luta com Satanás e a mandíbula de Lázaro”. Cipolla pretende ter consigo, além da já mencionada pena, “uma pequena ampola contendo o som dos sinos do templo de Salomão […], um dos tamancos de São Gerardo de Villamagna […] e alguns dos carvões usados para grelhar o santíssimo mártir Lourenço”, cuja autenticidade é atestada por uma carta do patriarca de Jerusalém.
Os coleccionadores rivais
Mas nem a mente zombeteira de Bocaccio seria capaz de imaginar que, século e meio depois, Frederico III, o Sábio (1463-1525), Eleitor da Saxónia, haveria de reunir na igreja de Todos os Santos, no seu castelo de Wittemberg, uma colecção de relíquias que, no inventário de 1509 já registava 5.005 peças, mas que haveria de crescer, em 1518 para 17.443 peças e em 1520 para 19.013 peças.
Esta caça à relíquia foi espicaçada pela rivalidade de Frederico com outro grande coleccionador de relíquias, Alberto de Brandenburg, que, depois de ser nomeado arcebispo de Mainz, se dedicou a dilatar a colecção reunida pelo seu antecessor (irmão de Frederico). A colecção que Alberto reuniu em Halle atingiu as 8.133 relíquias, entre as quais estavam 42 esqueletos de santos e mártires, e obrigou à construção de uma nova igreja para as albergar.
Quer Frederico quer Alberto ordenaram que fosse preparado um luxuoso catálogo, profusamente ilustrado, para fazer alarde do esplendor das suas colecções – o Wittenberger Heiltumsbuch (1509), relativo à colecção de Frederico contou com gravuras de Lucas Cranach o Velho, o Hallisches Heiltumsbuch, relativo à colecção de Alberto, conheceu duas edições, em 1520, com 237 gravuras de Wolf Traut e um retrato do arcebispo por Albrecht Dürer, e outra em 1525-6, com 348 gravuras.
Na colecção de Wittemberg figuravam 33 fragmentos da cruz de Cristo, partes do berço do Menino Jesus, palha da Santa Manjedoura, uma pepita de ouro oferecida por um dos Reis Magos, pão da Última Ceia, um ramo calcinado da sarça ardente de Moisés, farrapos de um véu salpicado com o sangue de Cristo, um polegar de Santa Ana e leite da Virgem Maria.
Além da devoção e da rivalidade, havia outra razão de monta para Frederico acumular relíquias: o Papa delegara na colecção de Wittemberg o privilégio de conceder indulgências, ou seja, o peregrino que a visitasse poderia obter a remissão dos seus pecados e assim diminuir a duração da sua penitência no Purgatório. Foi calculado que o poder remissor combinado das 17.443 relíquias constantes da colecção de Frederico em 1518 seria capaz de subtrair 1.902.202 anos à permanência das almas no Purgatório. Não fica é muito claro como poderia um peregrino prestar a devoção apropriada a cada uma das 17.443 relíquias, de forma a obter o correspondente perdão na pena.
A negociata foi denunciada por Martinho Lutero como sendo iníqua e foi ela, juntamente com o negócio de venda de indulgências promovido por Leão X – cujo agente na Alemanha era Alberto de Brandenburg – que levou à contestação veemente da autoridade da Igreja de Roma, que teria o momento crucial na publicação das suas 95 teses sobre o poder e eficácia das indulgências, documento seminal na Reforma protestante.
Seria a Reforma a ditar o destino das colecções de Frederico e Alberto: o espírito da Reforma que tomou rapidamente conta da região fez dissipar-se o interesse pela veneração de relíquias, as colecções deixaram de ser exibidas ao público e as relíquias acabaram por ser negligenciadas, dispersas, vendidas ou até destruídas pelos sucessores de Frederico e Alberto – hoje pouco mais delas resta para lá dos sumptuosos catálogos.
O Santo Prepúcio
Em “Andar em busca de tesouros”, texto incluído em Construir o inimigo (Costruire il nemico, 2011), Umberto Eco regressou ao assunto da multiplicação das relíquias aflorado em O nome da rosa e fornece um inventário extenso, variado e hilariante (pelo menos para não crentes). Nele dá-nos notícia do furto do prepúcio de Jesus, da igreja de Calcata, em Itália, em 1983, uma perda mitigada pelo facto de também Antuérpia, Besançon, Charroux, Chartres, Conques, Coulombs, Fécamp, Hildesheim, Langres, Metz, Puy-en-Velay, Roma e Santiago de Compostela reclamarem a posse de tal relíquia.
A multiplicidade de Santos prepúcios levou várias igrejas a tentar obter do Vaticano a confirmação oficial da autenticidade do seu: no início do século XII, a abadia de Charroux chegou a levar o seu prepúcio, que alegava ter recebido de Carlos Magno (que por sua vez o recebera de um anjo), até Roma, em procissão, na esperança de que Inocêncio III (Papa entre 1198 e 1216) o certificasse, mas este evitou comprometer-se. A persistência dos monges de Charroux acabaria por ser compensada quando Clemente VII (Papa entre 1523 e 1534) reconheceu o prepúcio e concedeu indulgências a quem fizesse a peregrinação até à abadia.
Tal não bastou para extinguir a disputa em torno do Santo Prepúcio que acabou por recrudescer em ferocidade – o que se compreende, já que esta seria a única relíquia a consistir numa parte do corpo de Jesus, enquanto as outras são apenas objectos por ele usados ou a ele associados. A polémica tornou-se tão acesa que, em 1900, a Santa Sé decretou que quem quer que discutisse o assunto publicamente seria excomungado.
