Com tanto tema sério por discutir, a utilização do Panteão Nacional para um jantar do Web Summit não passaria de um fait-divers se o governo tivesse arrumado o assunto – reconhecia a decisão da DGPC e ou a defendia ou garantia que não voltaria a acontecer. Mas o governo decidiu ir por outro caminho, cometeu dois erros e tornou o caso digno de discussão.

O primeiro erro foi político: António Costa tentou descartar a sua administração de responsabilidades – remetendo para um enquadramento legal datado de 2014, como quem aponta o dedo ao anterior governo. O problema da acusação, já se percebeu, é que esse mesmo enquadramento determina que “compete à Direcção Geral do Património Cultural (DGPC) decidir”, para cada solicitação e de acordo com parecer dos serviços, sobre o arrendamento ou não do monumento nacional em causa. Mais: o enquadramento legal de 2014 define critérios para essa ponderação, nomeadamente que deve salvaguardar-se sempre o prestígio e a dignidade dos monumentos nacionais. E clarifica que a DGPC “reserva-se o direito de não autorizar o aluguer”.

Ou seja, só houve jantar do Web Summit no Panteão porque, em 2017, alguém na DGPC avaliou o pedido de utilização do monumento e considerou que a festa não feria com a dignidade do monumento. Consequentemente, a violência verbal de António Costa (que qualificou a situação de “indigna” e “ofensiva”) acaba por ser, involuntariamente, dirigida contra a actual DGPC e a sua tutela política da Cultura. O caso político (desnecessário) que se criou foi imposto por António Costa contra si mesmo: agora que avaliou a situação como “indigna” e disparou erradamente contra o anterior governo, que condições políticas restam a quem efectivamente deu a autorização para a realização do jantar? Nenhumas.

O segundo erro do governo é de políticas públicas: não existe uma estratégia assumida para o arrendamento dos monumentos nacionais, apenas uma postura reactiva, que promete remover do despacho de 2014 os casos que derem polémica nas redes sociais. Achar que isso é solução é não ter noção do que se está a discutir.

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Antes de existir enquadramento legal próprio, já havia eventos em monumentos nacionais. Em 2003, por exemplo, usou-se o Panteão como cenário teatral para o lançamento de uma das obras da colecção Harry Potter. Em 2013, fez-se lá um jantar empresarial e, por certo, muitos outros eventos lá tiveram lugar antes de 2014. Isto diz-nos que o problema não foi criado pelo despacho de 2014 – pelo contrário, esse despacho procurou corrigir o problema, regulamentando uma actividade que era praticada sem enquadramento próprio. Ora, sabe-se que o BE e o PCP são contra o arrendamento de monumentos históricos. Mas também se sabe que a DGPC e o ministro da Cultura são a favor: em Julho deste ano, perante um outro caso polémico (filmagens no Convento de Cristo), a DGPC informou que é seu entendimento “que a utilização dos Museus, Palácios e Monumentos sob sua tutela pode e deve ser melhorada”. Ou seja: o despacho não é o problema, uma vez que esta actividade é para manter, embora revendo os critérios (o que é expectável após três anos em vigor).

Rever como: tornando a lista de monumentos nacionais abrangidos mais restrita, ou limitando as utilizações possíveis? É esse o ponto. É que, há quatro meses atrás, a DGPC informou ter sido iniciada uma revisão do Regulamento de Utilização de Espaços “com o propósito de uniformizar critérios de utilização e reforçar as exigências às empresas que solicitam o aluguer”. E avisou também que essa revisão seria liderada por uma “unidade interna permanente”. O que aconteceu desde então – essa unidade foi criada, quantas vezes reuniu, a que conclusões chegou? Não se sabe. Só se percebe é que tudo continuou como dantes – tornando manifesto que, do ponto de vista do governo, a alteração não era assim tão prioritária.

Chegados aqui, concluiu-se o que já se desconfiava: quando submetidos a pressão mediática, António Costa e os seus ministros atiram a incompetência para debaixo do tapete e agem como se o país vivesse no Twitter – baralhando os dados com acusações falsas, com #aculpaédoPassos, com alheamento às suas responsabilidades, com soluções bruscas e irreflectidas. Já havia sido assim em Tancos, em Pedrógão Grande, em Leiria, no Hospital de São Francisco Xavier ou onde algo correu mal. O maior problema é esse: esta adesão à propaganda-fake-news das redes sociais constitui uma irresponsabilidade muito mais indigna e ofensiva do que qualquer jantar que se realize no Panteão.