No século XIX, usava-se a expressão “o homem doente da Europa” para designar um país cujas dificuldades ameaçavam pôr em causa os equilíbrios políticos europeus. Quem poderia ser hoje esse “homem doente”, do ponto de vista da União Europeia? A Grécia? A Grécia faliu, mas a UE pode bem continuar sem a Grécia. O Reino Unido? O Reino Unido vai sair, mas a UE já existiu sem o Reino Unido. A Itália? A Itália está estagnada, mas a Itália nunca teve um papel de liderança na UE. Não, o verdadeiro “homem doente da Europa” é outro: a França.

A integração europeia sempre fez sentido como um eixo franco-alemão. Mas o eixo requer que a França e a Alemanha estejam em equilíbrio. Em 1990, Mitterrand temeu que a unificação reforçasse a Alemanha, e impôs o euro, como meio de aprisionar a economia do vizinho. Mas ao contrário do que Mitterrand previa, a unificação enfraqueceu a Alemanha, o que inspirou as reformas de Schroeder para aumentar a competitividade alemã. A França, que nunca fez reformas desse tipo, começou a ficar para trás: tem hoje uma taxa de desemprego igual à portuguesa, e duas vezes a da Alemanha ou do Reino Unido. O eixo franco-alemão deixou de ser uma relação de iguais. Paris já não contrabalança o poder de Berlim.

Há anos que os governos franceses falam de reformas do mercado de trabalho ou da segurança social, mas as grandes leis reformistas dificilmente conseguem apoio parlamentar e são quase sempre contestadas na rua. A rua é uma instituição política em França, para a esquerda e também para a direita. A França foi sempre um país profundamente dividido, em que todas as questões suscitam impasses. Segundo a célebre fórmula de Michel Crozier, os franceses não fazem reformas, mas revoluções. De facto, nenhum outro país teve tantos regimes como a França desde o século XIX, nem mesmo Portugal. A França foi também a única grande democracia ocidental que, no pós-guerra, passou por um golpe militar (1958) e por uma situação revolucionária (1968).

O actual regime da V República, instaurada em 1958, é uma oligarquia de diplomados (como a IV República), mas com a disciplina de uma presidência monárquica. Esta fórmula gastou-se, depois dos mandatos falhados de Sarkozy, que não foi reeleito, e de Hollande, que nem tentou a reeleição. Em 1958, foi preciso mudar de regime para liquidar a Argélia francesa e liberalizar a economia. O presidente De Gaulle, sustentado no exército e no plebiscito, protagonizou essas viragens, que o parlamentarismo da IV República não conseguira realizar. Quase sessenta anos depois, a V República deixou de ser capaz desse tipo de grandes decisões.

O eleitorado alemão, mesmo com a imigração descontrolada de 2015, conserva-se fiel aos partidos do regime. Em França, porém, os candidatos presidenciais dos grandes partidos, Fillon e Hamon, arriscam-se a não passar à segunda volta. O jovem Macron, que tem dito tudo e o seu contrário, parece a última esperança das elites para seduzir os cidadãos mais desprevenidos. Le Pen e Mélenchon representam extremos opostos, mas recusam ambos a integração europeia, e quase pelas mesmas razões: porque implica modernizar a França de Jeanne d’ Arc e de Jean Jaurés. Uma segunda volta entre Le Pen e Mélenchon é o pesadelo: a vitória de qualquer um deles significaria uma ruptura política, dentro e fora da França.

Uma economia estagnada, instituições frágeis, divisões políticas e sociais das mais graves do continente, e um jihadismo que, recrutando na imigração muçulmana, impôs um “estado de sítio” que dura há dezoito meses: é em França que a Europa se parte ou se conserta.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR