Quando regimes autoritários, como é o caso daquele que hoje impera na Rússia, começam a ter problemas com a sua estabilidade interna ou externa, tentam sempre arranjar inimigos dentro e fora do país. No caso do “czar” Vladimir Putin, já necessita de ressuscitar temas e métodos claramente medievais.

A Igreja Ortodoxa Russa, pela voz de alguns dos seus altos dignitários, vem levantar novamente a questão do “assassinato ritual” de Nicolau II, último czar russo, da esposa e filhos. Na conferência “Processo do assassinato da família do czar: novas investigações e materiais. Discussão”, Tikhon, bispo de Egorevski, declarou: “Olhamos da forma muito séria para a versão do assassinato ritual. Mais, parte significativa da comissão da Igreja não tem dúvidas de que assim foi”.

Na noite de 16 para 17 de Julho de 1918, revolucionários comunistas, entre os quais havia alguns judeus, fuzilaram 11 pessoas na cidade de Ekaterimburgo, entre as quais estavam sete da família real.

Marina Molodtzova, representante do Comité de Investigação da Rússia, anunciou que “a investigação planeia realizar uma investigação judicial psicológico-histórica para resolver a questão ligada nomeadamente ao carácter possivelmente ritual do assassinato da família do czar”.

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É verdade que nem o bispo ortodoxo, que os órgãos de informação russos dizem ser o “confessor” de Putin, nem Marina Molodtzova pronunciaram a palavra “judeus”, mas qualquer cidadão russo minimamente informado compreende que ele se refere a esse povo.

Esta tese não é nova e foi avançada por emigrantes monárquicos russos que fugiram da Rússia depois da revolução comunista de 1917. Nomeadamente, acusaram os assassinos de terem decepado as cabeças das vítimas e enviando-as para o Kremlin como prova de que tinham cumprido a missão. O facto de esse crime ter sido cometido sob a direcção de um bolchevique judeu Iakov Iurovski a mando de outro judeu, o líder comunista Iakov Sverdlov, é apresentado como uma espécie de “ritual cabalístico”.

Investigações forenses e científicas realizadas posteriormente vieram desmentir essa tese. Depois de vários estudos realizados na Rússia e Inglaterra com os restos mortais (incluindo crânios) de várias pessoas encontradas enterradas perto de Ekaterimburgo, o Comité de Investigação da Rússia reafirmou, em 2015, que se tratavam dos restos mortais da última família real russa.

O historiador russo Andrei Zubov considera que essas acusações não têm sentido porque “o Judaísmo não conhece a prática dos assassinatos rituais e os sacrifícios humanos são considerados um crime grave na Torá (livro sagrado dos judeus)”. Além de mais, ele chama a atenção para o facto de os comunistas, “sendo ateus aguerridos, não cometeram, nem podiam cometer assassinatos rituais”.

Porém, a Igreja Ortodoxa Russa, que elevou à categoria de santos Nicolau II e a sua família no meio de grande polémica, continua com dúvidas sobre os resultados da investigação e apoia publicamente, ao mais alto nível, a tese do “assassinato ritual”.

Isto provocou uma reacção imediata das organizações judaicas da Rússia. “O emprego de semelhantes expressões é indigno, não sei o que nelas há mais: ignorância, estupidez ou obscurantismo. Em qualquer dos casos, isso mostra a degradação da sociedade russa e exige uma reacção por parte da Igreja e da direcção do país”, declarou Borukh Gorin, porta-voz da Federação das Comunidades Hebraicas da Rússia.

Alexandre Boroda, presidente dessa organização, vai mais longe e recorda: “as acusações de assassinatos rituais realizados por chefes provocou numerosas vezes a centenas e milhares de vítimas”.

Tendo em conta as perseguições a que os judeus foram sujeitos no Império Russo e na União Soviética, seria de esperar uma reacção clara do Kremlin, mas Vladimir Putin, através do seu porta-voz Dmitri Peskov, lava as mãos como Pilatos, considerando que esta questão não é da competência do Presidente.

“Essa questão não está na nossa ordem de trabalhos”, declarou Peskov.

À medida que se vai aproximando a data das eleições presidenciais russas, marcadas para Março de 2018, a propaganda tenta apresentar o Presidente Putin como o salvador da Rússia e do mundo face aos “inimigos externos e internos”, o que tem levado também o Parlamento a aprovar novas medidas contra os órgãos de comunicação estrangeiros, a pretexto de evitar “ingerências externas” no escrutínio.