Seja como for, acaba por haver justiça poética no caso do Santo Prepúcio de Calcata, pois se um furto o levou, também fora um furto que o trouxera: a relíquia tinha sido roubada do palácio papal de Latrão, por um soldado alemão durante o saque de Roma em 1527 – na fuga, o soldado fora preso em Calcata e a família Anguillara, que dominava a região, tomou conta da relíquia e tornou-a numa atracção.
Todavia, há uma outra relíquia que pode ser vista como tendo feito parte do corpo de Jesus: é o seu cordão umbilical, que estará na Basílica de São João Latrão (San Giovanni in Laterano), que, tendo sido a primeira igreja construída em Roma, se encontra excepcionalmente bem fornida de relíquias: uma tábua da mesa da Última Ceia, as cabeças de São Pedro e São Paulo (sem que ninguém ache contraditório que os túmulos destes santos, noutros locais de Roma, incluam as respectivas cabeças) e a Scala Sancta, ou seja, a escada do palácio de Pôncio Pilatos em Jerusalém, pisada por Jesus e trazida para Roma por Santa Helena (mãe do imperador Constantino), que foi uma das mais activas importadoras de relíquias da Terra Santa.
Em O último segredo, José Rodrigues dos Santos constrói uma intriga rocambolesca em torno da possibilidade de clonar Jesus (um projecto assente na pueril presunção de que o Jesus 2.0 traria ao mundo mudanças comparáveis às do original), a partir do ADN recuperado de vestígios encontrados num túmulo descoberto em Jerusalém e atribuído à família de Jesus. A posse desta amostra de ADN motiva loucas perseguições, decifração de charadas e vários homicídios, uma azáfama que poderia ter sido evitada se as personagens de O último segredo estivessem informadas sobre a vasta escolha de prepúcios, ainda que se mantivesse, é certo, o embaraço de apurar qual seria o genuíno.
Há porém que ter em conta que alguns teólogos defendem que quando Jesus ascendeu aos céus, terá sido acompanhado pelo seu prepúcio. O erudito Leo Allatius (c.1586-1669), que foi bibliotecário-mor do Vaticano, terá afirmado, no tratado De praeputio Domini Nostri Jesu Christi diatriba (Discussão sobre o prepúcio de Nosso Senhor Jesus Cristo), hoje desaparecido, que, ao ascender aos céus, o Santo Prepúcio se converteu nos anéis de Saturno (identificados poucos anos antes por Christiaan Huygens). O cordão umbilical de Jesus seria ponto de partida mais adequado para clonagem, mas de qualquer modo seria preciso saber se os doutos teólogos entendem que o cordão umbilical também terá deixado este mundo no momento da ascensão de Jesus.
Cueiros, berços, sandálias e outro bricabraque
Outra relíquia associada à infância de Jesus são os Santos Cueiros: o Duomo de Spoleto, em Itália, exibe um pano de linho com 20 x 25 cm, que se pretende ter desempenhado tal função, o que é corroborado por um certificado de autenticidade emitido em 1175 pelo Papa Alexandre III. Ainda que Maria e José fossem pobres, é plausível que tivessem várias mudas de fraldas, pelo que neste caso a multiplicação de relíquias não deverá ser encarada com suspeição: há pois que crer que estarão de boa fé as catedrais de Dubrovnik, na Croácia, e Aachen, na Alemanha, quando reclamam também a posse de relíquias similares. De qualquer modo, paira sobre este tipo de objectos alguma indefinição semântica, pois há quem traduza por “cueiros” o que seria a tira de pano em que era uso envolver os bebés.
O mosteiro de São Paulo, no Monte Athos, na Grécia, parece conservar alguns dos presentes trazido pelos Reis Magos (mas por esta altura já a loja não aceitará devoluções). Santa Maria Maggiore, em Roma, alberga, entre outras preciosidades, o berço de Jesus e fragmentos da Santa Manjedoura.
As sandálias de Jesus estão, alegadamente, na Abadia de Prüm, na Alemanha, à qual foram ofertadas pelos Papas Zacarias (papa de 741 a 752) e Estêvão II (de 752 a 757). Não há porém indícios de que esta relíquia – que foi identificada como os restos de um par de chinelos do período merovíngio – tenham mais a ver com Jesus Cristo do que outro calçado que é publicitado com o seu nome.
Quanto aos pregos usados na crucificação, há hoje uma trintena que é alvo de veneração (outras fontes contam quase cinco centenas), o que poderia indicar uma tremenda falta de jeito dos legionários romanos – a tradição cristã estipula que a crucificação apenas empregou três. Como se não houvesse já suficientes santuários dotados de Santos Pregos, Simcha Jacobovici (co-autor de A vida privada de Jesus) realizou “The nails of the cross”, mais um dos seus documentários sensacionalistas, que “demonstra” que os verdadeiros pregos não são nenhuns dos que estão na posse de igrejas e abadias, mas outros que foram descobertos em 1990 num túmulo perto de Jerusalém.
Se de pregos parece estar bem servida a devoção cristã, há relíquias que são únicas e cujo paradeiro é hoje desconhecido. Uma dessas perdas irreparáveis foi a desaparição, no rescaldo da infausta IV Cruzada, de “uma porção do esterco do burro em cima do qual Jesus entrou em Jerusalém”, que se encontrava em Constantinopla. Alguns crentes poderão, todavia, encontrar consolo em saber que a igreja de Santa Maria in Castello, em Génova, alberga a cauda do dito jumento e a exibe nos Domingos de Ramos.