As leis, em Portugal, são para cumprir “mais ou menos”. O conselho foi dado a por uma portuguesa a uma aluna de Erasmus. Depois do caso da CGD podemos dizer mais. Há leis em Portugal que mudam por causa do salário de uma pessoa. A Caixa não merece o que lhe está a acontecer como não mereceu o seu uso e abuso por sucessivos regimes.

O ministro das Finanças, o primeiro-ministro, o Presidente da República, o PCP, o Bloco de Esquerda, o PS, o PSD, o CDS… Todos parecem considerar normal que, num país, com a situação económica e financeira de Portugal, se mudem leis para garantir salários de excepção a gestores na banca, um sector central na crise que, ao mesmo tempo, enfrenta uma redução estrutural na sua rentabilidade e vai passar por uma autêntica revolução, com efeitos no emprego.

O Governo tomou uma boa decisão ao escolher António Domingues como presidente da CGD. Mas a partir daí correu tudo mal, sem que se perceba quem está exactamente a tomar as decisões. Presume-se que o ministro das Finanças com o conhecimento e a validação do primeiro-ministro. António Costa já disse, aliás, a propósito dos salários da gestão da Caixa que “pode ser muito impopular” mas que não arrisca “a má gestão na CGD, porque a estabilidade e o fortalecimento da CGD deu muito trabalho a conseguir”.

A ligação directa entre “má gestão” e “baixos salários” não resiste a observações casuísticas – basta pensar na recente história da anca portuguesa – nem a investigações académicas. Um trabalho realizado sobre empresas cotadas portuguesas da autoria de Paulo Alves, Eduardo Couto e Paulo Francisco mostra, entre outras conclusões, que o retorno para os accionistas é tanto maior quanto maior for o salário do presidente da empresa mas explica apenas uma pequena parte da remuneração dos CEO.

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Mas mesmo que o salário que António Domingues vai receber, no montante de 423 mil euros por ano, respeite o critério de eficiência – ou seja, dá à equipa de gestão os incentivos necessários e suficientes para uma boa gestão – a forma como se chegou até àquela remuneração reúne condições para destruir essa eficiência.

Primeiro olhemos para o efeito dentro da própria organização. António Domingues terá um salário que o coloca no meio dos seus pares mas será o mais elevado da história da CGD e corresponde ao mais recente episódio de desvalorização de quem trabalha na instituição. O plano de reestruturação foi feito de costas voltadas para os colaboradores, boa parte da equipa de gestão vem de cargos de direcção do BPI e três deles não tiveram a sua carreira na banca reconhecida pelo BCE – terão de fazer cursos de formação. Agora, quem trabalha na CGD vê quem os está a gerir a beneficiar de um regime de excepção sabendo que se prepara despedimentos.

As organizações, como sabe quem já teve experiências de gestão, têm vida própria e reagem negativamente a actuações intrusivas como são todas as reestruturações. Daí o tradicional lema: as reestruturações não se anunciam, fazem-se. E fazem-se com as pessoas. Uma actuação deste tipo só é racional se estiver planeado um muito significativo emagrecimento da Caixa, com despedimentos em massa, o que não parece ser o caso.

O segundo aspecto é ainda mais importante porque nos envolve a todos como pais e Estado de Direito. O Governo decidiu mudar o decreto-lei que consagra as regras para o gestor público e criou uma excepção para os gestores da CGD. O objectivo foi eliminar os limites salariais que estavam consagrados na lei mas com isso abriu a porta a outras excepções. O novo presidente da CGD vai poder acumular o seu salário com a pensão que recebe, quando mais ninguém que exerce funções públicas o pode fazer.

Pensava o Governo, pelo que disse o secretário de Estado Adjunto, do Tesouro e das Finanças, Ricardo Mourinho Félix, que com aquela excepção criada por medida, os gestores da CGD estariam igualmente dispensados de apresentar a declaração de património e de responsabilidades ao Tribunal Constitucional. Tinha sido propositado, dizia, para aproximar a CGD do que são as práticas do sector privado. Até se descobrir que uma lei de 1983, assinada pelo então primeiro-ministro Francisco Pinto Balsemão, impõe a apresentação dessa declaração, com preenchimento deste formulário.

O Governo preparava-se para dispensar a gestão da CGD do “Controle Público da Riqueza dos Titulares de Cargos Políticos” a que estão submetidos o Presidente da República, o primeiro-ministro, todos os membros do Governo, todos os gestores públicos e os próprios juízes do Tribunal Constitucional. Objectivo, mais uma vez: aproximar a CGD dos bancos privados, respondendo apenas ao Governo e ao supervisor.

Na realidade, se tal viesse a acontecer, a CGD estaria menos escrutinada que os seus pares directos, entidades cotadas em bolsa. Uma decisão deste tipo só faria sentido caso estivesse a planear-se a privatização da CGD, o que não é o caso. E mesmo privada, como salienta Manuel Carvalho em “O banqueiro que vergou o Estado”, é difícil identificar uma equipa de gestão que conseguisse dos seus accionistas o que António Domingues conquistou ao Governo.

Desde Abril que a CGD vive em sucessivos casos. Começou com os milhões anunciados para a capitalização e o infeliz “desvio” de Mário Centeno. Depois assistimos ao episódio da alteração das regras do modelo de governo, com a eliminação da comissão de avaliação. E mais tarde ao “chumbo” de administradores, só para citar alguns casos.

Depois de ter vivido os tempos difíceis da troika, sob a liderança de José de Matos, a limpar as asneiras do passado praticamente sem dinheiro para o fazer, este era o tempo de a CGD começar a olhar para a frente.

Valeu a pena mudar leis, pôr em causa o Estado de Direito? Esperemos que sim, embora aquilo a que se está a assistir nos recomende a esperar o pior. Porque cada novo caso parece ser pior que o anterior. Pede-se apenas bom senso. O país já tem problemas suficientes, não precisa de mais.