Tudo começou há umas semanas. Correu a notícia de que Daniel Craig teria recusado 90 milhões de euros a troco de mais dois volumes do franchise e abriu oficialmente a época do palpite: quem será o próximo Bond? Tom Hardy? Tom Hiddleston? Idris Elba? A hipótese deste último, o inesquecível “Stringer” Bell de “The Wire”, já aquecera a polémica: seria um 007 negro ainda o 007 de Ian Fleming? A procissão, porém, ainda ia no adro. Na semana passada, Gillian Anderson twittou uma imagem dela própria sobre o clássico fundo do genérico da saga com a legenda: “It’s Bond, Jane Bond”. Seria possível? Poderá o mais célebre agente secreto do mundo, à sétima encarnação, mudar de sexo?

Argumento contra para aqui, argumento a favor para ali, agora é Emilia Clarke, numa entrevista ao “Daily Mail” que deveria ter servido para promover o seu novo “Me Before You”, a voluntariar-se para o papel.

Apresentemos, desde já, uma declaração de voto: James Bond é James Bond. Uma personagem com determinadas características, criado por um determinado autor, com um determinado fim. É um homem que se sente tão à vontade na conversa de salão como na luta corpo a corpo (nos vários tipos, aliás, de luta corpo a corpo). Apesar de ligeiras nuances ao longo da história – mais ou menos sarcástico, mais ou menos simpático, mais ou menos musculado – permanece, no essencial, o que sempre foi: alguém que é sedutor e implacável, inteligente e reservado. Provavelmente, um sociopata, não parece capaz de se apaixonar ou sentir remorsos. É um homem branco, inglês, vivido, com rugas, mulherengo, solitário, que gosta de velocidades, martinis e jogar no casino. Não é negro nem é mulher. Tal como não é um jovem surfista, nem um maluquinho dos computadores, nem um punk, nem um mestre zen, nem um sentimentalão incorrigível, nem um literato, nem um piadista, nem um talentoso tocador de violino nem um célebre jogador de bisca lambida. Crie-se um grande agente secreto negro e uma grande agente secreta mulher. Que sejam personagens próprias, com autenticidade, dignidade, características e finalidades próprias, e não meras versões de um original célebre feitas à pressa para sossegar as inquietações do espírito do tempo.

Ainda assim, agora que a discussão chegou a este ponto, torna-se irresistível pensar: quem daria uma grande Jane Bond?

Gillian Anderson

BEVERLY HILLS, CA - JANUARY 12: Gillian Anderson arrives at The Weinstein Company and NetFlix 2014 Golden Globe Awards after party held on January 12, 2014 in Beverly Hills, California. (Photo by Michael Tran/FilmMagic)

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Foi ela que começou a conversa; logo, é justo que a conversa comece por ela. Na verdade, a eterna Scully dos “Ficheiros Secretos” reúne algumas características interessantes para o lugar: não tem dificuldade em convencer como personagem inteligente e reservada, vive mais do charme do que da beleza evidente e até tem a idade: 47 anos bem conservados. Ainda que seja uma americana de Chicago, é de ascendência inglesa e irlandesa e não tem dificuldade em adotar um sotaque brit quando e onde quer. Tem a pele tão branca e o cabelo tão ruivo como o melhor inglês e anos de experiência a dizer o texto atrás de um revólver. Mas alguém a está a ver numa sequência de ação? A saltar de aviões, a lutar em cima de comboios em andamento, à pancada com ninjas do mal e no mano a mano com psicopatas com queixo de ferro ou sádicas guerrilhas de traficantes nas ruas de uma capital latino-americana? Não, né? Gillian, se nos estás a ouvir, não faças confusão: nós amamos-te de paixão, mas o cavalheirismo impede-nos de te pedir que mudes um pneu, quanto mais que vás ali desfazer à pancada um batalhão de russos musculados que disparam tiros das orelhas a mando dum feioso paranóico que quer dominar o mundo porque a mãe não lhe deu o amor bastante.

