A UE esteve, durante semanas, a discutir questões logísticas sobre como lidar com os refugiados em fuga da Síria – quem receber, como fazê-lo, como dividir os esforços entre países, que condições oferecer, que custos financeiros isso representa, que riscos para a segurança e estabilidade das sociedades europeias. Mas cedo se apercebeu que o problema de raiz é político e que tem pouca utilidade discutir soluções para o que nem todos querem resolver. Estão em jogo a livre circulação de pessoas no Espaço Schengen e a afirmação dos valores europeus – ou dito de outro modo, parte fundamental do projecto europeu? Sem dúvida. Mas estão igualmente em causa, nos vários países europeus, delicados equilíbrios internos que nenhum líder pretende sacrificar. Apesar dos apelos emocionados, este lado da equação tem sido esquecido, mas é fundamental para entender aquele que será, talvez, o maior bloqueio político do nosso continente: a UE vive refém de populismos – os que governam e os que, pela sua crescente força eleitoral, condicionam quem governa.
A geografia fez com que o destino dos migrantes passasse pela Hungria e colocasse Viktor Orbán, o primeiro-ministro húngaro e uma espécie de tiranete, na linha da frente desta crise. Ora, é justo condenar Orbán por dar rosto à recusa de uma solução europeia e entregar à Alemanha a titularidade da resolução desta crise humanitária (sim, ao contrário do que se escreveu sobre a Grécia, esta é mesmo uma crise humanitária). Mas o problema não é Orbán que, apesar de tudo, só manda na Hungria e, em última instância, fará o que a UE mandar. O verdadeiro obstáculo político vive em França, no Reino Unido e, mais discretamente, nos vários países nórdicos e do Báltico, através da crescente afirmação de movimentos e partidos populistas anti-europeístas que, indirectamente, condicionam toda a tomada de decisão política.
Os exemplos mais óbvios são o francês e o britânico. Em França, ao longo dos últimos quatro meses, Hollande opôs-se firmemente à introdução de quotas para a distribuição dos migrantes pelos Estados-membros, procurando reduzir ao máximo o papel do seu país. Fê-lo, percebe-se, por receio da opinião pública, cada vez menos favorável a si e cada vez mais favorável à direita populista de Marine Le Pen. No Reino Unido, David Cameron foi resistindo ao aumento do número de refugiados a receber pelos britânicos, o que não deixará de estar relacionado com o contexto político que vive no seu país e no seu partido – pressionado para referendar a saída do Reino Unido da UE e com uma hostilidade crescente na sociedade face aos migrantes (visível nomeadamente em tabloides como o The Sun). Ora, na semana passada, ambos os líderes mudaram de opinião. Não o fizeram por causa dos milhares em desespero na estação ferroviária de Budapeste, nem dos sucessivos relatos de mortes no mar, em camiões ou no túnel de Calais. Fizeram-no à força, porque uma fotografia comoveu o mundo, converteu em drama concreto o que permanecia abstracto e virou a opinião pública. Mil mortos é estatística, uma criança afogada é uma tragédia.
Não vale a pena medir quanto tempo durará o choque com as imagens do menino morto na praia e o seu impacto na acção política, porque a resposta já é sabida. Durará pouco, como duraram as indignações à volta dos afogamentos no mediterrâneo antes do Verão. Nestes nossos tempos do twitter e do facebook, tudo o que é viral aparece e desaparece num piscar de olhos. Mas vale a pena assimilar a lição destes últimos dias: a política europeia não pode ficar na dependência de ondas de choque para agir e afirmar os valores europeus. A Europa não pode ter medo de ser Europa só porque abriga no seu seio partidos e movimentos que vivem para matar o projecto europeu, nem devem os líderes europeus acreditar que roubar a agenda política a esses populismos é forma de atenuar os seus perigos – pelo contrário, só massifica a sua mensagem.
Até ao momento, parece que a incompreendida Merkel foi a única líder europeia a entender realmente esse dever de afirmação perante as dificuldades e os populismos. Reconhecer que o que está em causa é o projecto europeu, como fez a chanceler alemã, não é apenas criticar Orbán e os burocratas europeus que encontram sempre mais problemas do que soluções. É, sobretudo, deixar uma mensagem: ou a Europa afirma os seus valores e salva estas vidas, ou a Europa perde o valor. Merkel tem toda a razão. E os principais destinatários da sua mensagem são os líderes europeus que, nos seus países, têm sobrevivido nas sondagens gerindo cedências aos populismos anti-europeus, deixando enfraquecer o projecto europeu. É que, de crise em crise e da Grécia ao mediterrâneo, Le Pen e os inimigos do projecto europeu têm somado mais vitórias do que derrotas. A continuar assim, um dia ganham mesmo.