Custa a crer. No principal salão da residência oficial do primeiro-ministro, com enorme pompa e circunstância, o anfitrião, os presidentes do Banco de Portugal e da CMVM, essa figura esquiva que dá pelo nome de Diogo Lacerda Machado e tem como principal atributo ser o “melhor amigo” do anfitrião, mais o representante dos “lesados do BES”, brindaram a um acordo que este último classificou como uma “bênção de Natal”. Quanto ao primeiro-ministro, este preferiu a metáfora – “não endireitámos a vara nem a sombra” – e a auto-congratulação – falando de “dever cumprido”. Não houve brindes com champanhe, mas podia ter havido. Também não houve direito a perguntas, nem podia ter havido: as respostas, se as houvesse e houvesse franqueza, seriam duras de ouvir.
No essencial o que António Costa anunciou é que um conjunto de pequenos e grandes (alguns mesmo muito grandes) aforradores do BES, daqueles que acreditaram poder beneficiar de taxas de juro mais elevadas quando outros aforradores, mais prudentes, colocavam o seu dinheiro em paragens mais recomendáveis (e recebendo juros mais baixos), vão ser ressarcidos do que perderam. Não de tudo, mas de uma fatia muito substancial. O suficiente para ser necessário mobilizar uma verba de 268 milhões de euros, que um fundo financiado não se sabe como “adiantará” aos ditos lesados. E aqui está o busílis da questão e a razão de não ter havido direito a perguntas: ninguém quer dizer de onde vem realmente o dinheiro, mas uma vez que ele não cai do céu nem é imaginável que os outros bancos sejam altruístas, o dinheiro vai acabar por vir do sítio do costume. Isto é, dos nossos bolsos, humildes contribuintes.
Apetece dizer: é preciso ter lata. Primeiro, por que motivo se convocam os jornalistas se não há intenção de os esclarecer? Depois, por que razão hão-de os contribuintes que não arriscaram nos produtos vendidos aos balcões do BES financiar com os seus impostos uma solução que vai beneficiar quem arriscou muitas centenas de milhares de euros? Sentem-se esses “lesados” enganados? É possível, e não duvido que muitos não sabiam o que estavam a comprar. Mas a verdade é que perderam porque arriscaram, e agora será com o nosso dinheiro que vão ser compensados.
Apetece repetir: é preciso ter lata, muita lata. O governo da “sensibilidade social”, a maioria que passa a vida a falar dos pobres, congemina agora uma solução que, até prova em contrário, desviará dinheiro de outras funções essenciais do Estado para recompensar quem tinha poupanças de centenas de milhares de euros. É o Robin dos Bosques ao contrário.
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Mas lata – e esperteza saloia – é coisa que realmente não falta a esta maioria. Um outro exemplo disso é o Ministério da Educação ter colocado em discussão pública um longuíssimo documento de orientações relativas à “educação para a saúde” que, lá pelo meio, prevê que se deva discutir na sala de aula, com crianças de 10 e 11 anos (2º ciclo do Básico) a interrupção voluntária da gravidez. Não vou aqui debater essa proposta (até porque penso que a história que Laurinda Alves contou é bem ilustrativa de onde levam estes activismos “pedagógicos”), apenas a habilidade: o prazo para a discussão do documento termina nesta semana de Natal. Sim, leram bem: acaba nesta semana em que nas escolas não há aulas, os professores estão concentrados nas avaliações e as famílias a prepara a festa de 25 de Dezembro. Se isto não é actuar pela calada, contando com a indiferença geral para introduzir recomendações que podem ferir os princípios morais de boa parte da população, então eu não sei o que é fazê-las à socapa.
