A conversão do deputado Carlos Abreu Amorim tem justificado algumas lições sobre o liberalismo e a sua oportunidade. Como acontece com todos os outros “ismos”, o liberalismo — no singular — só existe em teoria. Na história, nunca houve um liberalismo, mas vários “liberalismos”, como Oliveira Martins notou no “Portugal Contemporâneo”, que continua a ser o grande livro sobre a experiência liberal portuguesa do século XIX. Foram liberais o duque de Palmela, Passos Manuel, Costa Cabral, Fontes Pereira de Melo, e basta este rol de nomes para sugerir a diversidade do “liberalismo” histórico, porque é evidente que o “progressista” Passos Manuel e o “conservador” Costa Cabral não foram liberais da mesma maneira. Liberalismo era então como a “democracia” hoje: um rótulo de que quase toda a gente se procurava apropriar, e até ter o exclusivo. Mais de um século depois, é precisamente o contrário no actual regime democrático: hoje, nenhum político se diz liberal, e os que aparentemente o eram já deixaram de o ser, como Carlos Abreu Amorim, a quem a aparição de Ricardo Salgado terá feito perder a fé.
Em teoria, podemos chamar liberalismo à preferência por um Estado e uma sociedade fundados na independência individual do cidadão, o que pressupõe um poder limitado e o reconhecimento de uma esfera privada. Historicamente, o “poder limitado” resultou do uso ilimitado do poder para redesenhar instituições, e a delimitação de uma esfera privada começou frequentemente com agressões às crenças da maioria da população, como sempre que foi necessário reduzir uma religião colectiva a uma simples fé pessoal. Em sociedades como a portuguesa, tudo passou pelo “despotismo da liberdade”, como pitorescamente se dizia no século XIX. É verdade, mas também é verdade que os Estados e as sociedades assim formatados geraram muito mais do que o relógio de cuco da anedota de Orson Welles: por exemplo, a liberdade de imprensa. Por mais constrangimentos que lhe possamos encontrar, é mais real nos regimes de inspiração liberal do que em qualquer outro tipo de sistema.
Para que serve o liberalismo teórico? A mim serve-me, por exemplo, para perceber que o chamado Estado social pode ser um meio de dar oportunidades a muita gente, mas é também uma via para reduzir populações inteiras à condição de utentes controlados por burocracias anónimas. Mas há coisas para que não preciso para nada do meu liberalismo. Por exemplo, para compreender que os políticos correm um risco demasiado grande ao assumir compromissos que não podem pagar, que a defesa do crédito é hoje a melhor maneira de evitar uma ruptura social, ou que convém fazer crescer a riqueza, e que neste momento os mercados abertos da globalização são a via mais adequada para esse fim. Para perceber isto, não preciso do liberalismo.
No entanto, é este o sentido que liberalismo tem no debate político português. Chama-se “liberalismo” à urgência de equilibrar as contas do Estado ou à necessidade de, numa época de endividamento e desemprego, tornar a economia competitiva internacionalmente — como se só aos “liberais” pudessem ocorrer essas opções. É por isso que na Europa, todos os governantes são acusados de “liberalismo”, estejam à esquerda ou à direita: Passos ou Rajoy, mas também Renzi ou Hollande. Não interessa o que cada um deles é ou diz que é: basta que diminuam um subsídio ou façam uma reforma, mesmo contrafeitos, para passarem a ser “liberais”.
Este uso indiscriminado de liberalismo não corresponde, como é óbvio, a um diagnóstico, mas a um embuste: as oposições tratam assim de impor uma identidade ideológica às operações de equilíbrio do Estado social e de estímulo da economia, de modo a fazer crer que são apenas um mero capricho doutrinário, sem qualquer outra razão de ser. Somos assim convidados a acreditar que o mundo é como é apenas porque os “liberais” mandam, e que portanto bastará afastar os “liberais” para que outro mundo — de abundância sem custos para ninguém — seja imediatamente possível. Não, isto não é um debate. É apenas demagogia e desonestidade.