Na semana passada, quando li que Pedro Passos Coelho (PPC) ainda se queixava de lhe terem “roubado a legislatura”, pensei que se tratava de uma patetice de um líder com dificuldades em aceitar a sua derrota e que queria, à força, reabrir um assunto encerrado. No meu artigo subsequente, socorrendo-me do critério de Condorcet, eu limitei-me a dizer o óbvio: face à Assembleia da República eleita, o primeiro-ministro preferido pela maioria era António Costa. Ou seja, por muito que nos desagradasse, mais do que legitimidade formal, Costa tinha toda a legitimidade eleitoral para ser primeiro-ministro.

Aquilo que eu pensava ser um artigo de Verão, razoavelmente leve e fresco, gerou uma torrente de comentários (e alguns insultos) quer aqui, quer no meu blogue, quer no Facebook, quer, directamente, por email. Ou seja, esta parece ser uma ferida ainda aberta na democracia portuguesa e era importante que cicatrizasse, para podermos virar a página e discutir o que deve ser discutido.

Houve quatro argumentos principais contra o meu artigo:

  1. quem tem mais votos é que ganha e mais nada — a PàF teve mais votos logo ganhou logo devia ser PPC o primeiro-ministro, qualquer coisa diferente é um roubo;
  2. a hipótese de uma coligação à esquerda tinha sido ocultada ao eleitorado, pelo que os portugueses votaram sem ter essa possibilidade em consideração;
  3. se os eleitores de esquerda soubessem que se ia formar a geringonça teriam votado de outra forma;
  4. a votação no parlamento que rejeitou PPC não era sinal seguro de que a maioria preferiria Costa dado que os deputados não são verdadeiramente livres para votar.

Com excepção do primeiro argumento, que é mais uma birra do que outra coisa, os outros argumentos são sérios e merecem ser rebatidos ou com factos ou com os dados empíricos disponíveis.

Coligação de esquerda ocultada ao eleitorado

É muito difícil de aceitar que este argumento seja verdadeiro. Na verdade, na semana anterior às eleições, foi capa do Expresso que Costa rejeitava um governo minoritário da PàF e que confiava na sua capacidade para fazer acordos à esquerda. Não precisam de acreditar em mim, podem ver a capa do Expresso que reproduzo em baixo (na sua parte relevante). Aliás, perante a hipótese de uma “coligação negativa” à esquerda, a PàF passou a apelar a uma “maioria positiva”.

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Perante isto, torna-se um pouco absurdo dizer que os eleitores votaram sem ter esta possibilidade em atenção. Mais do que absurdo, é mesmo factualmente errado. José Manuel Fernandes, aqui no Observador, três dias antes das eleições, explicou por que não ia votar no PS. Elencou vários motivos, mas especificou o mais sério deles todos. Passo a citar: “O sexto e último motivo, aquele que é mesmo o mais grave de todos, foram todos os sinais que deu de que prefere fazer pontes com os radicais que estão à sua esquerda do que entender-se com os que, à sua direita, sempre estiveram do lado do PS nos momentos decisivos da nossa democracia”. **

Portanto, sem qualquer margem para dúvidas, rejeita-se a hipótese de que os portugueses votaram sem ter em consideração que o PS se poderia coligar à esquerda. Afinal, houve até quem não tivesse votado no PS por causa disso mesmo.

Se os eleitores do PS soubessem, teriam votado de outra forma

Pode parecer o mesmo argumento que o anterior, mas há uma diferença subtil. Uma coisa era saber que a possibilidade de uma coligação à esquerda existia, outra coisa era acreditar que ela se ia verificar. Por exemplo, eu sabia da hipótese, mas sempre achei que não seria possível.

Não havendo factos que nos permitam confirmar ou infirmar esta hipótese, o melhor que existe são dados empíricos, como as sondagens. E, mais uma vez, os dados são claros e permitem rejeitar a tese de quem acha que as pessoas teriam votado de forma diferente. Três sondagens feitas na altura das negociações da geringonça, feitas por três casas de sondagem diferentes, mostram votações idênticas aos resultados eleitorais de 4 de Outubro. A notícia dos Expresso com a sondagem diz mesmo: “Se é daqueles que acreditam que o PS podia ser castigado com as negociações à esquerda e por se desviar do centro, este estudo da Eurosondagem mostra que está enganado.”

Falta de liberdade de voto na Assembleia da República

Este argumento é, na minha opinião, o melhor argumento de todos. Agradeço a António Alvim a pergunta que formulou em comentário ao meu anterior artigo: “houvesse liberdade de voto, como deveria haver, esta AR teria escolhido um governo ao centro ou a geringonça?” Sou particularmente sensível a esta dúvida porque me incomoda que a liberdade de voto exista apenas formalmente. Na verdade, os deputados são tratados como gado que seguem as ordens do pastor. E aqueles que não seguem em manada, logo terão as suas canelas mordidas pelos cães do pastor.

Nunca será possível responder cabalmente a esta pergunta, pelo que, mais uma vez, vamos ter de considerar os dados empíricos existentes. A forma mais difícil de impor a disciplina partidária é quando existe voto secreto — como vimos há uns dias a propósito da votação para o Presidente da Conselho Económico e Social, onde vários deputados fugiram à disciplina partidária arruinando o acordo a que as cúpulas tinham chegado. Infelizmente, o programa do governo de Passos Coelho não foi sujeito a votação secreta. Mas, uns dias antes, houve uma votação secreta altamente reveladora. Foi para a eleição do Presidente da Assembleia da República, a segunda figura hierárquica do país. Foi a primeira demonstração de força da geringonça (que ainda não passava de uma negociação). A esquerda mostrou estar unida em torno de um candidato do PS, Ferro Rodrigues. Na altura, houve muita especulação sobre qual seria o resultado e esta votação era considerada um teste às negociações que estavam a ser desenvolvidas à esquerda. Ferro Rodrigues teve menos votos do que a soma do PS+PCP+PEV+BE, mas, ainda assim teve os suficientes para ganhar com maioria absoluta. Ou seja, e sem qualquer espaço para dúvidas razoáveis, aplicando o critério de Condorcet descrito no meu artigo anterior, o vencedor era Ferro Rodrigues. Portanto, não sendo este indicador perfeito, a verdade é que, mais uma vez, os dados disponíveis apontam para que António Costa fosse o preferido pela maioria da contenda para primeiro-ministro

Conclusão

É preciso torcer muito os factos e os dados disponíveis, além de ter muito mau perder, para achar que houve algum roubo de legislatura. Ainda por cima, o tiro sai pela culatra: dada a fraqueza dos argumentos, apenas se reforça a legitimidade da dita geringonça. Da parte que me toca, dificilmente voltarei a este assunto. Há assuntos bem mais sérios para discutir.