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Mais lata ainda é necessária para insistir no discurso de que a anterior legislatura foram anos de absoluta catástrofe quando começam a multiplicar-se os documentos e os estudos, com a chancela de organizações internacionais, de que não foi isso que sucedeu. Ainda esta semana, por exemplo, o Observador revelou a existência de um estudo da OCDE que faz um balanço muito positivo das reformas laborais introduzidas no tempo da troika, considerando que a elas se deve em parte a recuperação do emprego a um ritmo que tem deixado todos surpreendidos. Mais: esse estudo foi entregue há seis meses ao actual Executivo, mas convenientemente esquecido numa gaveta. Agora que a sua existência e conteúdo foram tornados públicos, o Ministério veio falar de uma “versão preliminar” e prometer debater mais tarde as suas conclusões. Mais tarde? Mas mais tarde porquê se é agora que se está a negociar um acordo de concertação social que tudo tem a ver com o objecto daquele estudo? Naturalmente não houve nem haverá resposta, pois o discurso continuará a ser o que tudo o que foi feito entre 2011 e 2015 foram malfeitorias. Mesmo o que funcionou bem.
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A mesma imensa lata marcou a forma como o primeiro-ministro, no debate quinzenal da semana passada, passou ao lado das questões que lhe foram colocadas pela oposição quando esta citou dois estudos internacionais sobre Educação – o PISA, onde os nossos alunos ficaram acima da média da OCDE pela primeira vez, e o TIMSS, onde ultrapassámos a Finlândia a Matemática – que comprovam que, afinal, a escola pública não só não foi destruída, como até foi capaz de ter melhores resultados. Uma lata só ultrapassada pelo desnorte absoluto do Bloco de Esquerda que, depois de ter sugerido que a amostra dos alunos levados a exame fora falsificada – o que obrigou o IAVE a desmentir as suas dirigentes –, conseguiu o prodígio de considerar, pela boca de Catarina Martins, que tudo na Educação ia pior (“os professores tiveram ataques com as carreiras e os salários desde o tempo de Maria de Lurdes Rodrigues até ao tempo de Nuno Crato, mais alunos, mais turmas”) sem compreender que foi exactamente nesse período que os resultados melhoraram. Faz sentido? Não faz. Mas como poucos escrutinam os dislates da doce Catarina, ela pode dar os pontapés na lógica que entender e ainda sair em ombros.
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Por fim, verdadeira cereja em cima deste bolo em que o descaramento não parece ter limites, ouvimos este fim-de-semana António Costa criticar, em Castelo Branco, a “diabolização que se fez do investimento público”, prometendo “recuperar o tempo perdido”. Não sendo eu um defensor do investimento público como um bem em si mesmo, não deixa de ser extraordinário que o primeiro-ministro tenha vindo defender a sua necessidade quando, em 2016, o seu Governo cortou como nenhum outro nesse mesmo investimento público com o único objectivo de atingir o défice prometido sem prejudicar as diferentes clientelas a quem ia “devolvendo rendimentos”. Os números são elucidativos: em 2016 fecharemos o ano com um investimento público correspondente a apenas 1,8% do PIB. Menos do que em qualquer um dos anos da troika. Para terem uma ideia (e peço emprestado um magnifico gráfico a Jorge Costa) tratar-se-á do mais baixo esforço de investimento público em 65 anos. É preciso recuar até 1952, um tempo em que Salazar ainda era e seria o Presidente do Conselho, para encontrarmos um valor mais baixo.
Custa a crer, mas a prova dos números é como a do algodão: não engana. O que nos engana e desarma é a facilidade com que se defende e se diz não importa o quê, fazendo de nós tolos. Mesmo no mundo da pós-verdade é realmente preciso ter uma imensa lata e uma extraordinária cara de pau para achar que tudo se desculpa, nada se pergunta e ainda menos se verifica.
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Não devia ser assim. Mas talvez seja mesmo assim. Ter muita lata parece ter-se tornado na grande qualidade de um político. Na pós-verdade da pós-modernidade a realidade já não é o que é, é a “narrativa” que se criar dela. Até um dia em que tudo se esboroará, dia que só esperamos não surja tarde demais para o país, que já experimentou há bem pouco tempo para onde são capazes de nos levar os malabaristas das “narrativas”.
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