A economia é por definição escolher entre alternativas, num ambiente de recursos escassos. Nunca há almoços grátis, há sempre alguém a pagar. O que os políticos em geral fazem é adiar custos ou distribuir a factura pelos mais fracos ou sem poder de pressão. É a isto que temos assistido no país, proveitos generosos para alguns com custos para o povo em geral ou para pequenos grupos sem poder. Assim foi com as estradas desnecessárias, a política energética, a banca, as pensões e agora de novo com o arrendamento. A iliteracia financeira e uma sociedade infantilizada e que se auto-desresponsabiliza têm sido dois dos grandes aliados para a falta de qualidade das nossas políticas públicas.

O que se passou em Torremolinos com os estudantes em viagem de finalistas e, especialmente, a reacção de alguns pais expôs de forma dramática a hierarquia de valores de parte da sociedade portuguesa. A destruição tem como culpado o hotel e os pais consideram normal entregar os filhos para uma viagem com bar aberto a partir das 11 da manhã. É a desresponsabilização levada ao seu extremo, com os próprios filhos, e que exemplifica a atitude que temos tido em relação à dívida e aos ditos “direitos” ao salário, aos subsídios, às pensões, enfim a tudo, até a ter uma casa com a renda que se pode pagar no sítio favorito.

Estamos muito endividados? A culpa não é nossa, dirão, é dos alemães e eventualmente dos holandeses que nos emprestaram o dinheiro e ganharam bom dinheiro com isso. O Estado está falido e não pode pagar os salários que foram subindo muito mais do que a economia desde a primeira metade da década de 90? Quero lá saber, defendem, considerando que têm direito a esse salário e a um emprego para a vida, nem que para isso os serviços de justiça, segurança, saúde e educação piorem. Há pensões demasiado altas que em nada correspondem ao que se descontou e ao princípio geral de solidariedade entre quem tem mais e menos e entre gerações? Pouco me importa, dirão os beneficiários dessas pensões, porque a culpa não é deles, têm direito.

António Costa e os que apoiam o seu Governo conhecem e usam e abusam como poucos a sociedade em que nos transformamos. Garantem os nossos direitos iludindo o preço que estamos ou vamos pagar por eles. Tudo é apresentado como construído em defesa dos mais desfavorecidos quando uma análise mais profunda a muitas dessas medidas resulta em geral no efeito contrário. E nalguns temas nem se toca, como é o caso das rendas da energia.

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Vamos a alguns exemplos recentes.

As alterações à lei do arrendamento têm o desejável objectivo de proteger os idosos, as pessoas com deficiência, as famílias com rendimentos mais baixos e os arrendatários de casas degradadas de serem despejados. Nos valores da nossa sociedade é um objectivo que todos perseguimos. Não queremos, obviamente, ver em Portugal aquilo a que assistimos nos Estados Unidos, onde a polícia entra pelas casas a dentro e põe as pessoas que não pagam literalmente a viverem na rua. Mas quando se intervém num mercado, seja ele qual for, é preciso não confundir aquilo que se deseja com o que a actuação vai de facto produzir.

Primeiro, estamos a fazer com que os proprietários suportem os custos de uma política que é social. Ninguém espera que os donos dos supermercados paguem a alimentação das pessoas que não têm dinheiro para comer ou ainda que as empresas de energia paguem a conta de quem não aguenta a factura da luz. Mas parece considerar-se normal – como aconteceu no passado – fazer com que os proprietários das casas paguem o direito à habitação.

A crer nos dados fornecidos pelo Governo, o congelamento das rendas abrange sete mil contratos. Levando em conta o universo, ganhava-se mais se o Estado pagasse a diferença da renda livre aos proprietários. O objectivo de protecção das pessoas atingia-se sem os efeitos negativos desta medida.

E quais são os efeitos negativos? Contrariamente ao que pode parecer, a prorrogação do congelamento destas rendas terá como efeito aumentar ainda mais as rendas das casas que estão no regime livre, já que as outras estão como que “prisioneiras”. Ou seja, em vez de contribuir para arrefecer o mercado do arrendamento, esta medida lança mais achas para a fogueira.

No mesmo sentido vão os efeitos de impor agora aos proprietários que indemnizem os inquilinos no equivalente a dois anos de rendas quando querem fazer obras profundas (antes era um ano), exigindo-se ainda que a intervenção no imóvel corresponda a 25% do valor patrimonial. Há um conjunto de proprietários que deixará de ter dinheiro para pagar o despejo – serão obviamente os mais pobres – e, como consequência, menos casas serão reabilitadas e colocadas como oferta no mercado. O efeito é mais uma vez menos oferta de casas contribuindo-se também por esta via para o aumento das rendas das que estão livres.

E eis como medidas que parecem positivas têm um efeito negativo sobre o mercado do arrendamento, porque o Estado não quer assumir o seu papel social para o qual pagamos impostos.

O que se passa na banca é também um exemplo de desresponsabilização de quem deveria ser responsabilizado. No fim-de-semana soube-se através do Expresso que Nuno Vasconcellos, accionista da Ongoing – que entrou em insolvência – com Rafael Mora, tinha apenas uma mota de água para responder por uma dívida de 9,7 milhões de euros ao BCP. Em Março soube-se que Bernardo Moniz da Maia tem um mandato de captura da Interpol por suspeitas de ter lesado o Estado brasileiro. Este mesmo empresário esteve envolvido na guerra do BCP de 2007, foi administrador do grupo BES e o Novo Banco ficou-lhe com um barco e um avião por dívidas.

São dois de outros tantos exemplos que nos revelam para onde foi o dinheiro que os bancos estão a precisar, dos seus accionistas, como o BCP, ou dos contribuintes, como acontece com a CGD. Com a proliferação destes casos, o país, como sociedade, deveria estar a exigir alterações legislativas que facilitassem a acusação e prisão destes devedores assim como dos gestores que lhes concederam o crédito. Assim como deveríamos estar a exigir ter conhecimento dos grandes devedores que não estão a pagar os seus empréstimos à CGD. Mas nada disso está a acontecer e os dois inquéritos parlamentares à Caixa até parecem ter desaparecido.

Estes casos não são culpa de ninguém, são culpa nossa, enquanto sociedade. É a hierarquia de valores que temos, reflectida no seu grau extremo nas viagens de finalistas e de forma complexa na crise financeira do país, que torna tudo isto possível.

Nesta grande ilusão, os contribuintes pagam as crises dos bancos sem que ninguém seja responsabilizado, os proprietários suportam as rendas de quem não consegue pagar por uma casa, as novas gerações pagam com salários mais baixos os salários mais altos de quem está há mais tempo empregado, quem está a trabalhar paga as pensões que não vai ter e as gerações futuras pagarão a dívida que estamos a deixar. Os recursos são escassos e para uns terem mais os outros têm menos, essa é a escolha que acontece sempre no presente e entre gerações. E a escolha é nossa, a culpa é nossa. Quem nos governa apenas reflecte a imagem da nossa hierarquia de valores.