A guerra dos táxis, com o seu cerco do aeroporto, não é uma originalidade portuguesa. Em França, a campanha contra a Uber tem sido pior. Mas ao contrário do que por vezes se diz, esta história é mais do que a simples substituição das praças de táxis pelas aplicações móveis. É um problema do regime político, não é um problema de smartphones.

Durante muito tempo, o Estado permitiu que um número limitado de indivíduos e de empresas explorasse, em regime de exclusivo, o transporte público individualizado nas grandes cidades. Os preços eram tabelados, os profissionais vigiavam-se mutuamente, e ninguém inovava. Como os seus porta-vozes lembraram, os taxistas prestavam um “serviço público”. Eram, de facto, concessionários de um monopólio estatal. Para entrar no meio, era preciso investir na autorização legal e depois integrar-se nos costumes e rituais da corporação. Como em todos os “serviços públicos”, o próprio prestador, o seu posto de trabalho e o seu conforto tornaram-se a principal razão de ser do serviço. O utilizador passou a ser frequentemente tratado como um incómodo, segundo o costume das repartições públicas. Daí essa figura característica do “taxista”, de que toda a gente tem histórias. Daí, também, o seu “espírito de classe” e a sua cultura peculiar, que só existe porque o Estado, ao reprimir a concorrência, dispensou as empresas e os seus empregados de mimarem os utentes e até às vezes de os servirem bem, deixando-os à vontade para manifestarem todas as suas idiossincrasias. É significativa, a esse respeito, a enumeração dos objectivos da actual campanha por um dos líderes do sector: “defender postos de trabalho” e o “símbolo histórico e cultural do táxi”.

A “classe” revolta-se agora contra um Estado a quem teve de pagar alvarás e licenças, mas que se prepara, não para “legalizar” novos operadores, mas para pôr em causa o sistema. A questão não é uma plataforma, e os seguros, formação e situação fiscal dos seus condutores: é o sistema de numerus clausus, que garante rendas e desobriga de modernização. Por isso, na Grécia, em 2011, não foi preciso Uber para haver uma guerra de táxis: bastou o governo socialista de Papandreou acabar com o limite do número de licenças e baixar o seu custo de 80 000 euros para 3000. Em Julho de 2011, o aeroporto de Atenas e o porto do Pireu estiveram bloqueados por causa disso.

A reacção dos taxistas não é misteriosa: investiram num mercado fechado e a abertura vai desvalorizar os seus investimentos, como noutros países. A reacção do público, que se pôs ao lado da Uber, também não é estranha: como outras empresas da nova economia, a Uber fez pela primeira vez o passageiro sentir-se a prioridade da indústria. Talvez mais interessante seja a atitude do governo, que se absteve de proibições. Não viu vantagens em afrontar os consumidores, cuja rápida adesão à Uber, sem paralelo em Espanha, o El País explicou pelo “deficiente serviço de táxi” em Portugal (sim, o serviço da Uber existe porque “os clientes o desejam”)? Quis, neste caso, mostrar independência em relação ao PCP e BE? Ou foi tentado, no seu desespero orçamental, pela receita fiscal de novas actividades com facturas sempre electrónicas?

Tem-se falado muito de “reformas”. As reformas são sempre isto: o fim dos regimes proteccionistas que proporcionam rendas e permitem a empresas e a empregados desprezar utentes e consumidores. Porque é que o Estado começa a abandonar alguns dos seus protegidos? Não o faz, ao contrário das lendas em curso, por uma qualquer conversão ideológica, mas porque está arruinado, e porque as antigas barreiras resistem cada vez menos às novas tecnologias, hábitos e padrões de consumo. O que vai provocar mudanças não é o neo-liberalismo ou a malvada Sra. Merkel, são os desequilíbrios e as desadequações do regime vigente perante uma nova economia. Mas os antigos protegidos — empresas, corporações e sindicatos — hão de reagir. E nalguns casos, tentarão manter à força o que só a força do Estado lhes pode dar. Esta guerra dos táxis é só o começo.

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