O tema desta crónica tem mais que ver com política do que possa parecer mas tem sobretudo a ver com a vida cultural e, sobretudo, com a arte bem como a criação literária, teatral, musical, etc. Com efeito, uma coisa é a política artística que o Estado pretende executar; outra, totalmente diferente é a partidarização da arte, ou seja, a subordinação crescente da cultura às ideologias partidárias, concretamente ao que se chama o «esquerdismo» mas o mesmo se passaria com o «direitismo» se fosse esse o caso presente.
Política artística não designa aqui as políticas dos governos, sejam estes quais forem, como se lhes competisse controlar ideologicamente a criação artística, mas sim a orientação estética dos artistas no sentido assumido há, pelo menos dois séculos, de uma total ruptura com os cânones clássicos e do advento da livre busca de inovação estilística. Em suma, o «modernismo» enquanto a instauração de uma «tradição do novo» (H. Rosenberg, 1959) constitui, justamente, a libertação da produção artística em relação aos cânones académicos das grandes corporações que encomendavam arte, como as igrejas e as elites aristocráticas.
Depois do declínio destas, contudo, tem vindo a caber aos Estados substituírem-se aos anteriores grandes clientes numa inevitável tendência para o «regresso à ordem», sobretudo nos países totalitários, com uma dominação crescente das ideologias partidárias que se sucedem no poder. E onde os mercados da arte e da cultura em geral são mais fracos, mais forte é a tendência para os Estados influenciaram os criadores de todas maneiras possíveis, desde as compras para museus e bibliotecas até aos prémios, bolsas e outras prebendas. E assim, entre o mercado e os Estados, vem sendo a «tradição do novo» própria da criação artística actual cada vez mais condicionada, até ao ponto de se inclinar perante as ideologias partidárias dominantes em cada momento histórico.
Os leitores terão visto com surpresa que, dias atrás, uma série de «obras» expostas por uma galeria no famoso certame da ARCO madrilena foi retirada por motivos de «conteúdo», isto é, decididamente partidários, quando a arte deveria ser, segundo a ideologia vendida ao público, unicamente julgada por motivos estéticos: na actualidade, o único conteúdo é o da forma.
Aconteceu que o artista, entretanto já beneficiado pela publicidade do acontecimento, decidiu apresentar uma série de fotografias com a provocatória legenda: «Presos políticos na Espanha contemporânea». Deus sabe se a Espanha do século XX conheceu presos e assassínios políticos de todas as origens partidárias no século passado! Aqui tratava-se, obviamente, dos «presos» da moda, isto é, os políticos catalães que terão participado activamente no recente «processo independentista» condenado pela Constituição espanhola, a qual foi ratificada por referendo nacional com alta votação na Catalunha pós-franquista.
Pessoalmente, acho que a detenção daqueles políticos à ordem do Tribunal foi uma estupidez por parte de um primeiro-ministro que pensava ganhar votos com isso, mas não deixa de ser exacto que, na Espanha contemporânea, não há «presos políticos, isto é, pessoas presas por defender tais ou tais ideias. O título da obra retirada constitui portanto uma dessas «fake news» de que agora se fala. Quanto à retirada dos objectos, é outra estupidez que renderá certamente ao autor muito mais dinheiro do que se não tivesse sido retirada. Na realidade, a única coisa que se expôs e vai vender a alto preço é uma mera legenda – não é a série de fotos inspirada numa notável instalação de Christian Boltanski feita nos anos ‘80.
Trata-se, pois, de uma rasteira manifestação das ideologias partidárias que se imiscuem de forma cada vez mais deletéria no mundo da criação artística. O que fica é o valor financeiro deste género de operação de propaganda e contra-propaganda em que vivemos permanentemente. Por isso me pergunto se quem hoje protesta contra a retirada das fotografias dos «presos políticos» catalães também protestaria contra algum artista desalinhado que exibisse fotos encantadoras do presidente Trump e a família?
Tanto quanto podemos recuar, a «Propaganda Fide» católica seria a mais antiga organização publicitária. Com o tempo, a publicidade comercial deu origem a uma outra espécie de publicidade que, por seu turno, se transformou em propaganda estatal destinada à integração ideológica da população nos estados autoritários. E quanto mais totalitários, como na Rússia soviética e na Alemanha nazi, mais sofisticada e convincente se tornaram a propaganda e a correspondente submissão das massas. O Portugal do Estado Novo não ficou fora desse processo propagandístico da ideologia fascizante e não hesitou em pôr a arte ao serviço de uma ditadura não só política como mental. Por isso me perturba a alegada protecção governamental aos artistas… Quem algo dá, algo pretende, não?