1. Lembro-me como se a recordação estivesse em relevo: o Alberto tinha partido há sete dias, mas cada palavra dita pelo Padre Tolentino na pequena capela, trazia-o cada vez para mais perto de nós. Estava ali, ressuscitado pelo verbo intensamente intimo do poeta José Tolentino de Mendonça cujo caminho, na busca de Deus, se cruzara com o do Alberto Vaz da Silva que se inquietava na sua procura. Daquele modo tão dele, secreto e discreto, silencioso e singular e por isso único. Como quem chega vindo de alamedas menos percorridas e azinhagas longe do mundo que eram as de que o Alberto gostava, ele que às vezes parecia não ser deste mundo e talvez não fosse. Era assim, indecifrável e inclassificável. Terno e frágil. Amigo fraterno. Presente nas suas ausências como quando subitamente se personificava através de um sms, de um “billet doux”, se corporizava com um convite para almoçar em Mafra ou uma mensagem nunca descortinada à primeira, que o Alberto também podia desconcertar-nos.

Mas naquela celebração, numa tarde de luminosa primavera lisboeta, eis que a propósito daquele meu amigo, dei comigo a discorrer sobre como podem afinal ser infinitos e infinitamente vários os fios que tecem a relação com o transcendente e como são também misteriosamente vastos os modos como Deus nos fala.

Se os desígnios de Deus são insondáveis, os caminhos para lá chegar interpelam-nos também de muitas formas e de novo me lembrou o Alberto que O buscava sem passar pelo patamar da tradição ou da rotina e porventura olhava a ortodoxia de viés. Era uma coisa entre ele, o Pai, o Filho e o Espírito Santo e por isso era tão desafiadoramente uma “outra” coisa.

Fala-se pouco de Deus. Mas e se eu me pusesse a perguntar como se constrói o edifício da vida a meias com Ele? Se seguisse o voo de quem, pela regra ou pela margem vive interiormente esta “premência”, que alcançaria? Fiquei com isto na cabeça. A seguir, falei ao Padre Tolentino. Ou melhor, mandei-lhe um mail, o que me defendia do quase espanto que me causara a minha própria ideia: falar de Deus?

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José Tolentino Mendonça acolheu-me na “sua” Capela – afinal fora lá que o Alberto me inspirara e a sua memória, pensava eu, talvez ficasse bem aconchegada nestas digressões espirituais que me propunha fazer com os que se puseram ao caminho.

Chegou Setembro e com ele o tempo de mobilar esta história que a doce dolência do verão não esmorecera e a directa inspiração do Alberto ia tornando tão surpreendente.

Surpresa e não foi pouca: à medida que ia ter com gente de muitas proveniências, ia-se desenrolando diante de mim, como um novelo, uma unanimidade sem arestas: “falar de Deus? Ah que interessante, vou” ; “que boa ideia, Deus tem tanta relevância na minha vida”; “Deus? Que inesperado mas sim, quero ir”; “sim, conte comigo”, “irei sem dúvida, diga-me quando”.

Que sinais iriam emitir pessoas que vivem no teatro como Jorge Silva Melo, no futebol como Fernando Santos, no jornalismo como Henrique Monteiro, na política como Maria Belém ou Assunção Cristas, na poesia como Pedro Mexia, na advocacia e nos jornais como João Taborda Gama, nos palcos do fado como a Carminho, ou noutros palcos, como Marcelo?

“Passou um vento forte e violento e o Senhor não estava lá; houve um tremor de terra e o Senhor não estava lá; houve um fogo e o Senhor não estava lá; ouviu-se o murmúrio de uma brisa leve e Elias percebeu que era o Senhor”.

Pois bem, tem corrido uma “brisa leve”. De modos diversíssimos, a brisa traz sinais, testemunhos, sintonias, encontros. Fonte. Fé. Vontade. Serviço. Santíssima Trindade. Partida com regresso.

Uma paisagem humana entrecruzada de mil caminhos com Deus ao fundo, ali ao Rato.

E o Alberto, claro. Estou certa que nos escuta de uma qualquer frisa de boca, debruçado sobre nós e olhando cá para baixo com o seu sorriso afectuoso para nos poder ouvir a falar-lhe, também a ele.

2. Espantou-me que as palavras – ditas em duas ocasiões – pelo cardeal patriarca de Lisboa, sobre o actual momento da vida portuguesa, tenham caído num poço de ar. Ou quase. D. Manuel Clemente costuma usar de um verbo forte, inspirado, interpelativo, que chega a todos os ouvidos. Não fala de cor, não desce à praça publica a toda a hora, não exprime “sentimentos” pessoais. Intervém para avisar ou iluminar melhor as coisas que são de todos, dizendo o que lhe parece ser o melhor para elas. É uma voz bem vinda. É-o sempre. Não “interfere”, esclarece; não mistura planos, oferece um parecer avisado. Ouvimos D. Manuel há dias mas desta feita porventura de modo ainda mais claro: o Patriarca da cidade dirigiu um apelo concreto ao PS para que ponderasse bem escolhas que envolvem o futuro de Portugal e da nossa vida colectiva. Eis o que não é coisa pouca. Só se estranha o pouco caso que se fez disto.

3. Que eu me tenha apercebido – mas posso estar enganada – julgo que teria igualmente merecido bem mais eco um manifesto assinado por gente que sabe do que fala. São mais de cem responsáveis por empresas nacionais, grandes, pequenas e médias, das quais depende – ou também depende – o progresso económico e social do país. Representam as empresas familiares e manifestaram preocupação e aflição com o rumo dos acontecimentos. Fizeram bem. Daqui a uns tempos, quando for tarde demais, muitos se lembrarão deste grupo de cidadãos.