Emilia Clarke

HOLLYWOOD, CA - MARCH 18: Actress Emilia Clarke arrives at the premiere of HBO's "Game Of Thrones" Season 3 at TCL Chinese Theatre on March 18, 2013 in Hollywood, California. (Photo by Kevin Winter/Getty Images)

Passando agora à outra candidata autoproposta à vaga para 007. Emilia mostrou ter fibra para a ação na última instalação da saga “Exterminador”. Na verdade, há que dizê-lo, foi uma digna Sarah Connor, papel que, porém, permanece propriedade da histórica “badass” das miúdas duras: Linda Hamilton. No entanto, e recordando as imorredouras palavras de Manuel Pinho, ainda tem de comer muita papa Maizena. Emilia, que conhecemos melhor enquanto Daenerys Targaryen, ainda só tem 29 aninhos e meia dúzia de trabalhos no currículo. E, depois, convenhamos… Mesmo que aceitássemos que o sexo não é uma característica importante na definição da personagem, há algo de que continuaríamos a não abrir mão: querer para Bond alguém um pouco mais robusto do que a segunda personagem mais baixa da “Guerra dos Tronos”. Sim, talvez a fama de mãe de dragões, filha da tempestade, rainha dos Sete Reinos e tal, tenha subido à cabeça do metro e 57 de Emilia. Sobretudo quando temos ali ao lado o metro e 66, os 42 anos e o carisma de Lena “Cersei Lannister” Headey.

Charlize Theron

BURBANK, CALIFORNIA - APRIL 09: Actress Charlize Theron attends the 2016 MTV Movie Awards at Warner Bros. Studios on April 9, 2016 in Burbank, California. MTV Movie Awards airs April 10, 2016 at 8pm ET/PT. (Photo by Emma McIntyre/Getty Images for MTV)

Deixemos, pois, as concorrentes oficiais e passemos às sugestões do júri do Observador, aqui representado por este vosso servo. Bond tem, como dizíamos a princípio, uma qualidade particularmente diferente de outros heróis: está tão à vontade no casamento dos príncipes do Mónaco como numa cena de pancadaria numa rua de Marraquexe. É um menino-bem caceteiro. Alguém que sabe tudo sobre estilo e sopapos – não é fácil encontrar alguém assim. Ora, se há uma mulher que já provou ser capaz do mesmo é Charlize Theron. Sim, Charlize, linda de morrer, 40 anos, quase um metro e 80 de altura. O mundo descobriu-a nos anúncios da Martini (aqueles do Martini Man que estava sempre de lábios secos e incomodado com o sol. Pois. A Charlize era aquela moça a quem o vestido prendia ao passar e ia desfiando até… enfim. Até o logo da Martini aparecer por cima e nos deixar a imaginar). Quem os viu, sabe do que estamos a falar: Charlize, ex-modelo, é o máximo do estilo que vamos encontrar, e ao mesmo tempo, uma atriz capaz de se tornar do mais duro que há – testemunhas do último “Mad Max” levantem o braço, por favor. Sim, é sul-africana. Mas, para quem, como ela, já se conseguiu transformar em feia abrutalhada – conferir “Monster” (2003), que lhe valeu o Óscar – fazer-se passar por inglesa é café pequeno. Ah! Mas, se ela é tão linda e tal e tem tanto a ver com Bond, porque é que nunca foi bond girl? Precisamente, amigos. Precisamente. Rapariga que sirva para bond girl não serve para James Bond. Temos dito.

Kate Winslet

TORONTO, ON - SEPTEMBER 14: (EDITORS NOTE: Image was altered with digital filters) Actress Kate Winslet attends 'The Dressmaker' premiere during the 2015 Toronto International Film Festival at Roy Thomson Hall on September 14, 2015 in Toronto, Canada. (Photo by Mike Windle/Getty Images)

Chegados a este ponto do exercício, de repente, sugerir para novo Bond alguém como Kate Winslet corre o risco de já parecer uma ideia muito razoável. Inglesa, 40 anos, excelente em todos os registos, Kate tem ainda aquele extrazinho de classe. Há um problema, claro: é a ex-mulher de Sam Mendes, o realizador que tem estado atrás das câmaras nos mais recentes tomos da coleção. Além de não sabermos se teriam ou não problemas em trabalhar juntos, sobra sempre a questão: quem ficaria com as crianças? À parte isso, Kate também não parece ter a força nem a destreza para varrer andares inteiros de malfeitores. Talvez tivesse de optar por registo mais Roger Moore, charmant e piadista. Já agora, a Jane Bond teria bond boys ou, na mesma, bond girls? Continuaria a pedir o seu Martini com vodka e um toque de limão “shaken, not stirred”? Ou optaria por uma coisinha leve tipo Somersby? Ou mesmo, em dias mais difíceis, por água lisa? Chá? Uma cola zero? Leite de espelta, anyone?

Emily Blunt

BEVERLY HILLS, CA - AUGUST 13: Actress Emily Blunt attends HFPA Annual Grants Banquet at the Beverly Wilshire Four Seasons Hotel on August 13, 2015 in Beverly Hills, California. (Photo by Frazer Harrison/Getty Images)

Antes que o batalhão de feministas que por esta altura já teremos à perna nos faça a folha, uma confissão: sete mil caracteres mais tarde, a ideia de um James Bond feminino começa a já não parecer assim tão estapafúrdia. Os últimos dois nomes que vamos lançar para a mesa dariam, possivelmente, grandes Bonds. Aliás, quem é queremos enganar? Dariam grandes tudo o que elas quisessem. Emily Blunt, que só não pedimos em casamento porque John Krasinski tem um metro e 91 e lembrou-se disso primeiro, é uma londrina de 33 anos a quem uns recordarão de “O Diabo Veste Prada” ou “Os Agentes do Destino” e outros de “Sicário” ou “Looper”. Bonita e com pêlo na venta, Emily tem ar de quem consegue distribuir uns tabefes sem perder muito a compostura. E tem, sobretudo, outra coisa: aquela “queen quality” que esbanjou em “A Jovem Vitória”. Há, aliás, outra atriz que fez de rainha de Inglaterra – Isabel II, no caso – e que só não propomos a Jane por causa da idade: Helen Mirren. Carismática e incomparavelmente elegante, não dá candidata mais séria porque já leva 70 primaveras e isto não há pacto com o diabo que resista ao confronto com a realidade. A verdade é que desarmaria exércitos inteiros de vilões só com uma ordem. Na ausência dela, avança Emily Blunt. Porque talvez o teste decisivo no casting das Janes seja este mesmo: quem tem qualidade para fazer de rainha de Inglaterra, tem qualidade para fazer de Bond.

Cate Blanchett

LONDON, ENGLAND - FEBRUARY 14: Cate Blanchett attends the EE British Academy Film Awards at the Royal Opera House on February 14, 2016 in London, England. (Photo by Ian Gavan/Getty Images)

E se de mais provas precisássemos para o que acabámos de dizer, aqui as teríamos: Cate Blanchett, que talvez já não se recorde bem, mas que descobrimos todos mais ou menos ao mesmo tempo a fazer da virginal rainha Isabel I em “Elizabeth” (corria o ano da graça de 1999, os toques polifónicos eram o último grito da tecnologia e a Academia não se lembrou de melhor do que dar o óscar que era obviamente de Cate à insossa Gwyneth Paltrow de “Shakespeare in Love”). No talento, todos reparámos logo; na beleza, então escondida debaixo do aspeto de cera da personagem histórica, muitos só atentariam mais tarde, da leveza de um “Bandidos” à ambição de um “O Aviador”, passando por dramas como “Notes on a Scandal” ou épicos como “The Curious Case of Benjamin Button”. Cate Blanchett, que é australiana, mas quem se importa?, só não é declarada melhor atriz do mundo com caráter vitalício porque isso daria direito a luta na lama com os indefetíveis de Meryl Streep. A uma hipotética Jane Bond teria a oferecer não só esse inesgotável talento, como a classe dos seus 47 anos e a elegância do seu metro e 74. Na verdade, Blanchett é tão talentosa que tanto poderia fazer de Jane Bond como do próprio James Bond. Se alguém não entender ou concordar com esta última afirmação, é favor ir revê-la na pele de Bob Dylan em “I’m Not There”, fita de 2007 dirigida por Todd Haynes.

Finalmente, sim, temos de reconhecer que há pelo menos uma característica da personagem Bond que tem potencial para ser ainda melhor explorada numa Jane do que num James: a paixão pelos gadgets. Imagine-se as armas assassinas que Q não faria dum bâton, dum espelho de bolso, duma pochette, duns stilettos. Maus de todo o mundo, tremei. Isto já esteve muito mais longe de acontecer.

Alexandre Borges é escritor e guionista. Assinou os documentários “A Arte no Tempo da Sida” e “O Capitão Desconhecido”. É autor do romance “Todas as Viúvas de Lisboa” (Quetzal).